Faixa verde, rodeado de algumas das mais altas figuras do Estado, mas sem o seu antecessor na sala. Em pouco mais de um minuto, o novo Chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA), Henrique Gouveia e Melo, tomou posse, pondo fim a meses de uma guerra em surdina que culminou na ausência do CEMA cessante, Mendes Calado, da cerimónia. Há três meses, Marcelo travou esta nomeação mas, agora, acabou por ceder. O processo esteve, no entanto, longe de ser pacífico: o Presidente da República, sabe o Observador, preferia que a nomeação só ocorresse em março e o conselho do Almirantado nem sequer votou o nome de Henrique Gouveia e Melo.
Os mais próximos de Marcelo Rebelo de Sousa apontam a proximidade de eleições legislativas como a razão pela qual o Presidente da República não quis comprar uma guerra institucional com o Governo de António Costa. O conselheiro de Estado Luís Marques Mendes disse no domingo à noite, no seu comentário semanal, isso mesmo: “O Presidente sempre travou esta nomeação. [Agora não fez] talvez por ter dado o sinal em Outubro, não queria agora, na segunda insistência com o Governo, criar um conflito institucional”.
Marcelo Rebelo de Sousa, apurou o Observador junto de fonte conhecedora do processo, queria que a nomeação ocorresse só em março de 2022, já com outro Governo em funções. Ao insistir na nomeação nesta altura, o Governo terá limitado a ação do Chefe de Estado. “Se a primeira vez é um puxão de orelhas, a segunda é quase um conflito institucional”, diz a mesma fonte. “A margem jurídica do Presidente para recusar era a mesma, mas a margem política não: o Governo quis fazer isto propositadamente em vésperas de eleições e em período natalício para condicionar o Presidente”, acrescenta.
O Governo, sabe o Observador, quis marcar a tomada de posse para a antevéspera de Natal (23 de dezembro) — de forma a que a mesma passasse despercebida — e terá sido o Presidente da República a declinar a data e a agendar a cerimónia para esta segunda-feira.
Conselho do Almirantado nem sequer votou nome de Gouveia e Melo
O tema tem criado cisões profundas no topo da estrutura da Marinha — e a última reunião de chefes não ajudou a pacificar os ânimos. Na última quinta-feira, o conselho do Almirantado foi convocado para tomar posição sobre dois pontos fundamentais para o futuro do Estado-Maior da Armada.
A cúpula da Marinha devia pronunciar-se (mais uma vez) sobre a exoneração do almirante Mendes Calado, primeiro, e sobre a nomeação do vice-almirante Gouveia e Melo para aquelas funções, logo a seguir. Mas o “chumbo” ao afastamento do atual Chefe do Estado-Maior da Armada ditou o fim da discussão — e, na prática, Gouveia e Melo assumiu esta segunda-feira aquelas funções sem que os chefes do ramo se tenham pronunciado sobre as suas capacidades para o cargo. “Isto não é nada comum. Aliás, nada neste processo é comum”, diz ao Observador fonte militar conhecedora deste tipo de processos.
Na reunião de 23 de dezembro, o atual Chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA) era um dos militares sentados à mesa para discutir as mudanças no topo da estrutura do ramo. No Conselho do Almirantado têm lugar, além do almirante CEMA, os militares que desempenham funções de comando no ramo. Mas o Observador sabe que, ainda antes de os vice-almirantes partirem para a discussão sobre a exoneração de Mendes Calado, o almirante abandonou a sala, para não ter qualquer intervenção num tema que lhe dizia diretamente respeito.
O que se passou nos minutos seguintes deixa clara a divisão que o tema tem provocado na cúpula da Marinha. Depois da discussão, e já com o vice-CEMA Jorge Novo Palma a presidir à reunião (dada a ausência de Mendes Calado), a votação — que não é vinculativa —acabou partida ao meio: três votos a favor da exoneração e outros três votos contra. Do lado dos que se opunham ao afastamento do atual CEMA havia um nome de particular relevância: o do vice-almirante Sousa Pereira, chefe da Casa Militar do Presidente da República. Além de Sousa Pereira, também o vice-CEMA se opôs à exoneração do atual CEMA. Divididos a meio, o voto de qualidade do vice-almirante Novo Palma pesou na hora de desempatar e a posição do Conselho do Almirantado acabou por redundar num “chumbo” ao afastamento de Mendes Calado. Tudo igual ao que se passou em setembro.
Mas, desta vez, o processo haveria mesmo de avançar e a Marinha passaria a ter um novo almirante aos comandos do ramo. Só que, com o voto contra a exoneração do atual CEMA, os chefes da Armada consideraram que “já não fazia sentido” avançar para o segundo ponto da ordem de trabalhos: precisamente aquele em que deveriam discutir e votar sobre as capacidades de Gouveia e Melo para ocupar o lugar no topo da hierarquia do ramo. “Não é nada comum, nada neste processo é comum”, diz ao Observador fonte militar com experiência nestes processos de substituição.
Uma das razões que há três meses se admitia para explicar a pressa em colocar o ex-coordenador da task force da vacinação contra a Covid-19 aos comandos da Marinha era o risco de, deixando passar mais alguns meses, Gouveia e Melo passar à condição de reserva por limite de idade como vice-almirante.
Mas a lei é clara e afasta essa possibilidade. No número 3 do artigo 24.º da Lei Orgânica de Bases da Organização das Forças Armadas, que se refere às “regras comuns quanto à nomeação dos Chefes de Estado-Maior”, pode ler-se que, “aos militares propostos para os cargos de Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas e de Chefes de Estado-Maior dos ramos, a que corresponda o posto de almirante ou general de quatro estrelas, é, desde a data da proposta do Governo, suspenso o limite de idade de passagem à reserva, prolongando-se a suspensão, relativamente ao nomeado, até ao termo do respetivo mandato”.
Ou seja, na prática, apesar de Gouveia e Melo passar à reserva no decurso do próximo ano, a partir do momento em que o nome do vice-almirante fosse proposto pelo Governo para o lugar ocupado até agora por Mendes Calado, esse calendário ficava suspenso nos seus efeitos e o vice-almirante poderia assumir as novas funções quando o mandato do atual CEMA terminasse. Isso não aconteceu e Gouveia e Melo acaba por tomar posse depois de ser nomeado por um Governo que está a um mês de ir a votos, nas eleições legislativas marcadas para 30 de janeiro de 2022.
Quando confirma a nomeação a 23 de dezembro, Marcelo Rebelo de Sousa diz que aprova a proposta do Governo — de exonerar Mendes Calado e nomear Gouveia e Melo — com “parecer favorável do Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, após audição do Conselho do Almirantado”. Detalhe: o Conselho do Almirantado votou contra a exoneração e nem sequer votou a nomeação (só mesmo a exoneração).
A combinação inicial (não cumprida)
É preciso puxar a fita atrás para que se torne claro todo o processo. Tudo começa em fevereiro de 2021, quando é negociada a renovação do mandato do então CEMA. Aí, Marcelo Rebelo de Sousa, o ministro João Gomes Cravinho, o Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, almirante António Silva Ribeiro, e o próprio almirante António Mendes Calado fizeram um acordo de cavalheiros em que o CEMA seria renovado a 1 de março, mas sairia antes do fim do mandato para dar tempo a outros camaradas de ocuparem o cargo antes da passagem à reserva. Isso aconteceria naturalmente em março de 2022, precisamente a meio do mandato (que termina a 1 de março de 2023).
Na altura, Henrique Gouveia e Melo já era coordenador da task force da vacinação, mas ainda estava longe de ser uma estrela nacional. Apesar disso, já era um dos nomes preferidos para suceder a Mendes Calado, devido à proximidade que tem com o Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, que é amigo e vem do mesmo ramo de Gouveia e Melo, a Armada (vulgarmente conhecida como Marinha). Mais uma vez: Gouveia e Melo tinha uma limitação de idade: a 21 de novembro de 2022 faria 62 anos. Mas havia muito tempo para ser nomeado, como pretendia Marcelo, só depois das legislativas.
O primeiro travão de Marcelo
Parecia tudo combinado e pacífico, mas no final de setembro começou uma confusão a que Marcelo Rebelo de Sousa chamou simpaticamente de “equívocos”. No dia 28 de setembro, Henrique Gouveia e Melo, entretanto já uma estrela nacional, terminou as funções como coordenador da task force da vacinação e o Governo quis colocá-lo num alto cargo de chefia militar.
A semana negra de Costa em três actos (que ainda termina com negociações à esquerda)
No dia antes do fim das funções, a 27 de setembro, o Chefe do Estado-Maior da Armada, almirante Mendes Calado, foi chamado ao gabinete do ministro da Defesa para uma reunião marcada para as 18h30. Gomes Cravinho queria comunicar-lhe pessoalmente que decidira exonerá-lo das suas funções — nas quais tinha sido reconduzido há apenas seis meses e para um período máximo de dois anos. Mas não demorou muito até o chefe da Armada ser confrontado com outro dado: quando chegou ao seu gabinete, nessa mesma noite, tinha à sua espera uma carta assinada pelo ministro da Defesa onde lhe era dado a conhecer o nome que Gomes Cravinho tinha em mente para a sua substituição no topo da hierarquia da Marinha: a escolha recaía sobre Gouveia e Melo, o comandante da task force que, nesse mesmo dia, dava por terminada a sua “missão” dos últimos sete meses.
Começaram então a surgir, nessa mesma noite, várias notícias sobre a exoneração do então CEMA, primeiro, e, logo a seguir, a intenção de nomear o vice-almirante Gouveia e Melo para aquelas funções. Mas a decisão do ministro da Defesa de afastar Mendes Calado não chegou como uma surpresa absoluta.
Há meses que a relação entre Mendes Calado e João Gomes Cravinho se vinha esfriando. E o processo de escolha do novo comandante naval significou o primeiro episódio publicamente mais claro dessa tensão. O CEMA propôs o nome de Oliveira e Silva para o lugar. O ministro recebeu a proposta e, durante longas semanas, no processo não registou qualquer desenvolvimento. A razão? Cravinho estaria à espera de que, em Belém, Marcelo Rebelo de Sousa promulgasse as alterações à Lei Orgânica das Bases da Organização das Forças Armadas — na prática, o que isso significa é que, com a nova versão da lei, entretanto promulgada, o processo de escolha do comandante naval, por exemplo, passa a contar com uma intervenção direta do Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, que tem de ser ouvido sobre o nome proposto pelo CEMA. É uma espécie de bypass em relação ao processo anterior, em que a proposta era feita diretamente do chefe do ramo ao ministro. E dá poderes ao CEMGFA, que — ainda que não de forma vinculativa — tem oportunidade de mostrar desagrado face à proposta apresentada.
Esse episódio, como o Observador relatou na altura, teve duas consequências (uma mais direta do que a outra). Por um lado, Oliveira e Silva, chefe de gabinete de Mendes Calado e o homem escolhido para o comando naval, pediu a passagem à reserva. Fontes militares dizem ao Observador que foi uma reação direta aos obstáculos criados pela Defesa. Por outro lado, a demora na resposta do ministro levou o CEMA a pedir uma audiência ao Presidente da República.
Presidente desautorizou ministro da Defesa
O Presidente da República terá sido surpreendido pelo timing escolhido por Gomes Cravinho para exonerar Mendes Calado e por ter proposto Gouveia e Melo para aquele lugar. Ao ponto de, perante as câmaras de televisão, a 29 de setembro, ter dado uma palestra pública sobre os “três equívocos” que identificava em todo este processo. O primeiro desses equívocos deixava transparecer a surpresa pelo momento em que o ministro decidiu dar o passo em frente.
Marcelo começou por lembrar a “elegância” de Mendes Calado por contraponto ao que agora lhe tentara fazer Gomes Cravinho: “O senhor almirante chefe do Estado-Maior da Armada viu o seu mandato renovado a partir do dia 1 de março deste ano. Normalmente, essa renovação dura dois anos, mas [Mendes Calado] mostrou uma disponibilidade, com elegância pessoal e institucional, para prescindir de parte do tempo para permitir que pudessem aceder à sua sucessão camaradas seus antes de deixarem a atividade, de deixarem o ativo. E, portanto, nessa altura foi acertado um determinado momento para isso ocorrer, que não é este momento”.
O Presidente referiu ainda um segundo equívoco, que voltava a ter como alvo Gomes Cravinho. Corria a versão, no universo castrense, de que o ministro tinha considerado uma deslealdade o facto de Mendes Calado ter recorrido a Marcelo para manifestar o desagrado pela demora na nomeação do comandante naval e pelo facto de já ter manifestado oposição à nova versão da lei que estrutura as Forças Armadas. “A partir do momento em que foi votada a lei, [os militares] acataram e respeitaram a lei em vigor [e] isto é um exemplo de lealdade institucional, e não de deslealdade institucional”. Por fim, o chefe de Estado esclarecia um terceiro equívoco, lembrando que só faz sentido falar de uma substituição do chefe de um ramo “depois de terminado o exercício de funções”. E isso ainda não aconteceu.
Marcelo fazia então questão de deixar tudo isto bem claro pouco depois de uma reunião de alto nível na Marinha. No fim desse dia, a (pelo menos aparente) resolução. António Costa, que tinha assistido da bancada à palestra de Marcelo, pede uma audiência ao Presidente da República e vai a Belém com o seu ministro da Defesa ao lado. A notícia que sai no Expresso diz que o primeiro-ministro pediu a audiência precisamente para esclarecer “equívocos”. O comunicado que a Presidência libertou, depois desse encontro, foi lacónico e pouco acrescentou: “Ficaram esclarecidos os equívocos suscitados a propósito da Chefia do Estado-Maior da Armada.”
Marcelo tinha então levado a melhor, lembrando que era ele quem mandava: “Só há uma pessoa que tem o poder de decisão [nesta matéria], que é o Presidente da República, a palavra final é do Presidente da República”. Marcelo acabou por dar a última palavra, que foi a mesma do Governo, mas contrariado.