“Tendo em conta o teor da promoção que antecede autorizo, nas buscas, o acesso a todas as dependências incluindo cofres, arrecadações, veículos utilizados pelos suspeitos com o arrombamento de portas, escalamento de muros, neutralização de animais e desmagnetização de sistemas de vigilância, caso tal se mostre necessário”. O mandado de busca e apreensão, assinado pelo juíz do Tribunal de Instrução, Ivo Rosa, autorizava a entrada em duas casas de Mário Ferreira — uma no Porto, outra em Torres Vedras — e, no mesmo dia, às suas empresas.
A 29 de abril de 2016 os inspetores dividiram-se. E avançaram com as buscas. Mas com uma especificidade. Nas residências de Mário Ferreira tinha de estar um juiz a acompanhar as diligências. Ivo Rosa propôs-se, ele próprio, acompanhar as buscas na casa do Porto. “Por ser casado com juiz da comarca do Porto, a busca será por mim presidida” e teria de contar com a presença de um elemento do conselho superior de magistratura. Ivo Rosa dava, assim, o seu aval para a realização das diligências, sugerindo três datas: 29 de abril, 2 ou 3 de maio de 2016.
Aconteceram mesmo na primeira data. A 29 de abril de 2016, pelas 9h45, a porta da residência de Mário Ferreira no Porto era aberta pela mulher, a juíza de direito Paula Dias Ferreira. No mesmo dia, às 10h20, a quinta em Torres Vedras — “em excelente estado de conservação” com pinhal e eucaliptal, laranjal, jardins e que tinha sido uma antiga exploração agrícola — estava também a abrir portões para receber a equipa de inspetores acompanhada por um juiz desembargador.
E ainda no mesmo dia, as empresas de Mário Ferreira — Mystic Invest, Mystic Cruises e Douro Azul — foram alvo de buscas, a partir das 9h40. Na Mystic Invest e Mystic Cruises foi o próprio empresário, acompanhado da sua advogada, que recebeu os inspetores. Ausentou-se à hora do almoço para regressar já depois das 17 horas.
Na Mystic Cruises foi apreendida uma pasta branca identificada na lombada com a inscrição manuscrita ‘Atlântida’ e outra com a designação “oferta ‘ferryboat'”, entre outros elementos que foram enviados para peritagem da Polícia Judiciária. Também na casa do Porto foram apreendidos documentos, mas também três portáteis — que Mário Ferreira foi pedindo, durante anos, para reaver — e um tablet. Na casa de Torres Vedras, os inspetores saíram de mãos a abanar: não foram localizados e apreendidos “quaisquer documentos e suportes informáticos suscetíveis de servir a prova” e, assim, uma busca que se iniciou às 10h20 estava terminada às 11h40.
As buscas foram feitas no âmbito do processo de investigação conduzido pelo DCIAP (Departamento Central de Investigação e Ação Penal) que visava apurar eventuais práticas de prevaricação, administração danosa e tráfico de influência no processo de subconcessão dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo (ENVC) à WestSea, da Martifer.
Já nesse processo — cujo “arquivamento” foi determinado já em 2022 — Mário Ferreira mostrou disponibilidade para ser ouvido. O que nunca chegou a acontecer. Na consulta ao processo, o Observador verificou que não houve qualquer inquirição a Mário Ferreira, embora tenha o empresário que agora foi ao espaço tenha sido alvo de buscas. Por ocasião das buscas, o seu advogado escreveu ao DCIAP mostrando a disponibilidade de Mário Ferreira para ser ouvido. E reiterou disponibilidade em 2019: “O requerente requer a V. Exa se digne considerar as informações prestadas e a disponibilidade reiterada pelo mesmo para colaborar com o Ministério Público, determinando a sua inquirição como testemunha em data próxima ou, subsidiariamente, a sua constituição como arguido e a designação de data próxima para o seu interrogatório”, lê-se na carta enviada.
Neste caso (já arquivado) não foi ouvido, nem foi constituído arguido. Aliás, nessa investigação não houve arguidos. Investigação que, segundo o despacho de arquivamento, consultado pelo Observador, não visou apurar se os procedimentos e decisões em causa “foram acertadas”, mas sim “e apenas” apurar “se algum dos intervenientes praticou, por ação ou omissão, mas necessariamente de forma dolosa, qualquer facto violador dos deveres dos cargos que exerciam, com o propósito de causar prejuízo ou obter benefício”.
E concluiu-se que “embora as condutas denunciadas nos presentes autos, a serem demonstradas, fossem aparentemente subsumíveis aos mencionados tipos de crime, manifestamente não foram recolhidos indícios da prática de qualquer dos factos denunciados ou de outros que integrem as descritas ações atípicas”. Realça-se, pois, ser de concluir que não se mostram “suficientemente indiciados os elementos dos crimes em apreço, sendo igualmente certo que inexistem quaisquer outras diligências de prova a realizar nesse sentido”, o que levou o Ministério Público a determinar “o arquivamento dos autos” em relação à subconcessão dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo à WestSea, da Martifer.
A Martifer acabou por ficar sozinha na corrida à subconcessão por ter sido excluído um investidor russo por incumprimento dos requisitos do concursos. Ficou, assim, a empresa dos irmãos Martins com a subconcessão por 415 mil euros de rendas até 2031. Jorge Camões, ex-presidente dos ENVC, garantiu aos inspetores que o concurso público — que garantiu a vitória à WestSea — decorreu com “lisura e foi a melhor solução possível”, garantindo, no âmbito do inquérito, que o processo de subconcessão “está a ser um sucesso”, já que, no seu entendimento, não se perdeu know how, consolidou-se a atividade de construção naval e empregou-se parte significativa dos trabalhadores.
Novo processo extraído
Mas o caso não ficou por aqui. Encerrado esse capítulo, começou um outro. Desse processo tinha sido extraído outro caso para investigação autónoma: a venda do navio Atlântida pelos Estaleiros Navais de Viana do Castelo e que, aliás, já tinha motivado uma série de diligências no primeiro processo, inclusive as buscas a Mário Ferreira.
Foi no âmbito dessas diligências que se verificou que o navio, cuja construção foi encomendada por uma empresa regional dos Açores aos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, acabou a ser vendido, anos mais tarde, a Mário Ferreira. No concurso público que lhe garantiu a embarcação que estava encostada no Arsenal do Alfeite, a degradar-se, não houve fixação de preço mínimo. E assim surgiram três candidatos: os gregos da Thesarco Shipping, a Mystic Cruises (de Mário Ferreira) e o consórcio MD Roelofs Beheer/Chevalier Floatels que propunham, respetivamente, 12,8 milhões de euros, 8,75 milhões e 4 milhões.
Os gregos desapareceram. E o navio foi entregue ao segundo maior valor.
No decurso da investigação — a que foi arquivada — tomou-se “conhecimento do circunstancialismo” em que decorreu o concurso para a venda do navio Atlântida, realçando-se que a entrada nesse procedimento da empresa Thesarco Shipping “não se mostra isenta de dúvidas”. A “aparente” desistência levou a que a Mystic Cruises fosse declarada vencedora por 8,75 milhões.
Isto depois de, em 2013, os ENVC terem recebido uma proposta da Coreia do Sul de compra do navio por 21,4 milhões de euros.
Mais. Nas explicações sobre a investigação à venda do Atlântida diz-se ainda que oito meses depois da compra do navio por Mário Ferreira, a Mystic Cruises vendeu o navio por um alegado valor de 17 milhões à Hurtigruten. Mas no meio houve outra transação. Depois de comprar o Atlântida por 8,75 milhões aos Estaleiros Navais de Viana do castelo, o empresário de Matosinhos vendeu-o à International Trade Winds por 11,5 milhões de euros. É uma empresa de Malta que, segundo informações que constam do processo arquivado, tem como beneficiário último o próprio Mário Ferreira.
Para a Polícia Judiciária, a sociedade offshore maltesa entra “neste circuito comercial” com o “exclusivo propósito de reduzir mais-valias” obtidas pela Mystic Cruises e “reduzir ardilosamente” o montante de IRC a pagar. A primeira transação “entabulada (Mystic Cruises – International Winds) consiste num verdadeiro ‘negócio consigo mesmo’, um negócio simulado que astuciosamente visava reduzir a base de incidência fiscal/matéria coletável da empresa vendedora”.
Já no novo processo, segundo consulta ao mesmo, é realçado que o ter distribuído os lucros da mais-valia de 5,5 milhões (diferença entre os 17 milhões recebidos pelos noruegueses e os 11,5 milhões a que comprou à Mystic Cruises) pela holding maltesa, fez com que Malta devolvesse quase todo o IRC cobrado inicialmente, o que levou a que o imposto efetivo tenha sido, segundo um relatório da Autoridade Tributária, de 275 mil euros. Com isso admite-se que Mário Ferreira poderá ter obtido uma quantia aproximada de perto de 5,26 milhões “em proveito próprio”, sem cobrança de imposto. Isto levou a que os lucros do negócio tivessem diminuído em Portugal, o que levou também o Estado português a receber menos de imposto, “indiciando, alegadamente, a prática do crime de fraude fiscal qualificada”. O que está a ser investigado num outro processo.
À SIC Notícias Mário Ferreira já tinha argumentado que só vendeu o navio depois de um investimento de vários milhões para certificar o barco e alterações necessárias para o conseguir vender. Quantificou esse investimento em mais de 2 milhões, sugerindo que a mais-valia foi cerca de 5 milhões. No processo, vários elementos sugeriram que o navio foi vendido sem valor mínimo porque havia urgência no processo, não apenas porque estava a degradar-se como iria perder uma certificação em breve.
Ou seja, conforme já tinha sido avançado pelo jornal Nascer do Sol, há dois processos envolvendo a venda do Atlântida. Um é explicitamente sobre a possibilidade de Mário Ferreira ter escapado ao imposto português através de offshores.
E foi no âmbito deste processo, que investiga alegada fraude fiscal e branqueamento de capitais, que houve novas buscas já este ano a Mário Ferreira que, novamente, se propôs ser ouvido e a ser constituído arguido. O que desta vez aconteceu. O empresário é arguido neste processo de âmbito fiscal.
Mário Ferreira pede para ser arguido. A carta que escreveu ao Ministério Público
Nas primeiras buscas já tinham sido apreendidos documentos relacionados com a International Winds.
No novo caso relacionado com os Estaleiros Navais, no âmbito da investigação, já foi pedido um conjunto de informação à Grécia, a propósito do armador grego que desapareceu de forma misteriosa. Aliás, já tinha sido recebida a informação, em 2016, que o dono do armador grego Evangelos Saravanos tinha “pendente um mandado de detenção por violação do artigo 291.º do Código Penal Grego por perturbação da segurança ferroviária, marítima e aérea”. Não era conhecida a morada nem o seu paradeiro e mesmo a empresa tinha deixado de ter sede em Pireu, como tinha quando concorreu ao Atlântida.
Há neste novo processo mais uma novidade. É que, afinal, não é apenas a venda do Atlântida que está em investigação. São igualmente, apurou o Observador, os leilões de venda de chapas e perfis de aço levados a cabo no âmbito do processo de liquidação dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo.