894kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

i

AFP/Getty Images

AFP/Getty Images

Marlon James: "Não confio na História porque a História tem uma agenda"

Numa altura em que foram anunciados os primeiros finalistas do Man Booker Prize, falámos com Marlon James, o primeiro jamaicano a ganhar o prémio literário. A experiência, garante, tem sido incrível.

Convencer Marlon James a sentar-se durante meia hora para uma conversa não é tarefa fácil. A marcação da entrevista foi uma espécie de epopeia com várias personagens: jornalistas, editores, managers, o próprio Marlon. Mas lá diz o ditado: à terceira é de vez. E foi. Depois de duas marcações falhadas, James sentou-se no seu escritório em St. Paul, no Minnesota, onde vive desde 2007, para falar de Breve História de Sete Assassinatos, o romance que lhe valeu o Man Booker Prize em 2015, e da Jamaica do tempo de Marley . A Jamaica do seu tempo, onde havia violência nas ruas, é certo, mas não uma violência generalizada. Porque havia mais no seu país do que os guetos onde jamaicanos se iam matando uns aos outros.

Quando se fala em Breve História de Sete Assassinatos, considerado por muitos como um dos melhores romances dos últimos anos, que gira em torno da tentativa de assassinato a Bob Marley em dezembro de 1976, o tema da violência desmedida é difícil de ignorar (logo no primeiro capítulo, o leitor vê-se obrigado a engolir a seco e preparar-se para o que aí vem). Mas James, de 46 anos, fala dessa violência com naturalidade. Porque é que haveria de censurar os tiros, as mortes, a pobreza? A vida nos guetos da capital jamaicana, Kingston? Sentado numa cadeira, com um poster de Joy Division como pano de fundo, admite que não havia como fugir à questão. Afinal, as coisas são como elas são. E o livro dele é como é.

A edição portuguesa do romance de Marlon James foi publicada no final de 2016 pela Relógio d’Água

O teu livro, Breve História de Sete Assassinatos, gira em torno da tentativa de assassinato a Bob Marley em dezembro de 1976. Porque é que o incidente foi tão importante para a Jamaica?
Por várias razões. Primeiro, porque 1976 foi um ano muito violento. Foi o ano em que houve eleições para eleger um novo primeiro-ministro, e as eleições eram sempre muito violentas porque havia vários interesses — do Governo dos Estados Unidos da América que estava a tentar travar o Comunismo, das pessoas de esquerda que estavam a tentar institucionalizar o Socialismo. A Guerra Fria estava a ser travada na Jamaica porque Cuba fica mesmo por baixo — e Cuba acabou por se tornar comunista. Os Estados Unidos não queriam outro país comunista.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Havia muita violência no país. Até o embaixador do Peru [Fernando Rodríguez Olivia] foi assassinado. Bob Marley era a única história positiva na altura. Tinha acabado de lançar um álbum que tinha sido um sucesso no mundo inteiro [Rastaman Vibration], estava a tornar-se na maior estrela do planeta e também estava a lutar para que as pessoas comuns, as pessoas pobres, começassem a pensar por elas próprias e começassem a questionar as autoridades. Penso que isso o tornou perigoso. Mas [a sua tentativa de assassinato] também foi importante porque Marley era considerado intocável — toda a gente o respeitava, toda a gente o protegia. Era uma pessoa que, na Jamaica, se pensava intocável e que tentaram matar. Isso foi uma coisa, muito, muito importante.

"[Bob Marley] também estava a lutar para que as pessoas comuns começassem a pensar por elas próprias e começassem a questionar as autoridades. Penso que isso tornou-o perigoso." 
Marlon James

Apesar da fama, o teu livro dá a entender que nem toda a gente na Jamaica gostava dele. Porquê?
Muita gente da classe média não gostava do Bob Marley porque achavam que ele não tinha educação. Achavam que alguém que queria lutar pela liberdade tinha de ter uma licenciatura, tinha de saber falar e devia vir de outra realidade. E o Bob Marley não era nada disso — não correspondia à ideia de alguém que lutava pela liberdade. Outra coisa era que, na década de 1970, os rastafáris ainda eram menosprezados. Eram vistos pessoas sujas, que tinham pulgas. Muitas pessoas tinham nojo dos rastafáris. Apesar de ter ganho o apoio das pessoas, das pessoas da rua, das pessoas comuns, o que quer que isso signifique, a intellegentia não gostava dele.

Eras uma criança quando o ataque aconteceu. Tens alguma memória daquele tempo?
Nem por isso. Tinha apenas seis anos quando aquilo aconteceu. Tinha acabado de os fazer. Lembro-me de ter sido uma coisa diferente. Em 1976, havia notícias de assassinatos todos os dias mas, apesar de não ter compreendido completamente o que se estava a passar, consegui perceber que era uma coisa importante.

Se não te baseaste nas tuas memórias, qual foi a tua principal fonte para este romance? Que tipo de pesquisa é que tiveste de fazer?
Grande parte da investigação foi falar com pessoas. Falar com pessoas que estavam lá, que estavam vivas nos anos 70. Também li reportagens, não para obter informação, mas para ver o burburinho e para ver que as notícias eram, na realidade, inventadas. Eram notícias falsas, muito tempo antes de haverem notícias falsas. Foi interessante ver a propaganda dos media nos anos 70. Mas também falei com pessoas que estavam lá, que ainda vivem nestes guetos, que estiveram envolvidas na política. Se quiser escrever exatamente o que aconteceu na Jamaica, não posso consultar um livro, apesar de existirem muitos. Tenho de perguntar às pessoas.

"Breve História de Sete Assassinatos" foi publicado em 2014 nos Estados Unidos da América e em 2015 no Reino Unido

Getty Images

Disseste em várias ocasiões que não confias na história escrita da Jamaica, que confias mais nos rumores. Foi essa a razão que te levou a não consultar livros de História?
Não confio na História porque a História tem uma agenda, e a História escrita está sempre a mudar. A História escrita está a ser mudada neste preciso momento no Texas, onde os estudantes estão a aprender que a escravatura não foi um dos principais motivos pelos quais houve uma guerra civil. Por esse motivo, não posso confiar nos livros, não posso confiar nos livros de História. Tenho um grande respeito pelos historiadores, acho que têm feito um grande trabalho, mas não são eles os responsáveis pelos livros de História. Por isso, tenho de perguntar às pessoas: “Ok, estava lá, como é que foi?”. De certa forma, tenho de me tornar num jornalista para contar uma história. Num jornalista que conta uma história ficcionada.

"Não confio na História porque a História tem uma agenda, e a História escrita está sempre a mudar."
Marlon James

E assim acabaste por contar a história que não foi parar livros de História, que não saiu nos jornais.
Penso que esse é um dos objetivos de um romance. Os romances, os contos, podem contar as histórias internas que os livros de História não podem, não querem ou para as quais não têm tempo. Continuamos a achar que a História deve ser sobre pessoas famosas, e achamos que “famoso” significa “importante”. A pessoa que é apanhada no meio de um tiroteio, o homem ou mulher que acabam por ser apanhados por eventos globais não entram para os livros de História. Penso que um romance pode falar sobre essas histórias, essas personagens, e sobre a forma como estes grandes eventos afetam as pessoas comuns.

Foi por isso que decidiste escrever o romance da perspetiva dos assassinos e não da de Bob Marley?
Sim. Não queria escrever um livro da perspetiva de Bob Marley porque não estava interessado na história dele. Estava mais interessado nas pessoas, no que elas andavam à procura.

Cada capítulo é escrito da perspetiva de uma personagem diferente. Porque é que decidiste estruturar o livro desta forma?
Isso aconteceu de forma muito orgânica. Pensei que ia ser uma história de uma só personagem, mas depois apercebi-me de que isso não seria suficiente. Então comecei a escrever um capítulo da perspetiva de outra personagem. Escrevi vários e, na altura, achei que seriam vários romances que não tinham nada a ver uns com uns outros, até que um amigo me chamou a atenção para o facto de fazerem todos parte da mesma história. Apercebi-me de que eram. Uma história daquelas não podia ser contada por uma só personagem, e é por isso que acabou por ter um elenco tão grande de pessoas.

O primeiro capítulo que escreveste foi o de John-John K, um dos últimos do livro. Na altura já sabias que rumo é que o romance ia levar?
Na altura pensava que estava a escrever um policial.

E não um romance sobre a tentativa de assassinato a Bob Marley em 1976, em Kingston?
Não, não começou por ser isso. Na Jamaica, nada acontece num vácuo. Está tudo ligado e, de repente, transforma-se numa grande história. E acho que foi o que aconteceu com este livro.

Raramente falas no nome de Bob Marley. Normalmente referes-te a ele como o “Cantor”. Porquê?
Porque não estava interessado em Marley, a personagem. Estava interessado em Marley, o ícone. Tornas-te num ícone por causa de qualquer coisa que fazes, e foi por isso. De certa forma, não queria torná-lo real. É por isso que ele permanece uma espécie de símbolo.

Marley é uma espécie de fantasma, mas todas as outras personagens são extremamente complexas. A maioria são homens terríveis, mas dos quais não conseguimos deixar de gostar. Apesar das coisas horríveis que fizeram, apaixonamo-nos por eles e até sentimos pena deles.
Devemos sentir-nos assim em relação às personagens — devemos apaixonar-nos por todas elas. Mesmo os vilãos, as pessoas más. Acho que são todos importantes. Tenho de me apaixonar por uma personagem, ou então não escrevo sobre ela. O leitor deve sentir-se em conflito quando morre uma personagem, mesmo que ela seja a personagem mais detestável. O trabalho do escritor é fazer com que essas personagens tenham essa profundidade. Não podemos pô-las totalmente de parte, mas também não podemos amá-las incondicionalmente — não é assim que são as pessoas reais.

Marlon James nasceu em 1970, em Kingston, mas vive no Minnesota, onde é professor universitário

AFP/Getty Images

Falaste em vilões e, no teu livro, os vilões são muitas vezes policias. É até por causa da corrupção e violência policial que algumas das personagens escolhem os piores caminhos. O que é um bocado engraçado porque a tua mãe trabalhava na polícia, era detetive.
Ela era detetive numa força policial que, na altura, era muito desorganizada e corrupta. Mas, lá porque tenho familiares que são da polícia, não significa que não vá dizer as coisas como elas aconteceram.

Quando é que te apercebeste que havia tanta corrupção nas forças policiais?
Qualquer pessoa que cresce no chamado terceiro mundo tem consciência de que existe corrupção e violência na polícia. Não é chocante saber que existe abuso por parte das autoridades e que muitas destas coisas, que são feitas em nome da autoridade, vão contra os direitos humanos.

E da violência? Também havia essa consciência?
A violência nas ruas é relativa. Nem todas as ruas da Jamaica estavam cobertas de sangue. O meu livro passa-se numa parte específica. Passa-se em Grande Kingston, nem sequer é em Kingston todo, e as pessoas esquecem-se disso. Acho que às vezes leem o livro e acham que falo de um país inteiro em chamas, mas estou apenas a falar de uma quarta parte de uma cidade. Ao mesmo tempo, não penso que tenha de ter experienciado essas coisas para poder escrever sobre elas. Um escritor tem de ter talento, imaginação e alguma pesquisa feita para poder escrever uma cena.

Quando se fala do teu romance, fala-se muitas vezes da violência de algumas cenas. Porque é que fizeste questão de a tornar tão explícita?
Não acho que seja assim tão explícita, não acho que haja assim tanta violência. Existe uma diferença entre preponderância e ressonância, e as pessoas confundem sempre as duas. Para te dar um exemplo muito estranho: muitas pessoas pensam que os Led Zeppelin e os Rolling Stones fizeram grandes discos de hard rock. E fizeram. São ruidosos, violentos. Mas o que as pessoas não se apercebem é que a maioria dos álbuns são meio acústicos. Ou seja: quando foram mais barulhentos, isso ecoou durante tanto tempo que se pensa que é tudo barulho. Para mim, foi isso que aconteceu com a questão da violência. O livro não tem muita violência, mas a violência ecoa. Podia simplesmente ter escrito uma cena à Hollywood: um homem entra com uma metralhadora, mata 14 pessoas, beija a miúda e depois parte em direção ao pôr-do-sol. Só que havia 14 pessoas que tinham morrido, 14 mulheres que ficaram sem marido, quase 100 crianças que ficaram sem pai, e não vemos isso num filme. Quis escrever um livro onde se visse isso, e acho que é por isso que as pessoas pensam que é tão violento. Mas não é de todo violento — não é mais violento do que qualquer outra coisa.

Um aspeto muito importante de Breve História de Sete Assassinatos é a linguagem. Cada personagem fala de maneira diferente e todos criticam a forma como os outros falam. Porque é que sentiste a necessidade de explorar a linguagem desta forma?
Os jamaicanos têm um complexo de inferioridade no que diz respeito à linguagem. Por um lado, uma grande parte do livro foi escrita no dialeto jamaicano mas, por outro lado, até os falantes desse dialeto criticam a forma como as outras pessoas falam. Isto porque ainda temos esta ideia do inglês britânico como padrão. E, na verdade, o inglês britânico é bastante horrível.

"Existe um complexo de inferioridade em relação à raça e à classe, e ainda pensamos que a pessoa que fala da melhor maneira é a pessoa que pertence à classe mais alta. Tornamo-nos obcecados com a linguagem perfeita, apesar de isso não existir."
Marlon James

Porquê?
É um dialeto horrível do inglês para ser usado como padrão, mas ainda o temos por causa destas ideias que vêm com ele. Existe um complexo de inferioridade em relação à raça e à classe, e ainda pensamos que a pessoa que fala da melhor maneira é a pessoa que pertence à classe mais alta. Tornamo-nos obcecados com a linguagem perfeita, apesar de isso não existir.

Já te descreveram várias vezes como um autor pós-colonial, um título que te recusas a aceitar. Porquê?
Não escrevo sobre colonialismo, os meus romances não estabelecem uma ligação com o Reino Unido. Há muitas preocupações do pós-colonialismo sobre as quais não me interesso. Mesmo aquelas sobre as quais eu escrevo, não me afetam enquanto pessoa. A grande potência com a qual cresci foi a América, não o Reino Unido.

E agora até vives lá.
Sim, agora vivo cá! Por isso, não acho que me insira no campo do pós-colonialismo. É um termo muito limitado. Existe uma relação com o Reino Unido? Não. Cresci com a Rua Sésamo, não faço ideia do que dá na televisão britânica.

E a questão da procura da identidade, tão presente neste romance? Não terá nada a ver com isso?
Mas o pós-colonialismo não é o único contexto em que isso acontece, caso contrário nenhuma literatura podia funcionar. Há centenas de livros que falam da procura da identidade e que não têm o colonialismo ou o pós-colonialismo como tema central. Acho que esse termo não é suficiente. Uma das personagens deste livro está a tentar encontrar a sua identidade gay o que, mais uma vez, não tem nada a ver com pós-colonialismo, mas sim com a opressão que existe na Jamaica em contraste com a liberdade que existe na América.

A música também está muito presente neste livro, como não podia deixar de ser. Os nomes dos capítulos são referências a músicas ou álbuns, a maioria jamaicanos. Porque é que decidiste incluir esta referência musical?
Por nenhuma razão em especial. Quando tentei lembrar-me daquelas décadas, a primeira coisa que usei para o fazer foram músicas. Se pensar em 1976, a forma mais rápida de me situar é pensar: “Ok, o que é que estava a dar na rádio?”. Temos uma memória musical, e há muita nostalgia agarrada às nossas canções favoritas.

Qual é a tua relação com a música e com o reggae?
Oiço muita música. Costumava escrever críticas musicais para um jornal local. O reggae é como um primo ou um tio. Lá porque é da família, não quer dizer que queira estar sempre com ele. Ouvi muito rock alternativo enquanto crescia — New Order, Pet Shop Boys –, mas também muito hard rock — Guns N’ Roses e Metallica. Sonic Youth, Joy Division, The Jesus and Mary Chain — foi com isso que cresci.

Marlon James venceu o Man Booker Prize, o mais importante prémio de literatura inglesa, em 2015

Getty Images

Em 2015, ganhaste o Man Booker Prize com Breve História de Sete Assassinatos. Como é que foi para ti?
Foi um choque, não pensava que ia ganhar e por isso não escrevi um discurso. Fartei-me de gaguejar por causa disso. Mas tem sido incrível. Passei grande parte do ano a viajar pelo mundo inteiro, de mala na mão, e isso foi maravilhoso. Ter livros a serem vendidos em todas as partes do mundo também tem sido ótimo. Tem sido uma experiência maravilhosa.

A HBO vai produzir uma série baseada no teu romance. O que é que nos podes adiantar sobre isso?
Já não vai! Esse acordo morreu, já não estamos a trabalhar com a HBO. Estamos à procura de outras soluções.

Já têm algum acordo em vista?
Deixo isso para a minha agente, ela é que trata disso.

Fotografias de Dominique Faget/AFP/Getty Images e Eamonn M. McCormack/Getty Images.

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.