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No filme “Cálice Sagrado” (1975), dos Monty Python, há uma cena sobre a peste negra, na qual um carrasco leva um homem velho às costas, no meio de um cenário dantesco, repleto de corpos e sujidade. O homem, já velho, grita: “Ainda não estou morto!”. Gera-se ali um diálogo inesperado, com Eric Idle em cena, onde se discute se o homem está vivo ou não. Mas o homem até se sente melhor. “Sinto-me feliz, eu sinto-me feliz!”, diz o homem, antes de levar com um bastão. Agora está morto, o carrasco pode levar o seu pagamento e Eric Idle pode continuar o seu trabalho de recolha de cadáveres. “Vemo-nos na terça feira”, fim.
O riso é quase impossível de esconder e o constrangimento também, porque estamos a falar de um evento que decorreu no século XIV e matou milhões de seres humanos. Fica talvez o alívio, o “comic relief”.
Muitos séculos depois, com guerras, terrorismo, desastres ambientais e outros surtos de doenças à mistura, o mundo encontra-se fechado a sete chaves para enfrentar uma nova pandemia, ainda que muito diferente, mas com o medo e a incerteza a baterem à porta. No meio disto, o tal “alívio cómico”, pode ajudar? Continuar a rir pode ser o melhor — ou o único, até ver — remédio?
O Observador falou com oito humoristas/guionistas que, nesta altura, estão também de quarentena e à procura daquele ângulo que, no meio do caos, nos faça a todos rir. Porque desde as dezenas de lives de figuras públicas às milhares de contas desconhecidas que vão partilhando muito conteúdo, continua a haver quem viva desse ato de gerar uma boa gargalhada. Mesmo em tempos de Covid-19. Até porque, sendo isto um trabalho, não há desculpas. É ir à luta com a melhor punch line, sem esquecer que o adversário maior continua por cá. Nenhum estado de emergência poderá decretar o fim do humor, convenhamos.
Fernando Rocha, que recentemente ficou infetado com o novo coronavírus e está há oito dias assintomático, tenta manter-se positivo através das redes sociais, usando o humor para se recuperar. Ricardo Araújo Pereira vai dando o corpo às balas no “Isto É Gozar Com Quem Trabalha”, todos os domingos, nos estúdios da SIC, para uma plateia vazia, porque, enfim, é esse o seu trabalho, e porque em tempos de corona, “rir é uma necessidade”.
Joana Marques, a “Extremamente Desagradável” da Rádio Renascença, e uma das guionistas do talk-show do humorista, fica em casa à procura de material cómico paralelo ao coronavírus, sabendo que o seu trabalho também a salva de ficar mais ansiosa com tudo o que se passa. Rita Camarneiro e Joana Gama, dupla do podcast “Banana Papaia”, habituadas a fazê-lo lado a lado, agora estão separadas por um ecrã, onde encontram formas de “expurgar a dor”, rindo, sem que se sintam culpadas por isso.
Filipe Homem Fonseca, um dos mais conhecidos guionistas do país, resiste a tudo isto, não parando de escrever, porque a comédia também ajuda a “trazer lucidez que, no fim, pode até resolver um problema irresolúvel”. Luana do Bem, apresentadora do Curto Circuito, e uma das caras recentes do stand up português, está ainda a perceber que relação tem com esta pandemia, procurando outros temas que lhe permitam continuar a praticar, a bater texto. E Herman José, “cá por casa”, continua a tentar descobrir a melhor forma de “afinar a guitarra” do humor, na dose certa.
Ricardo Araújo Pereira
“É de rir na cara do medo que se trata”
“O mundo tem problemas ligeiramente maiores do que o facto de os humoristas andarem um bocadinho aflitos”. É assim que começa Ricardo Araújo Pereira (RAP), que já andou a deambular pelos caminhos do sofrimento, da doença e da morte, mas quando entravam num bar. Agora, estão em casa, e é preciso continuar a fazer humor.
No caso de RAP, a coisa divide-se, porque aos domingos vai a estúdio sozinho, e no restos dos dias ora está a escrever, ora a entrar no “Governo Sombra”. A fazer aquilo para o qual é pago: fazer os outros rir, “sem apresentar desculpas”, porque o público está-se a borrifar para as suas dificuldades e dores. “Há uma tentação, a meu ver parva, para se falar de outra coisa. A questão é que o riso, se tem algum efeito, é o de retirar peso ao modo como entendemos as coisas. É de rir na cara do medo que se trata, por isso há que falar dele”, diz. Até porque rir nas costas “é batota”, e, diga-se, “inútil”. E mesmo que milhões de pessoas estejam agora a criar conteúdo na internet, dias antes de o humorista entrar em cena, há que procurar outros caminhos, mesmo que neste programa só estejam “oito desgraçados guionistas”.
A tarefa de encontrar outro tema é, como já se viu, bastante difícil e até, porventura, inglória. Porque segundo RAP, temos de continuar a tentar fazer os outros rir. Para isso, o humorista veste a pele de um monge oriental, mas sem nos tratar por “pequeno gafanhoto”, de forma a ilustrar aquilo que defende. “Uma vez, quando as minhas filhas eram pequenas, a mais nova estava a chorar. A mais velha, à força de macacadas, conseguiu fazer com que ela se risse. E depois veio dizer-me, com um orgulho que eu compreendo bem: ‘A Inês estava triste, mas eu ensinei-a a ficar contente’.” O significado desta história, RAP não o consegue dar com 100% de certeza, até porque os “adultos sabem que a formulação de ensinar alguém a ficar contente não faz sentido. Não deixa é de ser bonito “haver quem tente”. Neste caso, os humoristas.
Com notícias diárias de mortes, imagens tristes de funerais e hospitais a abarrotar, como é que ainda é possível rir-nos de tudo? “Não é uma questão de conseguir, é uma necessidade”. E, segundo o também cronista, nestas alturas há sempre quem decrete o fim do riso ou da comédia, como aconteceu nos meses a seguir aos atentados terroristas no 11 de setembro de 2001. “O Roger Rosenblatt escreveu um artigo na Time chamado ‘A era da ironia chegou ao fim’, ideia que foi secundada por muita gente. Um porta-voz do canal televisivo Comedy Central disse mesmo que a ironia tinha morrido, pelo menos durante aquele momento”, conta. Só que, pouco a pouco, “todos começámos a perceber que a solenidade não é apenas inútil, é também insuportável”, acrescenta. Principalmente porque, para RAP, o contrário de rir não é chorar. São duas coisas que não se opõem, mas sim que convivem. “As lágrimas, muitas vezes, são um alívio, tal como o riso. A seriedade, ao contrário, é tensão que se acumula”, termina.
Luana do Bem
“Não sei se tenho a maturidade necessária para aprofundar este tipo de temas”
Antes desta quarentena começar, era difícil não dar de caras com um espectáculo de stand-up a acontecer. Quer fosse num bar menos conhecido, ou então numa grande sala, como o Coliseu ou o Pavilhão Atlântico. Luana do Bem, apesar de estar só no início do seu percurso neste mundo da comédia em pé, começou a dar cartas muito rápido, logo no início de 2019. Primeiro, tornou-se anfitriã das noites de stand up — o Zebras — na Padaria do Povo, em Lisboa. Depois, a tour com a Pipoca Mais Doce, a percorrer o país, de norte a sul, para afinar o texto. Eis que chegou o palco do “Levanta-te e Ri”, e, por fim, a co-apresentação do programa Curto Circuito, na SIC Radical, no final de 2019. Ou seja, estava a fazer o seu caminho. Só que esse caminho está agora em suspenso. “Esta pausa para mim está a ser bastante chata. Ainda agora comecei e já tive que parar. Estava com um bom ritmo de atuações e agora, de repente, estou em casa e a única coisa que posso mesmo fazer é preparar e pensar em projetos novos”.
Sobre se esta é a melhor altura para fazer humor, Luana do Bem não tem dúvidas: “Estamos a assistir a algo que nunca vimos, é tudo estranho e diferente e, por isso, tem piada”, comenta. No início, quis “imenso brincar ao fim do mundo”, mas depois, caiu-lhe um pouco a ficha. Foi só com o passar do tempo que começou a descobrir o tal ângulo diferente. Até do próprio aborrecimento de estar enfiada em casa pode dar em novo material. Confessando que tem medo de tudo isto, a humorista prefere focar-se no lado mais leve. “Não sei se tenho a maturidade necessária para aprofundar este tipo de temas. Sinto que talvez esteja demasiado dentro da minha relação com a pandemia para falar sobre ela. Só depois de ultrapassarmos isto é que vou perceber o que quero mesmo escrever”, afirma. Não descartando, porém, os tais detalhes engraçados que podem surgir da sua própria quarentena ou a dos outros.
[“As Fases da Lua”, de Luana do Bem:]
Quanto à mudança de hábitos, especialmente em relação aos espectáculos de stand-up, Luana do Bem não tem propriamente uma resposta — até porque é difícil dá-la, sendo que continuamos todos em casa. “Estou o dia inteiro a tentar prever, mas nunca chego a conclusão nenhuma. Tenho medo que o público do stand-up diminua, mas tento pensar que as pessoas vão estar sedentas para sair e ver coisas a acontecer”.
Por agora, vai mantendo o seu instagram bem vivo, com a rubrica “As Fases da Lua”, atrevendo-se a tocar noutros assuntos que não a Covid-19, como “falar ao telefone” ou “dormir fora de casa”. “O feedback ao meu conteúdo tem sido positivo. Acho que a atenção até tem aumentado. As pessoas não se cansam de rir”, finaliza.
Fernando Rocha
“A veia criativa está muito mais sensível”
Parece quase macabro, mas o humorista de Rio Tinto que estávamos habituados a ver, sempre bem disposto e de língua afiada no “Levanta-te e Ri” da SIC, foi uma das primeiras figuras públicas portuguesas a ser infetada pelo novo coronavírus (ou, pelo menos, a confirmar a infeção e a revelá-la). Rocha, que depois do anúncio, esteve alguns dias sem fazer posts nas redes sociais, resolveu voltar para admitir que “a recuperação não foi nada fácil” e que tinha “sofrido muito”. No programa “5 para a meia noite”, da RTP, chegou mesmo a dizer que “não desejava a ninguém” aquilo que tinha passado: febre, tosse, vómitos e falta de apetite. Palavras duras, que soam a algo estranho, vindo de um homem tão acarinhado por ser alguém que usa o vernáculo e a anedota para causar riso e não sofrimento. Agora, já no oitavo dia sem sintomas, faltando apenas seis para estar “100% recuperado”, parece estar a voltar lentamente ao seu próprio estado de espírito.
Quanto ao humor que faz, aquele que entrega sem limites ou entraves, ainda que tenha surgido nos vídeos com menos entusiasmo, acaba por ser um escape. “Tem-me ajudado a passar o tempo e sei que também tem sido o escape e entretém de quem me segue. O humor é uma arte tão nobre ao ponto de ajudar a sanidade mental das pessoas”, afirma ao Observador.
Apesar deste obstáculo, o humorista não deixa de continuar a criar conteúdos nos seus diferentes canais. “A veia criativa está muito mais sensível pelo facto de ter tempo livre, não havendo pressão de fazer as coisas”, até porque não tendo de subir a um palco, a única forma de fazer rir é através da internet. Ajuda também ter um canal de Youtube onde vai carregando espetáculos gravados do seu programa “Pi100pé”, que conta com a participação de mais de 70 humoristas e milhares de visualizações.
Se o público começa a ficar cansado ou mais stressado, não tendo tanta paciência para este tipo de conteúdo, o humorista diz que encontra dois tipos diferentes: “Os que estão em casa e procuram encontrar soluções nos problemas, e os que encontram problemas nas soluções”. “O isolamento social é como um esmeril: a uns desgasta, a outros afia, depende do tipo de metal que cada um é feito”, diz.
Para Fernando Rocha, que conta já com 20 anos de carreira celebrados no início do ano, o humor “será sempre uma terapia mental”, porque assistir a um espectáculo ou programa de comédia é como “levar o cérebro ao ginásio”.
Rita Camarneiro e Joana Gama
“Não temos de nos sentir culpados de rir em tempos de cólera”
O humor não se faz só de forma solitária, também se pratica em dupla, como acontece com Rita Camarneiro e Joana Gama, que estavam prestes a começar uma tour com o seu podcast “Banana Papaia”. Por agora, em conjunto, ficam-se pelos lives de Instagram. “Acho que psicologicamente existem várias fases de adaptação para estas alturas e o humor não surge em todas, para toda a gente. A Rita e eu temos tentado encontrar momentos em que nos sintamos as duas disponíveis para fazer um pouco de humor”, começa por dizer Joana Gama.
No entanto, confessa que acaba por não ser feito com “a mesma liberdade”, existindo uma espécie de nuvem, quer da parte do público, quer por parte desta dupla. Rita Camarneiro vai “matando saudades” do Banana Papaia nos diretos, encontrando sempre “um motivo para se rir de alguma coisa”. Até porque para esta humorista, rir “expurga a dor”, fazendo um esforço para manter um otimismo a um nível alto, sem se ser insensível e não havendo medo de ficar um pouco deprimida, de vez em quando. “Não temos de nos sentir culpados de rir em tempos de cólera” comenta.
Joana Gama está também na “Prova Oral” da Antena 3, sendo uma das apresentadoras que se juntou recentemente a Fernando Alvim. O programa leva já muitas edições e Joana não consegue já perceber se o público está cansado deste tipo de conteúdo, fruto de tempos mais trágicos. “Existem diferentes variáveis, não dá para comparar o grau de afluência e comunicação com aquela que temos agora, porque as pessoas já não têm hora de ponta, andam menos de carro. E depois sinto que existe menos tempo para se consumir conteúdos que não sejam imediatamente úteis”, como, por exemplo, entrevistar uma arquiteta que ajuda a reorganizar a casa de forma a ficarmos mais felizes.
Rita Camarneiro acredita que agora há mais disposição para consumir mais cultura, nas mais variadas formas. Porque isso permite que nos possamos alhear da pandemia durante uns minutos ou horas. “Encontrar uma nova perspetiva sobre a realidade ou sobre algo que nos magoe é uma boa técnica terapêutica para tudo. Estamos mais dispostos a pensar noutras coisas, da música ao humor, que nos alheie, que nos faça sonhar, rir ou até viajar sem sair do sofá”.
[um episódio do podcast “Banana Papaia”:]
As duas em casa, Rita Camarneiro com o namorado, Joana Gama com a filha, que também segue para o pai. A primeira vai lutando contra o isolamento entretendo-se com um trabalho a nível mais pessoal, o que pode ser “assustador e estimulante” ao mesmo tempo, utilizando o tempo para si, agora que as idas a palco — e a estúdio — ficaram em espera. O humor, portanto, vai e volta. Para a segunda, “não há limites para a graça, mas o humor sai-me todo quando fico sozinha. Tento ser estratégica, da mesma maneira que faz todo o sentido falar sobre a Covid-19 agora, também não faz, por uma questão de evasão. Não podemos fazer humor só porque nos apetece, é preciso pensar nos timings, na produção e na estratégia”.
Joana Gama, que lançou um podcast com a filha, o “Necas Tan-Tan”, acredita que o humor pode ter vários efeitos: banaliza, ameniza ou relaxa. E sendo uma pessoa com “ausência de estruturação emocional”, acaba por ser um mecanismo de defesa. E que também serve para colmatar a necessidade de pertença, agora que estamos todos separados, dando o exemplo dos lives de Bruno Nogueira. “Faz-nos sentir mais acompanhados, pequeninos, mas mais unidos”, finaliza.
Herman José
“O humor tem de ser consumido como um medicamento, em doses certas”
Se ainda não apanhou uma das imitações de Herman José no Instagram, é porque anda distraído. O humorista, que ganhou uma nova vida nas redes sociais — mantendo também uma agenda ocupada na RTP1 e entre concertos — não parece estar a abrandar o ritmo, mesmo em tempos de quarentena. Mas começa logo por deixar um aviso: “É justamente nestas alturas que só toca guitarra quem tem unhas, há que mantê-las bem limpas e afiadas, tentando sempre não desafinar”, conta. Ainda que possa parecer uma frase enigmática, é bastante simples de explicar. Afinal, por estarmos num período onde toda a gente também pode estar mais sensível, por causa dos números expressivos que vão crescendo quer de mortes, quer de infetados, é necessária “alguma sensibilidade em relação a quem sofre e passa mal”, acrescenta.
Já sobre o conteúdo que faz nas redes sociais, apelida-o de “quebra gelo” para o isolamento social. “É uma delícia ver tantos colegas a reinventarem-se com tanta imaginação e positivismo”. E é precisamente nessa onda de positivo que, no “meio de tanta tristeza”, Herman José acaba por ter uma boa notícia: vai passar a fazer o seu programa “Cá por Casa” a partir da sua própria casa, que vai contar com a participação de Maria Rueff, Eduardo Madeira, Joana Pais de Brito, Manuel Marques e Gabriela Barros. Ou seja, a Idália e o Nelo não ficam, para já, parados sem dizer nada. “Vai ser feito de forma totalmente autónoma e sem batotas. Aceitei a auspiciosa tarefa com muita alegria, e tenho estado embrenhadíssimo em criar um programa de ficção humorística com recurso a um grupo de talentosos colegas que dirijo a partir de casa”, afirma. Vai chamar-se “Diário de uma Quarentona”, o resto é ver.
Herman finaliza deixando um conselho aos seus pares: “O humor tem de ser consumido como um medicamento, em doses certas, e mesmo só quando se justifica”.
Joana Marques
“O humor tem servido para me ajudar a mim a não enlouquecer, só isso”
Joana Marques é “Extremamente Desagradável” na Rádio Renascença, todos os dias, e uma das guionistas do programa “Isto é Gozar Com Quem Trabalha” (IGCT), da SIC, apresentado por Ricardo Araújo Pereira, que emite todos os domingos. Por isso, a humorista tem aqui um problema: onde é que se descobre a graça quando estamos todos a falar do mesmo? “A atualidade noticiosa é praticamente monotemática. A solução que encontrei foi ir buscar assuntos paralelos. Olhando para os últimos textos que fiz, constatei que quase tudo o que analisei surgiu por causa da epidemia: a praga de cantores a darem concertos à varanda, as fake news que surgem na internet sob formas de curar a doença ou as intervenções de Rodrigo Guedes de Carvalho no Jornal da Noite”, começa por dizer. Portanto, “ao contrário do que se esperava”, não lhe tem faltado material.
Por ser hipocondríaca, a única forma de se abstrair de tudo o que se passa é trabalhar, quase como uma espécie de salvação. As três horas que faz de manhã com Ana Galvão e Carla Rocha, mais as horas que passa a discutir com os colegas do programa IGCT, fazem com que “não esteja constantemente a ver os gráficos da epidemia ou quantas pessoas morreram em Itália”. Ou seja, se tivesse mantido todos os trabalhos que tinha — como o programa “Irritações” na SIC Radical — e se tivesse de sair de casa, “os níveis de ansiedade já teriam disparado”. Se o humor ajuda as pessoas? Joana Marques não faz lei dessa afirmação, mas não descarta o papel importante que outros colegas humoristas têm tido. “O humor tem servido para me ajudar a mim a não enlouquecer, só isso”, afirma.
[a rubrica “Extremamente Desagradável” de Joana Marques:]
Nesse trabalho meio artesanal, teve, como é óbvio, de mudar a logística. Desde fazer rádio a partir de casa a interagir com a equipa via FaceTime ou Zoom. No entanto, a rotina de escrita não mudou muito, comparativamente ao período pré-Covid-19. “O meu processo de escrita mantém-se igual. No fundo, já vivia parcialmente em quarentena, parte do meu dia era em casa, às vezes de pijama, a escrever. Agora a diferença é que é o dia todo”, afirma.
Mas há outra diferença, pelo menos no programa da SIC, porque aquele grupo de guionistas estava habituado a fazer tudo presencialmente, entre quarta e domingo, com direito a almoço e tudo. Escrevem-se guiões e definem-se alinhamentos à distância. “Ao domingo, a escrita do guião mantém-se igual, mas eu, infelizmente, não posso estar presente, porque, por estar grávida, tenho ‘ordens’ para não ir a estúdio, mas o resto da equipa mantém essa normalidade. O domingo, passou, ironicamente, a ser o dia mais animado da semana”, comenta.
Filipe Homem Fonseca
“A comédia, no seu zénite, não banaliza, o que faz é dessacralizar o tema”
Filipe Homem Fonseca, além de ser escritor, é também um dos mais conhecidos guionistas portugueses. Produções como “Conversa da Treta”, “Herman Enciclopédia” ou “Contra-Informação”, têm todas dedo dele. Portanto, quando o assunto é humor, sabe do que fala. E Filipe Homem Fonseca contraria a ideia de que, nestas alturas, o seu efeito possa ser apenas o de banalizar aquilo que está a acontecer. “A comédia, no seu zénite, não banaliza, o que faz é dessacralizar o tema. Aligeirar o problema não é retirar-lhe importância, é retirar peso ao problema para que possamos enfrentá-lo da melhor maneira. Aliás, a comédia é, muitas vezes, o caminho mais eficaz para chegar à lucidez indispensável para a resolução de um problema que parecia, à partida, irresolúvel”, avisa.
Por conhecer bem o género da ficção, importa questionar se não é difícil trabalhar no limbo de estarmos a viver precisamente o que vemos em filmes, séries ou peças de teatro. “Um apocalipse, na raiz do termo revelação, por mais coletivo que seja, é sempre vivido de forma íntima”. O que faz com que mesmo ficcionando, haverá sempre uma nova abordagem, porque “é esse o objetivo máximo do ato de contar uma história”. Porque, no fundo, o que se quer é “uma experiência comunitária, um exercício efetivo de empatia”.
Nesse sentido, o guionista juntou-se a um grupo de atores e argumentistas para criar uma série de ficção no Instagram, o “Chamadas para a Quarentena”. Pequenos episódios de cinco minutos, que pode passar por comédia mas não só. Há diálogo inesperados, encontros entre atores que nunca se tinham cruzado, tudo em vídeo-chamada. “A aceitação do público tem sido ótima, e dos atores também, porque se juntaram a nós nesta aventura, revelando mais uma vez aquela enorme generosidade artística do que é ser ator, a par do imenso talento. É exatamente no meio de tanta notícia trágica que a gargalhada faz mais falta, como forma de resistência e afirmação de vida”, conclui.
[o primeiro episódio da série do YouTube “Chamadas para a Quarentena”:]