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“Conheci-o no início de 2017 e pareceu-me moderado. Mas tornou-se muito claro, ao fim de alguns meses da sua vinda para Washington em 2017, que ele queria ser famoso. E a maneira de alguém se tornar famoso no lado republicano não é sendo moderado e pragmático.” O relato é feito ao Observador por Geoffrey Kabaservice, diretor de estudos políticos no think tank Niskanen Center. A restante ascensão de Matt Gaetz está bem documentada, desde o seu crescimento dentro do partido como polémico — e raramente moderado — congressista da Florida, até à sua nomeação como procurador-geral da administração Trump, Mas esta pode agora estar ameaçada pelas acusações de conduta sexual imprópria, consumo ilícito de drogas e obstrução à justiça que enfrenta.
Os nomes propostos pelo Presidente-eleito para os departamentos federais exigem confirmação do Senado, o que, numa situação normal, seria um processo meramente formal. No entanto, as acusações contra Gaetz estavam a ser investigadas pelo Comité de Ética da Câmara dos Representantes. Com a sua demissão do cargo de congressista a investigação foi automaticamente suspensa, mas o relatório do Comité ainda pode ser divulgado. A decisão deverá ser tomada esta quarta-feira, quando o Comité votar sobre a divulgação do relatório e restantes documentos da investigação — a votação já tinha sido agendada para a passada sexta-feira, mas acabou por ser adiada.
Se o relatório for tornado público, o chumbo de Gaetz pelo Senado é quase certo, concordam os especialistas em política e Direito norte-americanos ouvidos pelo Observador. Mas mesmo que o Comité escolha manter os documentos confidenciais, a aprovação do ex-congressista para liderar o Departamento da Justiça é improvável, dada a sua impopularidade dentro do Partido Republicano — “muitos congressistas republicanos”, por exemplo, já enviaram uma carta a Donald Trump em que alertam para a difícil aprovação de Gaetz.
Junta-se a isso a sua falta de experiência política na área. “Parece-me bizarro termos alguém cuja maior experiência com o Departamento de Justiça é ter sido investigado por ele”, resume ao Observador Matthew Bartlett, conselheiro do Partido Republicano. Tendo em conta o choque e a resistência com que foi recebida a nomeação de Gaetz, como é que o político da Florida chegou ao cargo e conquistou a confiança política do Presidente eleito?
De “republicano do sistema”, moderado e pragmático, a congressista “inflamatório” e “acólito de Trump”: a ascensão de Matt Gaetz
Matt Gaetz surgiu pela primeira vez na vida política nacional norte-americana em 2016, quando apresentou a sua candidatura à Câmara dos Representantes pelo estado da Florida — Gaetz chegou a anunciar uma candidatura ao Senado anos antes, com a qual nunca avançou. Mas o nativo da Florida não era nenhum desconhecido dos círculos políticos: ocupava desde 2010 um lugar no Congresso estadual e o seu pai, Don Gaetz, foi presidente do Senado da Florida. Durante as eleições primárias do Partido Republicano para as presidenciais de 2016, os Gaetz (pai e filho) apoiaram Jeb Bush, adversário de Trump e ex-governador da Florida — proximidades políticas que faziam prever uma presença pragmática no Congresso.
“Quando se candidatou à Câmara, ele era conservador, mas pragmático. Conservador, mas não uma pessoa ridícula. Sempre se achou que Matt Gaetz seria mais uma peça num jogo antigo“, descreve Geoffrey Kabaservice, especialista da fação mais moderada do partido, ao Observador.
O encontro com Gaetz que Kabaservice descreveu ao Observador aconteceu em 2017, depois da chegada de Gaetz a Washington. Tratava-se de um evento da Republican Mainstreet Partnership, uma organização sem fins lucrativos afiliada ao grupo dos Republicanos de Main Street. Estas organizações — os chamados caucus, em inglês — são grupos legislativos dentro da câmara baixa do Congresso criados por representantes com objetivos políticos semelhantes. O Main Street — com que Gaetz começou por se alinhar — é conhecido como a ala mais moderada dos republicanos, classificada como centrista. Mas Gaetz rapidamente rompeu com o Main Street para se juntar ao House Freedom Caucus, o bloco mais à direita do Congresso. “Ele foi para o outro lado do espectro, da fação mais moderada à mais radical, sem passar por outros grupos conservadores pelo meio“, destaca Kabaservice.
Ao mesmo tempo, Gaetz começava a surgir como comentador na Fox News e noutros meios conservadores, “a dizer coisas escandalosas e controversas”, nota o especialista. É uma destas intervenções que motiva o primeiro contacto direto com Trump, relatou o próprio Gaetz no seu livro. O à data Presidente telefonou pela primeira vez ao congressista no final de 2017, depois de ter visto as suas críticas a uma investigação do Departamento de Justiça a Trump num espaço de comentário na Fox News. “Preciso de guerreiros, sabes o que quero dizer”, ter-lhe-á dito o Presidente.
Matthew Bartlett, conselheiro do Partido Republicano e ex-funcionário do Departamento de Estado, argumenta que Gaetz cresceu politicamente “na sombra de Trump”, devido “à sua retórica inflamatória e performances políticas dentro e fora do Capitólio”. Fora do Capitólio, o palco de Gaetz era, precisamente, os media alternativos e as redes sociais. Não é surpreendente, portanto, que um dos braços direitos de Trump, Elon Musk, tenha sido um dos apoiantes mais vocais de Gaetz desde a sua nomeação: “Será o nosso Martelo da Justiça”, escreveu o homem mais rico do mundo esta terça-feira na plataforma que ele próprio detém — e onde Gaetz é presença assídua — o X.
Ao longo do seu primeiro ano da Câmara dos Representantes, Gaetz aproximou-se do círculo de Trump e ganhou nome dentro do movimento MAGA (Make America Great Again, “Fazer a América Grande Outra Vez” em tradução livre). Bartlett define-o mesmo como “um acólito de Trump”. Ao mesmo tempo, classifica-o como “um agitador do partido” — a radicalização de Gaetz e a sua aproximação a Donald Trump não lhe valeram muitos amigos no Partido Republicano.
As duras críticas aos democratas, as teorias da conspiração do 6 de Janeiro e a expulsão de McCarthy. O currículo de Gaetz no Congresso
Ao longo de oito anos no Congresso, o percurso de Gaetz ficou manchado por uma série de intervenções criticadas pelos seus opositores. O seu primeiro teste de lealdade a Trump aconteceu em 2020, quando o então Presidente perdeu a reeleição para o democrata Joe Biden. Gaetz foi uma das vozes que defendeu vincadamente que os democratas tinham cometido fraude eleitoral. “Se os republicanos não lutarem contra esta fraude agora, nunca mais ganharão uma eleição”, escreveu no X (à data, Twitter), a 6 de novembro de 2020. Tentou pressionar o vice-Presidente Mike Pence a não validar os resultados das eleições. E quando Pence não cedeu à pressão (e os apoiantes de Trump invadiram o Capitólio durante esse processo) apontou novamente o dedo aos democratas.
Na altura, Gaetz defendeu a teoria da conspiração de que os invasores eram democratas “mascarados de apoiantes de Trump”, acusações que já reconheceu como falsas desde aí, recorda o Politico. Quando a tentativa de reversão eleitoral foi discutida no Congresso, afirmou ao mesmo jornal que “nenhuma possibilidade estava fora da mesa”, referindo-se ao caminho que Trump devia seguir.
Geoffrey Kabaservice argumenta, contudo, que Matt Gaetz atingiu o pico da impopularidade dentro do partido, no final de 2023, quando mobilizou um grupo de congressistas para destituir o speaker republicano da Câmara dos Representantes, Kevin McCarthy. “A coisa mais significativa que ele fez foi iniciar a expulsão do McCarthy. Ele foi bem sucedido nisso e trouxe-lhe muita atenção e publicidade, mas marginalizou-o dentro do Partido Republicano. Gaetz tem muito poucos amigos entre os republicanos da Câmara [dos Representantes]”, explica ao Observador.
“Acho que não há ninguém no Senado que ache que esta é a melhor escolha para liderar o Departamento de Justiça”, acrescenta Bartlett. Pelo menos uma dúzia de senadores republicanos recusam-se a apoiar a nomeação de Matt Gaetz, disseram de forma anónima ao Politico, na passada terça-feira. Outros são mais vocais: “Tem uma caminhada a pique”, afirmou a senadora do Iowa Joni Ernst.
A impopularidade de Gaetz é uma história antiga, à qual se acrescenta agora o elefante na sala: irá a Justiça norte-americana ser liderada por um político que foi investigado por ela?
15 de julho de 2017: a festa na Florida, as acusações de sexo com uma menor e as investigações do Departamento de Justiça e do Comité de Ética
Ao longo do primeiro ano de Matt Gaetz na Câmara dos Representantes, Chris Dorworth, um representante no Congresso da Florida, organizou uma série de festas em que vários políticos republicanos terão consumido drogas ilícitas e pago a mulheres para terem relações sexuais. As acusações contra Gaetz remontam à noite de 15 de julho de 2017, quando o congressista terá estado presente numa destas festas, onde terá tido sexo com uma rapariga de 17 anos. Gaetz negou repetidamente estas acusações.
O Departamento de Justiça abriu uma investigação ao caso no início de 2021, para averiguar acusações de tráfico sexual, uma vez que a menor teria sido paga por Gaetz para viajar a partir de outro estado. Os procuradores anunciaram que o caso tinha sido arquivado em fevereiro de 2023, meses depois de Joel Greenberg (outro republicano da Florida que já tinha colaborado com Gaetz) se ter declarado culpado das acusações de tráfico sexual, ter aceitado colaborar com a investigação e ter sido condenado a 11 anos de prisão.
Nunca foi apresentada pelo Departamento da Justiça uma explicação oficial para o arquivamento, mas sete advogados que representavam as vítimas e outras testemunhas avançaram, à data, que a decisão se deveu à falta de credibilidade das duas testemunhas chave — duas amigas da vítima — e à falta de provas concretas contra Gaetz.
A isto soma-se o facto de a vítima ter começado a fazer conteúdo pornográfico online, depois de ter atingido a maioridade. Barbara Martinez, antiga procuradora especialista em casos de tráfico sexual, explicou que a “falta de credibilidade” de pessoas envolvidas em trabalho sexual é um fator comum para o fim das investigações. “Muitas vítimas de tráfico têm problemas de credibilidade, porque tiveram vidas difíceis. Sinceramente, é por isso que são muitas vezes visadas por traficantes”, afirmou à NBC, no final de 2022.
Só depois de a investigação do Departamento de Justiça ter sido fechada é que foi aberta uma outra, de caráter político, pelo Comité de Ética do Congresso, com o objetivo de investigar acusações de “má conduta sexual, consumo ilícito de drogas, dispensa de privilégios especiais e favores a pessoas com quem tinha relações pessoais e obstrução de investigações governamentais sobre a sua conduta”, segundo o comunicado do órgão, em junho deste ano. Laurie Levenson, professora de Direito especializada em questões éticas, explica ao Observador que os “standards” do Comité de Ética são diferentes dos utilizados pelo Departamento de Justiça, daí que esta seja retomada num organismo diferente. “O Comité de Ética tem meios menos formais de obter informações e ainda é relevante apurar a conduta e a veracidade de Gaetz”, afirma.
No entanto, a jurisdição do Comité de Ética limita-se aos membros da Câmara dos Representantes. “Quando alguém sob investigação abandona a Câmara — seja por perder uma eleição, demissão, morte ou por expulsão — o Comité arquiva o caso”, esclarece ao Observador Brian Kalt, professor de Direito Constitucional na Universidade do Michigan.
Ora, horas depois da sua nomeação para procurador-geral, Gaetz apresentou a sua demissão do cargo de congressista, o que cessa qualquer jurisdição do Comité sobre os seus atos. “Mas a jurisdição não afeta a possibilidade de divulgarem o relatório“, ressalva ao Politico Kendric Payne, antigo adjunto do gabinete de ética no Congresso. Kalt alerta: “O arquivamento [da investigação] é claro. O que é menos claro é o que eles fazem com o relatório”.
É esta a questão que o Comité de Ética poderá votar esta quarta-feira: deve o relatório sobre a investigação a Gaetz ser divulgado? Não seria a primeira vez que o Comité torna pública uma investigação sobre um ex-membro, mas seria a primeira neste século. Os precedentes remetem para 1987, com o democrata William Boner, e para 1990, com o republicano Donald Lukens, sublinhou Payne. Porém, seja qual for a decisão do Comité, as consequências para Gaetz deverão ser meramente políticas, destacam Levenson e Kalt ao Observador — uma vez que ambas as investigações já foram encerradas.
O Comité Judiciário do Senado, responsável pela nomeação de Gaetz, ainda pode exigir acesso ao relatório e realizar a sua própria investigação. Nesta nova investigação já poderiam ser considerados novos documentos sobre o caso que surgiram entretanto, divulgados por um ataque informático a uma pasta online partilhada pelos advogados das testemunhas, segundo avançou uma fonte anónima nesta terça-feira ao New York Times. “Cabe ao Senado decidir se e como esses documentos podem ser utilizados no processo”, esclarece Kalt.
Posta de lado uma condenação em tribunal, Laurie Levenson sublinha que a condenação política de Gaetz pode ainda acontecer diretamente pelas mãos das testemunhas em praça pública. “As mulheres que testemunharam são livres de falarem com os media sobre o que aconteceu ou através dos seus advogados”, afirma ao Observador. Na verdade, esta possibilidade já foi concretizada: Joel Leppard, que representa duas das testemunhas, declarou na segunda-feira que uma delas “viu o congressista Gaetz a fazer sexo com a amiga”, a menor de 17 anos. Ambas as testemunhas disseram várias vezes ao Comité que receberam pagamentos “por sexo”, acrescentou Leppard à ABC.
Os especialistas ouvidos pelo Observador são unânimes: se o relatório for divulgado, a possibilidade de Gaetz ser aprovado pelo Senado é quase nula. Ainda assim, o ex-congressista não deverá enfrentar repercussões legais. Sem lugar no Congresso, nem a pasta da Justiça, como ficaria o futuro político de Matt Gaetz?
“Estratégia” vs “instinto”. O caminho que Donald Trump tem traçado para o Departamento da Justiça e para Matt Gaetz
O conselheiro republicano Matthew Bartlett sugere quatro futuros possíveis para Gaetz: a sua aprovação (ainda que improvável), a atribuição de um cargo na administração Trump que não exija confirmação do Senado, uma carreira na televisão (no “entretenimento político”) ou um regresso à vida privada. “Não ficaria chocado se o visse noutro papel dentro da administração Trump“, admite ao Observador.
Na verdade, a única forma de a nomeação de Gaetz não avançar é se o próprio ou Donald Trump retirarem o nome. Mas, mesmo debaixo de fogo com o “choque”, a “surpresa” e as críticas dos republicanos, o Presidente eleito não parece ceder. Pelo contrário, estará a contactar diretamente vários senadores republicanos, pressionando-os a aprovarem Gaetz, avançou o Axios na segunda-feira.
Horas antes da reunião à porta fechada do Comité de Ética, marcada para esta quarta-feira, JD Vance, o vice de Trump, entrou em ação e dirigiu-se ao Capitólio com Matt Gaetz. Os dois tinham marcado uma série de reuniões com congressistas republicanos, numa tentativa de os persuadir a aprovar o nome polémico.
Em privado, Trump terá admitido que as probabilidades de Gaetz ser aprovado pelo Senado são baixas, mas continua confiante, revelou o New York Times. O jornal avança que isto fará parte de uma estratégia para baixar os critérios de escolha do Senado: mesmo que chumbem Gaetz, por comparação o nome seguinte será sempre razoável e, consequentemente, aprovado.
Ao Observador, Kabaservice e Bartlett mostram-se céticos que a estratégia de Donald Trump seja esta e estão mais inclinados a ver a escolha improvável de Gaetz (assim como de RFK Jr. ou Tulsi Gabbard) como um “teste de lealdade” aos republicanos. “Há a possibilidade de Trump estar a dizer ao partido: ‘Olhem, é assim que isto vai ser'”, resume Geoffrey Kabaservice. “‘Se não o fizerem, vou fazer a vossa vida num inferno'”. O Presidente, diz o especialista, está a cortar com “o velho sistema do Partido Republicano”.
Matthew Bartlett concorda: “Isto é claramente Trump a testar o Senado, a desafiá-los, a fletir o seu músculo político, a começar uma luta com o seu próprio partido. É típico de Trump: é em parte uma estratégia, pensada para implementar as suas políticas para o país; [outra] parte [é] instinto — de quem se gosta, quem parece bem no momento —, ignorando realidades políticas e vendo onde os dados caem”.
Apesar da proximidade com o Partido Republicano, nenhum dos dois especialistas tem pudor em deixar críticas quer a Matt Gaetz quer a Donald Trump. “Ele não tem futuro político fora dos caprichos do Trump e, por isso, tenho a certeza de que fará tudo o que o Trump lhe disser”, atira Kabaservice. “Gaetz é uma piada de todos os piores impulsos de Donald Trump. E agora essa piada tem uma nomeação para procurador-geral”, resume Bartlett.
Se Donald Trump mantiver a confiança política em Matt Gaetz, tal como é esperado, a sua nomeação enfrentará duas etapas: a decisão do Comité sobre a divulgação do relatório e a sua audiência de confirmação perante o Senado. Tendo em conta que esta última costuma ser uma formalidade — a última vez que houve um chumbo foi em 1989 —, os especialistas ouvidos pelo Observador confirmam que seria “extremamente anormal”. Contudo, antecipam que a situação extraordinária é semelhante ao percurso político de Gaetz: “sensacionalizado”, “escandaloso” e “radical”.
“A legitimidade do bipartidarismo destas audiências vai manter-se. Mas se combinarmos os comportamentos pessoais, as acusações, a falta de experiência e o estilo de vingança política [de Gaetz], estas audiências vão ficar para a História”, remata Matthew Bartlett.