Os médicos que fizeram dezenas de horas extraordinárias desde julho nos serviços de urgência dos hospitais do Serviço Nacional de Saúde não receberam este mês o pagamento do suplemento extraordinário previsto na lei, confirmou o Observador junto de vários médicos de hospitais da zona de Lisboa e também dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS). Em causa está a dificuldade dos SPMS para implementarem uma atualização informática que permita o pagamento, devido à complexidade do novo sistema de contagem das horas extra dos médicos (assente em blocos de 40 horas). Desta forma, os salários de agosto foram pagos sem a parcela referente ao suplemento, o que está a gerar insatisfação junto dos profissionais.
“Foi tudo mal pago. Não se fala de outra coisa”, diz um médico que trabalha no serviço de urgência de um dos hospitais afetados, e que não esconde a insatisfação pela falta de pagamento dos suplementos no valor de mais de dois mil euros. Os médicos afetados pertencem a várias especialidades, todas com atividade na urgência: Anestesiologia, Medicina Interna, Neurologia, Ortopedia.
“Ninguém recebeu ainda o suplemento, ninguém sabe bem quanto é. As pessoas estão descontentes“, diz um outro médico, do Hospital Garcia de Orta, em Almada, que deveria ter recebido o pagamento de um suplemento, equivalente a 40% do salário-base, ou seja, num valor que ascende a várias centenas de euros. O mesmo, sabe o Observador,aconteceu em outros hospitais de Lisboa, incluindo no maior do país, o Santa Maria.
Governo tinha prometido suplemento de até 70% do ordenado por cada bloco de 40 horas
Muitos dos hospitais de Lisboa pagam as horas extraordinárias aos médicos do quadro no mês seguinte à realização do trabalho suplementar. Desta forma, os suplementos (que entraram em vigor a 1 de julho, integrados num novo sistema de pagamento de horas extra) deveriam ter sido incluídos nos salários de agosto — que começaram a ser pagos no início desta semana –, o que não aconteceu.
Na origem do problema, está a complexidade do novo sistema de pagamento de suplementos remuneratórios, aprovado em Conselho de Ministros a 12 de julho, mas que produz efeitos ao início do mês passado. Tal como o Observador avançou a 2 de julho, o Ministério da Saúde decidiu criar um sistema de suplementos — que podem variar entre 40 e 70% do ordenado-base aos médicos do SNS que aceitem fazer pelo menos mais 40 horas em serviço de urgência, para lá das 150 ou das 250 horas extraordinárias a que estão obrigados por lei.
O suplemento é pago sempre que o médico atingir um bloco de mais 40 horas extra para além do limite legal. Uma vez atingido o primeiro bloco de 40 horas extra, as horas extraordinárias feitas a partir daí deixam de ser pagas com a majoração atual. Ou seja, o Ministério da Saúde opta, desta forma, por trocar o valor/hora majorado ao trabalho extra por um suplemento a atribuir por blocos de trabalho suplementar realizados.
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Logo que foi conhecido o teor do decreto-lei, há quase dois meses, os sindicatos médicos alertaram para a complexidade do novo sistema de cálculo. Ao Observador, o secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos, Nuno Rodrigues, salientava que o sistema é complexo para os médicos, que terão dificuldades em perceber quanto poderão ganhar a mais, mas também poderia criar dificuldades aos recursos humanos dos hospitais na contabilização dos valores a pagar. Já a presidente da Federação Nacional dos Médicos, Joana Bordalo e Sá, antecipava que o regime iria “lançar o caos nos hospitais”.
Serviços Partilhados do Ministério reconhecem complexidade dos cálculos do novo sistema
Uma previsão que se está a confirmar, uma vez que os hospitais aguardam ainda, já no final de agosto, que os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde procedam a uma atualização no sistema de pagamentos (de modo a incluir o novo suplemento), que está atrasada devido à complexidade dos novos cálculos. “A SPMS está a realizar os desenvolvimentos necessários, no sistema de informação, para a implementação [do sistema de recompensa do desempenho dos trabalhadores médicos]. Devido à necessária automatização e ao grau de complexidade, estima-se que os desenvolvimentos se reflitam no processamento de vencimentos de setembro“, diz ao Observador a entidade, da esfera do Ministério da Saúde, que gere as áreas de compras, serviços financeiros e sistemas e tecnologias de informação e comunicação da saúde.
No entanto, e ao contrário dos SPMS, os hospitais não avançam sequer com uma data para procederem ao pagamento dos suplementos. O Observador teve acesso a uma circular interna, dirigida aos médicos dos serviços de urgência do Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, em que os clínicos são informados de que “os suplementos remuneratórios serão pagos oportunamente”. “Em função da informação que venhamos a obter por parte dos SPMS, e com os retroativos devidos”, acrescenta aquela unidade hospitalar. No Hospital Garcia de Orta houve uma circular semelhante.
Ao Observador, a Unidade Local de Saúde Almada-Seixal, que integra o Hospital Garcia de Orta, confirma que os suplementos não foram pagos em agosto, e explica que “sempre que existe um novo suplemento, ou qualquer atualização salarial, os SPMS tem de efetuar o desenvolvimento no RHV [o sistema de informação Recursos Humanos e Vencimentos, que é responsável pelo processamento de remunerações e gestão de recursos no SNS e Ministério da Saúde], o que ainda não aconteceu para este suplemento”. A ULS diz que quando os suplementos forem pagos “os valores serão imputados ao mês de agosto, para correto desconto ao nível do IRS”. Já fonte oficial da Unidade Local de Saúde de Santa Maria adianta que se encontra a aguardar que os SPMS efetuem as diligências necessárias para tornar possível o pagamento dos suplementos, que, garante, serão processados logo de seguida.
Médicos acusam Governo de querer pagar trabalho suplementar ao preço do trabalho normal
Recursos humanos terão de contabilizar trabalho extra e ainda sobram dúvidas
Logo que a ferramenta informática esteja disponível, cabe aos hospitais introduzirem o número de horas trabalhadas em regime suplementar por determinado médico, de modo a seja feito o cálculo. Mas até aqui poderão surgir dificuldades. “Quando o diploma saiu, os hospitais colocaram dúvidas à Administração Central do Sistema de Saúde [ACSS], porque não sabiam, e alguns continuam sem saber, a partir de quando se começam a contar as horas para aqueles patamares. É desde o início do ano? É só depois de as pessoas perfazerem as 150 horas extra?“, lembra o presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares, Xavier Barreto, que sublinha que o “ideal era que a ACSS respondesse atempadamente às questões que lhe são colocadas”.
Para Xavier Barreto, o novo sistema de pagamento de horas extra “é mais complexo” do que anterior, pelo que “deveria haver um canal aberto para esclarecer mais rapidamente as dúvidas dos hospitais”. “Tem de haver uma comunicação ágil entre a ACSS e os hospitais“, pede o responsável. No caso do novo suplemento, como em muitos outros, diz, o que acontece é que os diplomas são interpretados de forma diferente por cada hospital, o que gera discrepâncias. Ainda assim, o responsável garante “vai ser tudo corrigido” e que os hospitais “não vão ficar a dever dinheiro a ninguém”.
A somar às dúvidas relacionadas com a contabilização das horas extra e dos cálculos que têm ser feitos, junta-se a contestação jurídica que a Federação Nacional dos Médicos está a levar a cabo ao novo sistema de suplementos. O sindicato não aceita que as horas extraordinárias feitas dentro dos blocos não sejam majoradas e não sejam contabilizadas nos blocos de 40 horas e alega que o novo sistema viola o Acordo Coletivo de Trabalho.
“O trabalho diurno e nos sábados até às 13h não é considerado trabalho extraordinário. É errado, é uma contradição absoluta com o acordo coletivo de trabalho”, argumenta o médico João Proença, presidente do Sindicato dos Médicos da Zona Sul, associado da FNAM. O responsável vinca que o departamento jurídico da FNAM está a aguardar, desde julho, uma resposta tanto da ACSS como do Ministério da Saúde. O sindicato tem recebido cada vez mais queixas relativas ao novo sistema de suplementos. “Temos o serviço jurídico cheio e vamos ter de contratar mais advogados”, revela João Proença.
O Observador questionou a ACSS sobre se já tinha esclarecido as dúvidas dos hospitais e de outras entidades (como os sindicatos médicos) em relação à contagem das horas extra mas não obteve resposta.