Arroz doce nem prová-lo. Em criança fez a sobremesa tantas vezes, na sua panela pequenina, que ainda hoje não consegue vê-la à frente. Nem cheirá-la ou comê-la. Perdeu-se um doce tradicional com a assinatura de Miguel Castro e Silva, mas ganharam-se centenas de receitas e alguns restaurantes onde é possível ficar a conhecer o trabalho de um dos responsáveis pela “nova cozinha portuguesa”.
Miguel Castro e Silva, de 56 anos, está sentado no sofá de um dos apartamentos do hotel The Lumiares, em Lisboa, onde moram os dois novos restaurantes pelos quais está responsável: o Lumni e o Mercado do Café. Simpático, é fácil arrancar-lhe um sorriso e algumas confissões contadas em tom de brincadeira.
O chef que quase dispensa apresentações nasceu numa família burguesa do Porto e desde muito cedo se dedicou à música: começou a tocar piano com seis anos de idade e arrepende-se do dia em que pôs o instrumento de lado. Chegou a ter duas bandas na adolescência, tocou com o amigo e vizinho Rui Veloso e estava lá no dia em que António Variações gravou o primeiro disco. No meio disto tudo, e intervalando experiências musicais, estava o dom para a cozinha, sempre à espreita. Ainda tentou ser médico por influência da família, mas descobriu não ter “queda” para a coisa.
Ainda hoje diz que o primeiro restaurante resultou de um dos maiores erros que já cometeu. Apesar disso, não é homem de ficar a remoer o passado e prefere seguir em frente. Diz-se “nervoso”, por não querer ou saber parar, com mais paciência para o trabalho da cozinha e menos mau feitio — produto da idade e da experiência. Nesta longa entrevista de vida, Miguel Castro e Silva leva-nos numa viagem ao passado, onde o que não faltam são as riquezas da cozinha portuguesa.
Nasceu no Porto, mas vive em Lisboa há alguns anos. Há quanto tempo?
Estou a viver em Lisboa há oito anos.
Não tem sotaque…
Pontualmente, uma ou outra coisa. Também não acho que faça mal não ter. Acho que às vezes digo “o quê?”. É o meu sotaque do Porto. [risos]
Lisboa já é uma primeira casa?
Neste momento é uma primeira casa, sim. Sempre gostei muito de Lisboa. Estive muitos anos fora de Portugal. Aos 18 acabei o liceu, fui para a Alemanha estudar e andei um bocadinho pelo mundo fora. Quando voltei ao Porto trabalhei na área têxtil. Viajava muito, estava praticamente duas semanas em viagem. Por esse motivo sempre fui um pouco um cidadão do mundo, mas sempre gostei muito de Lisboa. Acho que a cidade tem sido recuperada, aliás, todo o país está com uma dinâmica interessante.
A sua árvore genealógica também ajuda a confirmar que é, de facto, um cidadão do mundo…
A brincar costumo dizer que sou um rafeiro europeu. Nasci no Porto, tenho pai português mas a minha avó do lado paterno é britânica, do País de Gales. A minha mãe é alemã, com alguma ascendência francesa. Por isso, a Europa está aqui mais ou menos bem representada [risos].
Portanto, tem uma costela alemã. Há momentos em que é mais português e em que é mais alemão?
Acho que sim. Acho que com a idade começo a ser mais alemão em algumas coisas. Tenho menos paciência para alguma estupidez. Mas como tenho uma carga de trabalho grande, tenho de ser muito disciplinado para conseguir que sobre algum tempo livre para descansar, acho que isso é um pouco o meu lado alemão. De resto, frequentei o Colégio Alemão, fiz lá o décimo segundo ano, sendo que o tipo de ensino que é dado envolve muita disciplina — aprende-se muito a fazer contas e cálculos de cabeça, por exemplo, a parte do raciocínio é muito valorizada, o que é bom. Mas depois acho que o meu lado mais livre e criativo é mais português.
Lado criativo em que sentido?
Falo de alguma liberdade em criar, em pensar, experimentar e fazer. Mas devo dizer que esse lado também deve vir do lado da família alemã, porque todos eles tocavam algum instrumento (embora não fossem profissionais). A minha mãe toca piano e comecei com o piano aos seis anos. O meu avô tocava violino e a minha avó guitarra.
A música foi a primeira grande paixão que teve?
Aos seis anos comecei com o piano. A música sempre teve um papel muito importante para mim. Dizem que era muito bom aluno. Por razões diversas, aos 13-14 anos deixei o piano. Depois continuei com a guitarra e com o contrabaixo mas, confesso, nunca me revi na guitarra como me revia no piano.
Se fosse hoje, gostaria de ser um pianista profissional?
Gostaria muito de… Tenho um piano em casa e de vez em quando faço umas tentativas, talvez um dia.
Fazer uma música pode ser um processo semelhante a criar uma receita?
Boa pergunta. De alguma forma, sim. Já compus música no tempo em que tocava. Na parte das receitas há várias formas de as criar. Às vezes é a partir da influência de uma coisa que provei, algum sabor ou alguma ideia, outras vezes acontece na passagem pelos livros, na medida em que há uma imagem que me inspira. Acho que na música isso também acontece. Às vezes é uma coisa por temas, como um jantar vínico em que vou provar os sabores que parecem realçar certas qualidades daquele ou deste vinho… Depois há coisas que vêm do nada. Já me aconteceu acordar a meio da noite com uma ideia e ter de a escrever — uma pessoa não dorme enquanto não escrever aquilo! Vou tendo fases. Houve a fase dos vinagretes, em que resolvi experimentar todo o tipo de vinagretes — de vinho tinto, de framboesa, disto e daquilo. Criei uns 30, sendo que ainda uso meia dúzia com regularidade. Agora recentemente tenho andando nas brincadeiras das manteigas. Neste momento acho que vamos com 28 ou 30 receitas — manteigas muito giras. Gosto de explorar a cozinha portuguesa.
De tanto explorar, o que é que encontrou?
Há 25 anos a nossa gastronomia era muito maltratada. Basicamente as pessoas diziam que a cozinha resumia-se ao bacalhau, à feijoada e ao cozido. Acho que nem são das coisas mais distintivas — o bacalhau sim, mas a feijoada e o cozido não (há cozidos na Europa). Comecei a explorar outras facetas, por exemplo, produtos aparentemente secundários como o milho e a sêmola de milho, que é uma coisa que marca muito a nossa cozinha. A forma de nós trabalharmos o pão é quase única. Não conheço praticamente nenhum país em que se trabalhe o pão como nós, que fazemos as migas, as açordas e os ensopados. É uma forma muito interessante de trabalhar o pão. Depois temos a couve portuguesa e o grão de bico; de norte a sul do país temos vários pratos em que isso entra e marca muito a nossa cultura gastronómica.
Já antes contou que quando começou a trabalhar como cozinheiro havia muita desconfiança em relação a tudo o que era novo…
O primeiro problema que atravessei… Sou de uma família de classe média, da burguesia do Porto, e há 25 anos ser cozinheiro não era uma coisa como é hoje, fashion.
Quer dizer que não era algo socialmente aceite?
Não, na altura não. A brincar digo que a profissão de cozinheiro estava socialmente abaixo do pedreiro. O pedreiro sabia-se que era homem, o cozinheiro já era assim… um bicho esquisito. Normalmente [eram] pessoas mais humildes, com pouca formação… Tive de enfrentar preconceitos, sobretudo porque tenho o 12º ano, falo línguas, frequentei a universidade e sou viajado. Comecei relativamente tarde na cozinha profissional, aos 31 anos. Havia muitos preconceitos e tive de ir contra isso. Mais tarde, um bocado pela minha vivência e pela procura que fiz da cozinha portuguesa, encontrei as ervas aromáticas — por causa disso acusaram-me de fazer cozinha francesa, porque usava tomilho e outras coisas. Quando, de facto, a nossa cozinha é rica nessas ervas todas, que crescem espontaneamente. Se formos por Portugal adentro encontramos o funcho, o tomilho e os orégãos.
Por é que acha que isso na altura era visto como uma coisa tão ousada ou diferente?
É o que dizia há pouco. A cozinha portuguesa restringia-se a meia dúzia de pratos, era muito limitada. E depois havia um contrassenso…. Havia os snack bars que serviam o cozido… Quer dizer, os snack bars são supostos ser uma coisa rápida e informal, mas depois praticavam cozinha opulenta e rica. Acho que estávamos um bocadinho perdidos, havia alguns restaurantes no interior que praticavam uma cozinha mais original e diversificada, mas o grosso da nossa cozinha eram os cozidos e pouco mais.
Houve uma altura que chegou a falar de uma cultura de “farta-brutos”. Acha que já não existe?
Continua um pouco. Hoje em dia é tudo um pouco mais mitigado. As coisas estão, de facto, um bocado diferentes: por um lado as pessoas estão mais esclarecidas, por outro, acho que há muita ilusão. Em Portugal muitas vezes, e isto ainda acontece, a qualidade é associada a quantidade. Lembro-me de um restaurante no interior, no Norte, conhecido pela posta mirandesa. Essa posta tem características muito próprias. Quando entrei no restaurante, vi na vitrine uma peça de carne enorme, que mais parecia ser de um elefante, não era de certeza da vitela mirandesa. Foi isso que nos serviram e as pessoas só diziam “isto é muito bom porque é muito”. A carne era péssima, como não podia deixar de ser, aquilo até dava para dez pessoas. Apesar de não se conseguir comer, havia aquela ideia de opulência. As pessoas deixam-se enganar: vão comer uma posta mirandesa que de mirandesa não tem nada.
Sente que há falta de educação gastronómica?
Hoje em dia as pessoas estão supostamente mais esclarecidas. Há estes programas todos… Há uns anos houve a moda do vinho do Porto e lembro-me de uma pessoa que não percebia nada de vinhos ter comprado um livro sobre a bebida e, depois, dizer cada barbaridade. Tinha lido o livro, lembrava-se de que na página cinco dizia não sei o quê e, por isso, dizia as coisas com um à vontade… De facto, com estes programas e com a moda dos chefs as pessoas acham que estão mais esclarecidas e há, de facto, uma alimentação mais alternativa. Mas depois vai-se ver o que é que se compra neste país, vai-se aos hipermercados e, de facto, não.
Não se mudou assim tanto de hábitos?
Não.
Concorda quando se diz que há uma diferença entre ser-se cozinheiro e ser-se chef?
Eu diria… Acho mais que sou cozinheiro. Ser chef é, dentro da profissão de cozinheiro, uma posição semelhante a um diretor, não se deixa de ser um gestor. A parte de ser chef é a mais chata no meio disto tudo, o que gosto mesmo é de cozinhar.
Além de ter começado a tocar piano aos seis anos, era vizinho do Rui Veloso, não era? Havia alguma relação com ele, tocava com ele?
Não, eu era o mais novo, era o puto. Continuo a ser muito amigo do Rui e estamos regularmente juntos. Hoje em dia a diferença de idade é menor em percentagem mas, na altura, o Rui… acho que fazemos quatro anos de diferença. Lembro-me perfeitamente de a malta do bairro se encontrar na cave dele e lembro-me do dia em que o Rui entra por ali a dentro a dizer “epá, descobri um disco que tem um som… este tipo é bestial”. Era o primeiro disco dos Dire Straits e ele estava entusiasmadíssimo com isso. Tocava baixo e, de vez em quando, acompanhava-o. Quando aquilo virou sério, eu não tinha idade para dar concertos — teria 13 ou 14 anos quando o Rui começou.
Como é que foi crescer no Porto?
No Porto há… ui, há quantos anos? Basicamente há 40 anos não havia praticamente discotecas, havia um ou dois bares. O Porto era uma cidade muito pequenina, muito fechada, e a nossa vivência era entre amigos, na cave do Rui. Um outro amigo tinha uma casa grande com uma espécie de cave com acesso pelo jardim… era o nosso ponto de encontro ao fim de semana, o nosso bar. Não havia a oferta que há hoje em dia.
Chegou a ter uma banda?
Sim, aliás tive duas bandas em paralelo. Nos meus 16-17 anos tinha uma banda do Colégio Alemão e tinha uma outra, fora do ambiente de colégio, em que o Toli Machado, dos GNR, tocava bateria e eu baixo. Atuámos algumas vezes, nomeadamente nas festas do colégio, que eram muito conhecidas — era onde se arranjava o par do próximo ano [risos]… Pronto, toquei lá com as duas bandas.
Na altura que tipo de música ouvia?
Sempre ouvi muito jazz. Continuo na mesma linha, não mudei muito, confesso. É claro que hoje em dia há outras coisas que se vão ouvindo, que são boas e interessantes. Não gosto de folk, mas há um tipo de folk que gosto muito, como Creedence Clearwater Revival. Na altura ouvia coisas um pouco mais pesadas, como Ten Years After. Na banda que tinha com o Toli tocávamos assim coisas levezinhas. [risos]
Na altura sonhava seguir uma carreira na música?
Não sei, acho que andei bastantes anos um bocado perdido, talvez pela rutura com o piano. Andei alguns anos sem saber muito bem… Estudei biologia marinha, mas não concluí, depois trabalhei na música durante dois anos, sensivelmente. Estive uns tempos na Valentim de Carvalho, em Lisboa, o que foi giro. Aliás, foi pela mão do Rui que vim aqui parar, participei em algumas gravações, não como músico, mas como técnico, incluindo no primeiro disco do António Variações, por exemplo.
Ainda se lembra desse episódio em particular?
Sim, vivi momentos muito giros. Um dos momentos mais marcantes foi o concerto, a gravação do concerto dos Trovante na Ala Magna. Ainda hoje me arrepio… Foi um concerto tão intenso, então estando em cima na régie, a ver as pessoas a acender as luzes, todo o ambiente, as pessoas a cantarem… Foi brutal.
O que é que se seguiu à música?
Depois estive na Alemanha, em Munique, onde trabalhei mais com música minimal. Nessa altura a música nem sempre chegava para viver, então arranjava uns trabalhos extra em restaurantes. Sempre tive o gosto da cozinha. Aliás, quando vivia fora normalmente partilhava o apartamento com amigos e era sempre o cozinheiro de serviço, o que era bom para mim porque fazia aquilo de que gostava e os outros faziam as limpezas da casa. Eles ficavam contentes porque tinham comida de jeito, e eu ficava contente porque não tinha de fazer a parte das limpezas.
Esteve um período em Munique a trabalhar ou a estudar?
Não fui estudar, fui aventurar-me na música. Aos 18 fui para a Alemanha estudar biologia, estive lá dois anos e pouco, não terminei o curso. Voltei a Portugal, estive um tempo no Algarve, depois em Lisboa, na Valentim de Carvalho. Depois fui tentar a minha sorte na música em Munique até que voltei definitivamente. Em Munique acabei por profissionalizar-me um pouco a nível de cozinha. Tive uma experiência curiosa também: fiz um estágio num restaurante pequeno e muito bom e foi aí, em Munique, que aprendi a trabalhar o peixe, que é um aparente contrassenso, uma vez que isso aconteceu na cidade mais longe de qualquer mar para trabalhar peixe — ele, o dono do restaurante, recebia peixe fresco diariamente. Em Portugal, na cozinha tradicional, a forma de trabalhar peixe é um pouco limitada, é grelhado ou no forno, depois há umas caldeiradas e pouco mais. De facto, aprendi a olhar para o peixe de uma forma diferente. Gosto muito de trabalhar peixe pela sua versatilidade — o mesmo peixe pode ser apresentado de várias maneiras.
Descobriu outras formas de trabalhar o peixe na Alemanha e também descobriu um apreço especial pela cozinha italiana em Hong Kong.
Já como cozinheiro comecei a ser convidado para representar Portugal em várias partes do mundo. Estive em Hong Kong quando ainda trabalhava na área têxtil, mas voltei lá quatro ou cinco vezes. Duas das vezes estive no Ritz Carlton e aí havia um restaurante italiano do Umberto Bombana, um tipo brilhante, e conheci muito de cozinha italiana com ele. Aliás, foi giro porque da primeira vez que estive lá ele estava com uma operação de trufa branca, então levava-lhe uma morcela com não sei o quê, ele ficava todo contente porque gosta daqueles sabores mais rústicos, e devolvia-me um prato com massa e trufa branca. E assim sucessivamente. Da segunda vez que lá estive fui mesmo para o restaurante dele e foi muito giro. Íamos os dois às mesas discutir a ementa com os clientes em função dos vinhos que iam beber, etc.
Passou quanto tempo lá?
Normalmente estas ações duram à volta de 10, 12 dias.
São muito intensas?
Sim, bastante. Começando pelo jet lag. Uma das experiências mais intensas que tive foi fazer o jantar da presidência de Jorge Sampaio, a última receção que fez enquanto presidente, em Xangai — Xangai não era o que é hoje. Havia um centro de congressos para 400 pessoas e resolvi fazer uns cinco ou seis pratos. Cheguei lá e havia apenas um empregado que vagamente falava francês, o resto era só chinês. Tinha enviado indicações do que ia fazer, como os ingredientes de que ia precisar, e a primeira reação deles foi dizerem-me que só iam servir uma sopa e um prato. Tive de andar algum tempo a negociar com eles… Lá conseguimos fazer o jantar — correu muito bem mas houve momentos caricatos. Tinha 20 chineses a olhar para mim sem perceberem o que dizia. Pôr a máquina a funcionar não é fácil. Outro momento caricato aconteceu na hora do serviço: no dia de serviço eles contrataram 70 empregados de mesa para um serviço que normalmente se faria com 35, no máximo. Puseram os empregados a entrar uns do lado e outros do outro, até que houve um choque… não houve mortes só por acaso. [risos] Durante uns 15 minutos aquilo bloqueou, até que eles conseguiram fazer com que metade da equipa recuasse, ficasse quieta num canto — aí sim, começou o serviço.
Outra história que tive foi em São Paulo, fui convidado para fazer a inauguração de um restaurante que, pensava eu, tinha 50 lugares. Quando cheguei lá era um restaurante com 500 lugares. Pânico. Cheguei a São Paulo com 39 graus e meio de febre, com um restaurante a abrir passado um dia e meio e com uma festa de inauguração com 450 pessoas. Vinham-me dar os parabéns e eu com uma equipa de cozinha completamente disléxica, sem saber o que fazer. Aquilo foi uma aventura… O restaurante estava cheio, a porta estava fechada e lá fora havia uma fila a dar a volta ao quarteirão. Está a ver o filme que foi. Nisto tudo gravei dez programas de televisão — ao segundo dia já me reconheciam na rua. Pânico.
Voltemos a biologia… Começou por estudar nesta área para fugir à medicina, é verdade?
Um bocado. Somos uma família de médicos, pai e avô são médicos. Lembro-me que tentaram convencer-me a ser médico também. Assisti a duas operações, das duas vezes desmaiei. Cheguei à conclusão que aquilo não era para mim.
O que lhe fez assim tanta confusão?
Foram coisas básicas. O meu pai é oftalmologista. Na altura a preparação na operação era virar o olho ao contrário para fixar a pálpebra — acho que hoje em dia as coisas mudaram, mas na altura era assim. E aquele movimento… foi o que me aconteceu a mim também. Pumba!
Então, quando é que se deu aquele momento em que percebeu que a comida era o caminho a seguir?
Esse momento foi um momento de asneira. Quando trabalhei em têxtil, trabalhei muito com uma empresa suíça, mas as coisas não correram muito bem — houve umas atitudes das quais não gostei — e resolvi deixar de trabalhar com eles. Na mesma altura a minha mulher também estava num processo semelhante… Estávamos os dois a questionar-nos “e agora?”. Nisso passo por uma quinta na Maia, que estava à venda e que tinha um tasquinho em baixo. Então, comprámos aquilo e transformámos o tasquinho no meu primeiro restaurante. Percebi que tinha feito a maior asneira da minha vida passado uma semana de abrir o restaurante. Porque, de repente, o cozinheiro estava no lodo. Já não havia caminho para voltar atrás, tinha investimentos feitos. Mas foram momentos bastante duros, em termos de trabalho. Esta não é uma vida fácil e como também tinha ideias um bocado diferentes… Abrir um restaurante à data, no Porto, que não tivesse filetes de pescada era quase um insulto. Na altura a oferta era muito semelhante, eram os filetes de pescada, as tripas ou as feijoadas… Vim com outras ideias, com pratos que não encaixavam.
Lembra-se do primeiro prato que serviu nesse restaurante?
Fujo um bocado ao termo cozinha de autor porque acho que há algum tempo que é bastante mal utilizado. Mas o primeiro prato da minha autoria até foi criado antes da abertura do restaurante, num passeio em que fiz no País Basco, no interior, onde se comia bem — misturava-se muito feijão e várias leguminosas com produtos do mar. Estou a falar de uma cozinha mais rústica do interior. Isso inspirou-me e de volta a Portugal peguei na ideia e fiz umas ameijoas à bulhão pato em que juntei feijão manteiga e substituí a acidez de um limão por um tomate triturado, ficou muito bom. Ainda hoje é um prato referência. Na altura já tinha a mania dos petiscos e das saladinhas.
Apesar de ter sido uma aventura complicada, começou a receber bom feedback?
Sim, no Porto começou a haver uma boa adesão. Depois convidaram-me para abrir o restaurante Miguel e foi aí que comecei a ter visibilidade na imprensa. O primeiro artigo foi na Exame. Lembro-me perfeitamente do dia… Foi uma daquelas segundas-feiras, daqueles dias de inverno horríveis, chuvosos, desconfortáveis, não estava muito bem disposto e a Graça [a mulher] estava meio adoentada, e há um senhor que janta, paga e depois pede para chamar o gerente. Era o Gonçalo da Silva que se apresentou, disse que tinha gostado muito do que tinha comido e que gostava de escrever sobre isso. Mais tarde saiu um artigo grande do Nogueira Gil, que tinha ido lá várias vezes e é aí que aparece o termo “cozinha de autor”. Nas várias visitas que faz ao restaurante percebe que há ali uma coerência entre os pratos servidos e, como ele é francófono, compara isso com o cinema francês de autor.
É essa uma das origens para o termo “cozinha de autor”?
Penso que será por aí. Foi a primeira vez em que se mencionou o termo “cozinha de autor” em Portugal.
É verdade que chegou a fazer tanto arroz doce que ficou enjoado do prato?
Em pequeno tinha um amigo, meu vizinho, com quem gostava de fazer experiências na cozinha. Tinha um tacho pequenino onde fazia arroz doce. Acho que fiz tanto arroz doce que hoje em dia não o consigo comer. Nós em casa tínhamos uma cozinha um bocado mais burguesa, com panadinhos de vitela com arroz de cenoura e ervilha e essas coisas. Mas, por outro lado, a minha mãe cozinhava bem e trazia uma cozinha da Alemanha, com outros tipos de elementos. Comia-se bem em minha casa, curiosamente comia-se pouca cozinha portuguesa.
O Miguel, em conjunto com outros chefs, como Vítor Sobral, é considerado um dos criadores da nova cozinha portuguesa…
Sim, mas isso é a paixão que descubro mais tarde. Tive a oportunidade de viajar muito e de conhecer muito bem Portugal.
A Maria de Lourdes Modesto chegou a chamá-lo um dos três meninos de ouro (em conjunto com Vítor Sobral e Joaquim Figueiredo). Foi uma altura em que realmente houve a criação desta nova cozinha?
Sim, os três fomos um bocadinho os primeiros a desafiar outros caminhos. Para mim, o grande momento foi a descoberta de Portugal, a riqueza de Portugal. Foi uma descoberta que fiz muito pela vivência que já tinha tido antes e depois, já enquanto cozinheiro, pela leitura — o livro da Maria de Lourdes Modesto é a bíblia para nós todos, um ponto de inspiração mas também de esclarecimento, mas também há outros livros — e pela pesquisa que fiz. Na altura não havia nada de Internet…
É uma altura em que desafiam convenções gastronómicas em Portugal. Esse tempo deixou saudades?
Acho que continuo com o mesmo espírito, um pouco irreverente e nervoso — nervoso no sentido de querer experimentar, de não dar as coisas por concluídas. Aliás, às vezes acho que é difícil trabalhar comigo, e as pessoas já estão avisadas. Por um lado sou muito disciplinado mas, depois, sou o primeiro a querer quebrar essa mesma disciplina. Para a máquina de cozinha funcionar é preciso estar tudo muito bem disciplinado, mas quando vejo que as coisas estão a correr bem posso ter liberdade de experimentar e de fazer.
Por falar nisso, chegou a dizer que já teve muito mais mau feitio do que tem hoje…
Sim, acho que de um modo geral os cozinheiros são conhecidos pelo seu mau feitio. Acho que isso tem que ver um pouco com a profissão e o tipo de ambiente. É considerada uma das profissões mais stressantes — uma pessoa está numa cozinha onde não abunda espaço, é quente, há um nível de pressão muito grande, lá fora as pessoas têm de ser atendidas a tempo e horas, e com qualidade, e há toda uma equipa que tem que trabalhar coordenadamente para o mesmo fim. Há um nível de stress muito elevado e, de facto, houve momentos em que me passei, pronto. Dei uns berros. Hoje isso acontece menos, por um lado devido à experiência, por outro, devido à idade.
Atualmente tem quantos restaurantes?
Diretamente geridos por mim tenho o corner no Mercado da Ribeira e o Less na Embaixada. Em parceria, tenho a cafetaria da Gulbenkian, estou a abrir estes dois, Lumni incluido, mais o rooftop na Pollux. Depois tenho um em Gaia, que é uma parceira com a Porto Cruz. Ah… E tinha outro deCastro na Praça das Flores que entretanto fechei, mas que vai reabrir noutro lado.
Como é que se consegue gerir tantos espaços ao mesmo tempo?
Criando equipas, tendo pessoas que me substituam na gestão, nas várias tarefas que há. Não deixa de ser cansativo, ainda por cima estes são espaços que funcionam de maneira diferentes, o conteúdo é diferente. Mas nestes 25 anos de experiência tive muitas oportunidades de experimentar vários caminhos e, no fundo, estou a fazer as três componentes com que mais me identifico na cozinha: no Mercado da Ribeira é uma cozinha mais rápida mas de base portuguesa, no deCastro é uma cozinha portuguesa com toque de modernidade e o Less é muito… Lembrei-me do Less há uns dois anos quando olhei para a parte da minha cozinha que estava um pouco encostada, muitas vezes um pouco fora do tempo mas que achei que podia ser servida num ambiente mais descontraído — risottos, peixes marinados… Uma boa parte da ementa do Less são pratos que têm mais de 10, 15 anos.
Existe cozinha fora do tempo?
Sim, muito. Tive muita essa experiência. Tenho um prato que é um bacalhau recheado com compota de cebola e vinho do Porto, servido num guisado de mão de vitela. Quando fiz esse prato há uns 16-17 anos fui literalmente insultado, ao ponto de escreverem um artigo no jornal… Foi terrível. Encostei o prato e nunca mais o fiz. Há dois anos, em Gaia, a propósito de um jantar relacionado com a Essência do Vinho, lembrei-me de retomar esse prato — não é que a reação foi dizerem-me que era o melhor prato de bacalhau de sempre? Ficou tudo encantado com o prato. As pessoas de facto mudaram e todo este movimento em Portugal terá trazido algo de bom.
É de alguma forma doloroso fechar as portas de um restaurante?
Por acaso não tive de fechar muitos. Houve um que fechei e tive pena, os outros foram transições. Da quinta vim para o restaurante Miguel e dali mudei-me para o Bull & Bear. Depois abri o BBGourmet numa sociedade, mas houve coisas que não correram bem e saí. Isso custou, naturalmente. Vim para Lisboa, onde abri o deCastro nas Avenidas Novas, foi um restaurante que teve muita adesão, mas não era sócio do restaurante — estive com eles sensivelmente seis anos; o nome era meu e o projeto estava um pouco esgotado. Estive no Largo durante cinco anos, mas aí não era sócio. Na Praça das Flores tive uma certa pena porque era um espaço de que gostava muito, mas era um restaurante que funcionava muito por épocas. Achei por bem fechar. Para além de tudo, isto é um negócio. Não deixo de ser empresário e tenho muitos funcionários por minha conta.
Acha que uma estrela Michelin faz-lhe falta?
Sem querer ser presunçoso, acho que já tive mais ou menos todas as distinções que poderia ter tido, menos a Michelin. Curiosamente no Bull &Bear, durante o movimento dos vinhos do Douro, vinham cá muitos jornalistas e gerava-se um ambiente muito giro. Muitos desses estrangeiros perguntavam-me quantas estrelas é que tinha, não se tinha alguma.
Fora restaurantes, o Miguel já teve vários projetos…
Outra componente minha, e acho que aí é o lado tecnológico da minha passagem pela biologia, é a cozinha a baixa temperatura, coisa da qual sou considerado o pai em Portugal. É uma tecnologia que comecei a explorar talvez há 15 anos. A razão para explorar essa tecnologia é porque a cozinha portuguesa é muito uma cozinha de tempo — a sopa que está quatro horas a cozinhar lentamente ou a carne que é assada durante três, quatro e cinco horas num forno de lenha. Mas depois é uma cozinha que tem de ser comida na altura, sob pena de não ter piada. A baixa temperatura permitiu-me recriar essa atitude de cozinha lenta em doses individuais, o que me permite servir esses sabores num ambiente de carta do dia a dia. Foi uma tecnologia que fui explorando e que mais tarde apliquei na área industrial. Inicialmente até desenvolvi uma linha minha de comida a vácuo, aí também estava à frente do tempo. Bastantes anos depois, enquanto consultor de uma grande superfície, desenvolvi uma linha nova de refeições prontas — parte dela também recorreu a essa tecnologia, com resultados interessantes.
Tem quantos filhos?
Tenho a Rita, que está em Nova Iorque, e tenho dois enteados — a minha enteada tem uma neta que é a minha grande paixão. A Rita também tem uma história engraçada, faz ballet desde os seis anos e formou-se em história. Sempre teve o bicho do ballet, foi tendo aulas e quando acabou a licenciatura teve oportunidade de trabalhar numa pequena companhia. Começou a dar aulas e chegou à conclusão que queria continuar a seguir o ballet. Para isso precisava de fazer um mestrado: candidatou-se à Escola Superior de Artes em Lisboa, onde foi recusada com o argumento de “experiência prática a mais”. Então, mandou a mesma candidatura só para a melhor escola do mundo, a American Ballet Theater, em Nova Iorque, e foi aceite. Acabou o mestrado há meio ano e está a trabalhar. Foi só uma das melhores alunas do mestrado.
É difícil conciliar a vida profissional com a familiar?
Não é fácil. Estou numa fase diferente do que estava antigamente. Antes tinha essencialmente um restaurante, o Bull & Bear, além de ser consultor em Serralves, mas o que ocupava principalmente o meu tempo era o restaurante, onde estava muito presente. Os horários de trabalho é quando os outros têm momentos de lazer, os almoços e os jantares, etc. Por norma, ao domingo o restaurante estava fechado e tentava compensar um pouco. Mas no caso da minha filha mais nova, a Rita, levava a miúda à escola de manhã e depois tentava ir buscá-la à escola e estar com ela um pouco durante a tarde. Acho que o se tenta fazer é passar um tempo de qualidade com as pessoas. Hoje em dia a minha vida é um pouco diferente, vou estando nas cozinhas — então neste fase de arranque estou muito presente. Mas muito do meu trabalho hoje em dia é feito em computador.
Ouvimos dizer que deixou de fumar.
Sim, há um ano e pouco.
Tem corrido bem?
Tem!
Algum outro hábito que tenha?
Gosto de beber e de provar vinho, mas isso já é quase profissional. O Dirk Niepoort estava no princípio da carreira dele e andámos os dois a explorar vinhos. Sabendo que cozinhava razoavelmente bem, ele quando tinha pessoas ligava-me e dizia: “Miguel tenho uns vinhos para provar, vêm jornalistas, o que é que vai fazer?”. Há quase 30 anos fizemos jantares gastronómicos em minha casa, em que tentávamos fazer wine paring, isto é, fazer comida em função dos vinhos que iam ser provados. Devo ter sido das primeiras pessoas em Portugal a fazer, já enquanto profissional, jantares vínicos — ainda na quinta fazíamos, mas à porta fechada. No restaurante Miguel fiz com o Dirk, o Nicolau de Almeida e o Luís Pato, etc. Tenho uma proximidade muito grande com o vinho porque também faço vinhos, comecei a fazer vinhos há uns 14 anos.
É sempre em parceria com produtores? Tem noção de com quantos produtores já colaborou?
Hmm… Neste momento acho que tenho 11 ou 12 vinhos. Terei colaborado com sete ou oito produtores. Atualmente faço vinho em Portalegre com o Rui Reguinga, no Dão com o Carlos Lucas e com a Gran Cruz/Dalva/Ventozelo. São parcerias giras e a minha opção é trabalhar com as marcas. Acho que é um win-win.
O Miguel é um enófilo quase enólogo?
Dizer isso seria pretensioso da minha parte. É mais ou menos como dizer que um tipo que faz umas coisinhas jeitosas na cozinha é cozinheiro profissional.
Quantos dos seus vinhos estão no Lumini?
Quase todos.
Disse numa entrevista que daqui a uns anos gostaria de abrir um “deCastro do caraças”. Como seria esse restaurante?
Disse isso? Não me lembro muito bem de o ter dito. Pegando na ideia… o deCastro é cozinha portuguesa. Tudo tem de ter um DNA português.
Então, um “deCastro do caraças” seria à base de comida portuguesa?
Sim, exatamente. Aliás, há um projeto que está para daqui a algum tempo, diria dois anos, que a realizar-se acho que vai ser um projeto que me vai dar muito gosto e poderá ser um bocadinho esse “deCastro do caraças”, seja o que for.
Onde é que estamos, exatamente? Que hotel é este e que restaurantes criou para ele?
Nós estamos num palácio antigo. Eu devia saber… penso que é do século XVII ou XVIII. É o mais antigo palácio aqui no Bairro Alto, que foi recuperado há pouco tempo. Fica junto ao miradouro São Pedro de Alcântara e ao Elevador da Glória. São apartamentos com gestão hoteleira. No último piso estou a abrir um restaurante chamado Lumni, que tem umas vistas fantásticas. É um espaço muito agradável, onde vou voltar à cozinha que fazia no Bull & Bear, mais experimentalista, com mais liberdade. No rés-do-chão vou ter um espaço, uma cafetaria com petiscos, com alguma cozinha de conforto portuguesa. Também vou explorar a parte do pão, dos enchidos e dos queijos.
Ouvimos dizer que, talvez daqui a quatro semanas, o Miguel abra outro espaço. É isso?
Sim. Estamos a preparar também a abertura de um Less no piso da Pollux [na Baixa de Lisboa], que vai ser um rooftop. Um espaço muito giro, também com umas vistas fantásticas, embora diferentes destas. Vai ser no registo do Less que tenho na Embaixada, em parceira com a Gin Lovers, e vai ser uma cozinha muito à base de marinados, de tártaros e risottos. Ali vou ter três coisas diferentes que… logo verá.
Ao fim de tanto tempo, ainda há borboletas quando inaugura um novo restaurante?
Algum nervoso, sim. Principalmente neste restaurante… Aliás, em qualquer um. Mas este representa uma cozinha que ficou suspensa durante vários anos e voltar a essa cozinha mais elaborada, com menus de degustação, tem-me sabido bem — tenho tido uma boa receção das pessoas. Acho que a minha cozinha é uma cozinha de muito produto, gosto muito de o trabalhar. Numa altura em que está na moda uma cozinha um pouco, sei lá, de pratos com mais elementos… Até ao momento as pessoas têm aceite esta maneira de trabalhar. Depois é o trabalho de constituir uma equipa, e não é só a equipa de cozinha, mas também a de sala. Há muitos pormenores, então num restaurante com estas características. Também abri há pouco tempo, em fevereiro, a cafetaria da Gulbenkian. Foi uma remodelação bastante grande e, ainda por cima com a exposição dedicada a Almada Negreiros a abrir, aquilo foi uma enchente de gente. Embora a cozinha seja mais simples — havendo sempre um objetivo de qualidade e de consistência –, as primeiras semanas foram tempos duros. A brincar digo que já não tenho idade para isto. Mas, pronto, lá vou tendo.