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Os casos chegaram à justiça, primeiro, através de habeas corpus: pedidos de libertação imediata que alguns cidadãos apresentaram e que foram aceites pelos tribunais dos Açores. Agora, em pelo menos seis casos, a justiça pode ir mais longe. O Ministério Público (MP) está a investigar cada um deles para perceber se houve prática de crime nos casos em que portugueses e turistas se viram privados da sua liberdade de forma inconstitucional (como viria a decidir o Tribunal Constitucional). Três pessoas num quarto de 20 metros quadrados ou instruções dadas em português a quem não fala a língua, pedidos de ajuda sem sucesso, foram algumas das situações descritas. Para o Constitucional, foi como se estas pessoas tivessem cumprido uma “pena curta de prisão”.
Dois dos confinamentos obrigatórios de 14 dias decretados pelo Governo Regional dos Açores envolveram menores de idade, que ficaram fechados em quartos de hotel com os pais. Agora, a secção de Ponta Delgada do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) dos Açores está a averiguar se foram cometidos crimes ao confinar estas pessoas em quartos de hotel em pelo menos seis casos, apurou o Observador junto de fonte da Procuradoria-Geral da República (PGR).
A investigação é recente e, até ao momento, não tem arguidos constituídos. A PGR não revela sequer quais são os seis casos de quarentena obrigatória que estão a ser investigados, já que o inquérito está em segredo de justiça. Ao Observador, fonte oficial do Governo Regional dos Açores disse não ter conhecimento, para já, de que “haja qualquer processo contra qualquer entidade da Administração Regional dos Açores, no seguimento das certidões extraídas e remetidas ao Ministério Público na sequência dos habeas corpus”.
A investigação foi iniciada depois dos pedidos de libertação imediata, feitos pelas pessoas obrigadas a ficar confinadas, para que fossem libertadas. Isto porque, a partir do dia 26 de março, todos os passageiros que chegavam aos Açores eram obrigados a ficar 14 dias em confinamento num hotel, tendo as despesas com o alojamento passado a ser pagas pelos passageiros não residentes no arquipélago desde 8 de maio — atualmente, os passageiros devem fazer um teste à Covid-19, cujo resultado tem de ser negativo para poderem entrar nos Açores.
Os vários juízes do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores que avaliaram estes seis pedidos decidiram, então, não só libertar as pessoas em quarentena como, igualmente, extrair certidões e enviá-las para o Ministério Público, de forma a que os casos pudessem ser investigados. Assim, os seis processos de inquérito que resultaram das certidões foram juntos num só inquérito. É que, apesar de serem casos diferentes, que aconteceram até em meses distintos, dizem todos respeito ao confinamento obrigatório decretado pelo Governo Regional dos Açores.
Apesar de o processo estar em segredo de justiça e a PGR não poder divulgar para já quais os casos de confinamento que estão a ser investigados, há detalhes sobre as condições em que as pessoas foram isoladas em três deles, além daquele que foi levado ao Tribunal Constitucional. É que o Tribunal Judicial da Comarca dos Açores já tinha divulgado em maio, julho e agosto comunicados sobre quatro desses casos. As notas divulgadas do site do Tribunal serviam para divulgar a informação de que os juízes tinham decidido libertar as pessoas confinadas, mas no final do comunicado era confirmado também que os juízes tinham decidido extrair certidões para uma eventual instauração de um processo.
A história dos quatro alemães. Doente infetada não conseguiu ajuda da Autoridade Regional de Saúde
Será um dos casos mais recentes, já depois de a regra de quarentena obrigatória ter sido levantada. Quando aterraram nos Açores, os quatro turistas alemães levavam consigo a prova de que estavam livres de Covid-19. Três dias antes, as 72 horas previstas na lei, fizeram os testes para despistar o coronavírus ainda na Alemanha, com resultado negativo. A chegada ao aeroporto de Ponta Delgada correu bem, e seguiram para São Miguel, onde iriam passar férias.
A história só mudou de curso a 7 de agosto. Nesse dia, duas mulheres do grupo fizeram novo teste, não se explicando o motivo dessa decisão no comunicado do tribunal. Um deles daria positivo. No dia 10, foram testados os demais, mantendo-se Covid positivo apenas um dos quatro cidadãos alemães. A ordem de isolamento profilático foi decretada a todo o grupo, de 8 a 22 de agosto, pelo delegado de saúde de Lagoa. Quatro dias passados do período imposto, a 26 de agosto — dia da decisão do habeas corpus — os quatro continuavam fechados no quarto de hotel.
Durante o período em causa, a mulher Covid positivo adoeceu. No comunicado do tribunal, conta-se que tentou, sem sucesso, pedir auxílio através do número disponibilizado pelo Autoridade Regional de Saúde. Já no dia 24 de agosto, dois dias depois de ter terminado o período de confinamento, um funcionário do hotel, depois de questionado, transmitiu ao grupo que nenhum deles se podia ausentar do respetivo quarto. Durante todo este tempo, nunca foi transmitida qualquer informação aos quatro turistas, “como é devido nos termos da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, na sua língua materna.
Deste processo foi extraída certidão e remetida para o Ministério Público para eventual instauração de procedimento criminal.
Se não fosse o guia turístico, mãe e filha não conseguiam perceber o que estava a acontecer
Não falavam português e foi o guia turístico quem lhes transmitiu as ordens. A mãe, estrangeira, cuja nacionalidade nunca foi revelada, chegou aos Açores com a filha de nove anos para umas curtas férias em São Miguel. No dia 9 de agosto, dois dias depois de testarem Covid negativo no país natal, a turista recebeu as informações ao telefone da Autoridade Regional de Saúde — em catadupa e em português, uma língua que não domina.
Na viagem com destino aos Açores, mãe e filha sentaram-se “em lugares próximos de uma pessoa que acusou positivo para Covid-19, em 9 de agosto”. Com a ajuda do guia turístico, perceberam que desse dia 9 em diante, e até 22 de agosto, não podiam sair do quarto. Sob suspeita de poderem ter sido infetadas, foram conduzidas por um funcionário do hotel que lhes deixou o último alerta: se saíssem, incorriam em desobediência.
Os dias seguintes foram passados entre quatro paredes e sob permanente vigilância dos funcionários: as partes comuns do hotel estavam-lhes vedadas, não podiam fazer passeios higiénicos e cabia-lhes a si fazer a limpeza do quarto. À criança nunca foram facultados quaisquer brinquedos. No final, a conta: para além das despesas de alojamento e alimentação, ao valor acresciam quatro euros por cada deslocação dos trabalhadores do hotel ao quarto.
Não lhes voltou a ser feito qualquer teste, agendado para 21 de agosto, véspera do fim do isolamento, mas, perante a insistência da mãe — tinha voo de regresso a casa a 13 de agosto —, foram testadas no dia 12. Mais uma vez, todas as informações foram prestadas em português. Resultado do teste? Negativo. No comunicado do tribunal refere-se que as requerentes do habeas corpus viajaram munidas do teste negativo e não se comprovou qualquer contacto delas com a pessoa infetada e nem maior aproximação do que a que tiveram outras pessoas, “em especial assistentes de bordo e pessoal de terra”.
Deste processo, foi extraída certidão e remetida para o Ministério Público para eventual instauração de procedimento criminal.
Um quarto de 20 metros quadrados para três pessoas “sem as mais básicas condições” de uma qualquer prisão
O quarto, na ilha Graciosa, tinha 20 metros quadrados. “Sem fogão, sem frigorífico, sem utensílios de cozinha, sem lavandaria, sem detergentes, sem as mais básicas condições existentes em qualquer estabelecimento prisional”, lê-se no comunicado do Tribunal. Apenas um mini bar. A descrição é feita por Ângela Gonçalves no pedido de habeas corpus que a própria, advogada, entregou no final de julho aos tribunais — e que seria aceite.
Ângela e a filha de cinco anos passaram a sexta-feira e o fim de semana naquele espaço, impedidas de sair. Na segunda-feira, receberam da justiça luz verde para a sua libertação imediata. Antes de partir de Lisboa para os Açores, Ângela, a filha e o homem com quem viajavam fizeram os testes exigidos para aterrar no arquipélago. Todos Covid negativos, embarcaram dois dias depois (22 de julho) rumo a Ponta Delgada. Ditou o acaso que se sentassem nas proximidades de um passageiro que no dia 24 testou positivo. O telefonema da delegada de saúde chegou nessa mesma sexta-feira: isolamento profilático, a custas dos próprios, até 4 de agosto, mas sem ordem para testagem ao vírus.
A insistência de Ângela Gonçalves levou a novo diagnóstico e ao velho resultado. Os três mantinham-se negativos, mas a ordem de isolamento mantinha-se. “Não obstante os resultados serem negativos, a delegada de Saúde mantém a decisão de nos manter detidos num quarto de hotel, sob pena de, não o fazendo, praticarmos um crime de desobediência”, lê-se no pedido de habeas corpus. Por esse motivo, escreveu a advogada, deram entrada de habeas corpus, solicitando a nossa libertação imediata. A libertação imediata foi decretada pelo Tribunal Judicial da Comarca dos Açores.
Deste processo, foi extraída certidão e remetida para o Ministério Público para eventual instauração de procedimento criminal.
Refeições deixadas à porta e vigiado pela polícia. Tribunal Constitucional comparou quarentena obrigatória a uma “pena curta de prisão”
Mas o primeiro caso, pelo menos a ser tornado público, aconteceu ainda em maio. Um piloto residente na ilha de São Miguel que, ao aterrar no aeroporto João Paulo II, em Ponta Delgada, num voo vindo de Lisboa a 10 de maio, foi encaminhado para um hotel, juntamente com cerca de 50 passageiros, apesar de não ter qualquer sintoma relacionado com Covid-19. Foi transportado num autocarro escoltado pela polícia, segundo detalha o acórdão do Tribunal Constitucional que viria a considerar que o confinamento obrigatório violava a Constituição.
Lá chegado, foi lhe atribuído um quarto. Foi “informado que não podia sair” dali nos próximos 14 dias, que não podia contactar presencialmente com ninguém, nem sequer familiares e foi sujeito a uma vigilância policial permanente.A limpeza do quarto e da roupa teve de ser feita por si, sendo que nem sequer foi dada autorização para que a sua mulher lhe levasse mais roupa. Só seria possível aos familiares e amigos deixarem bens de primeira necessidade, como produtos de higiene, mas na receção. “Apenas viu a sua esposa uma vez, estando esta na via pública e ele na varanda do quarto”, detalha o acórdão. As refeições eram levadas até ao quarto “por um empregado do hotel, que batia à porta”, mas depois se afastava para que o homem pudesse pegar a refeição. Eram entregues em três vezes por dia, havendo duas alturas em que podia solicitar refeições ou snacks adicionais.
O cidadão só foi libertado ao fim de seis dias, depois de o Tribunal Judicial da Comarca dos Açores ter avaliado o seu pedido de habeas corpus e ter decidido libertá-lo. A juíza responsável por fazer essa análise considerou que “a situação em causa era de privação da liberdade” desde logo porque o cidadão não consentiu o confinamento, mas também por ter sido confinado “sob vigilância policial”, lê-se no comunicado divulgado a 16 de maio. Mais: que a privação de liberdade dos cidadãos “é matéria da competência de dois órgãos de soberania, a Assembleia da República ou do Governo da República” e está assim “fora do âmbito de competências dos órgãos próprios das Regiões Autónomas”.
Tribunal ordena libertação de pessoa em quarentena num hotel dos Açores
Além da inconstitucionalidade do confinamento, a magistrada indicava dois princípios que foram violados ao confinar este cidadão. Desde logo, considerou que houve uma violação dos princípios da proporcionalidade já que foi imposto um “o confinamento compulsivo” a alguém que não estava infetado nem sequer com suspeitas de infeção e não foi dada possibilidade de o cidadão fazer a quarentena na sua própria casa, especialmente porque as pessoas infetadas “fazem aí o seu tratamento”.
Depois, também o princípio da igualdade foi, na visão do Tribunal, violado. É que “qualquer cidadão nacional” podia “livremente desembarcar em qualquer aeroporto do continente”, exceto na Região Autónoma dos Açores, onde era “privado da liberdade”. Também se verificava alguma desigualdade quando ao pagamento do confinamento: os residentes não o pagavam, mas os não residentes sim. O cidadão acabou por ser libertado, mas o caso não se ficou por aqui.
O Ministério Público recorreu mesmo para o Tribunal Constitucional – recurso que é obrigatório por lei em situações deste género — que viria a considerar que este cidadão e os restantes passageiros foram tratados como se lhes tivesse sido aplicada uma “pena curta de prisão” — talvez “até com aspetos mais gravosos”. Apesar de reconhecerem que esta num quarto de hotel era “mais amigável” do que estar numa cela de uma prisão, os juízes conselheiros do Palácio Ratton lembraram que estas pessoas confinadas nem sequer tinham direito a aceder “a um espaço comum para exercício físico”, que é permitido aos reclusos.
O acórdão, datado de 31 de Julho, acabaria por declarar a inconstitucionalidade do confinamento obrigatório que estava a ser imposto na chegada aos Açores.