José trabalha em Maputo e não sabe da filha de 14 anos, que vive na Beira. Manuel Augusto, natural de Moçambique, vive na Alemanha e conta ao Observador que também não sabe da família. O mesmo para o indiano Mehul Dangodra, que tem família na Beira e que tem procurado notícias através da embaixada — sem sucesso. Estes são apenas três casos que desesperam por não ter notícias dos familiares que vivem na segunda maior cidade de Moçambique, país atingido pelo ciclone Idai na quinta-feira à noite. Por esta altura é quase impossível contactar alguém na Beira, que, segundo dados da Cruz Vermelha, ficou 90% destruída.
Quatro dias depois de o ciclone ter atingido a região centro de Moçambique, segundo relatou ao Observador Ana Inilda, do Grupo de teatro do Oprimido, sediado no Hulene, Maputo, que está a centralizar apoios e donativos, a Beira continua “sem água, sem energia, sem rede de comunicações (só uma é que funciona mas falha muito)”. A situação, diz é “completamente caótica, de destruição absoluta”: “há escolas e faculdades destruídas, e no hospital a morgue não está a conseguir suportar o elevado número de mortos”, conta, a partir de Maputo, reproduzindo relatos que ouve da região.
[Idai deixa rasto de destruição. Mais de 80 mortos só em Moçambique]
O ciclone que varreu o centro de Moçambique, e parte do Zimbabué e do Malaui, com vento e chuva intensa já matou 222 pessoas no total dos três países, segundo balanços provisórios divulgados pelos respetivos governos na segunda-feira. Só em Moçambique, o número está fixado nos 84, mas o Presidente da República moçambicano, Filipe Nyusi, que descreve ter visto corpos a flutuar nos rios, acredita que o ciclone pode ter feito mais de mil mortos. O Observador recolheu testemunhos e falou com José Wello, Manuel Augusto, Mehul Dangodra ou Rui Marques, que procuram familiares e amigos que estão incontactáveis na Beira. De quem viveu na pele o desastre há poucos relatos, sobretudo devido à dificuldade de funcionamento das redes de telecomunicações, mas à agência Lusa, Glória Pedro, uma moçambicana de 34 anos, conta como viu as suas duas casas serem engolidas pela água e lama em Chiluvo, aldeia do centro de Moçambique, e de como ela e a família recorrem agora à ajuda de parentes para se abrigarem e tentarem satisfazer as necessidades básicas.
À volta daquela aldeia de Chiluvo, onde as casas são feitas de materiais precários – barro e capim – e a população vive maioritariamente da agricultura de subsistência, a estrada está destruída, mas os carros e camiões arriscam passar, numa altura em que se prevê que os rios voltem a subir. Um outro morador contou também à agência Lusa que no último sábado se ouviu uma espécie de explosão e, de repente, formou-se um rio de lama que desceu rápido, em direção às habitações. “Eu estava dentro de casa com os meus filhos, quando saímos vimos lama descendo para a estrada e para as casas e fugimos“, disse à Lusa Carlitos Francisco. A família perdeu a casa, alimentos e fugiu do rio de lama.
Também à TSF, uma jovem estudante residente na Beira, Yara Ismaile, relatou o momento “assustador” que viveu com a irmã quando o teto começou a levantar. “Nós estávamos em casa, eu e a minha irmã. O teto estava a levantar, nos arredores muitas casas destruíram-se. Naquele momento nós fomos para debaixo da cama. Foi um momento de muito pânico. Eu não sabia o que fazer, a minha irmã pior. Foi uma experiência muito assustadora”, disse àquela rádio, sublinhando que não tinha como pedir ajuda porque não havia comunicações nem eletricidade. “Tinha um número que o Governo passou e que estava a passar nas redes sociais para ligar para a ambulância, mas nós não tínhamos como fazer isso. Não tínhamos comunicação, não tínhamos carga. O quartel militar ficou sem teto. Não tinha ninguém para ajudar e todo o mundo estava a pedir socorro”, conta ainda. Segundo relata a jovem, que acabou por fugir para Chimoio, onde moram os pais, na aldeia onde a irmã ficou não há comida, água e ninguém consegue sair.
Segundo o presidente moçambicano, Filipe Nyusi, que sobrevoou a região de helicóptero, no domingo, o cenário encontrado é devastador. “As águas do rio Pungue e Búzi transbordaram, aldeias inteiras desapareceram, comunidades ficaram isoladas, e consegue-se ver durante os sobrevoos corpos a flutuar. Portanto, um verdadeiro desastre humanitário de grandes proporções”, disse esta segunda-feira em conferência de imprensa, acrescentando que o número de vítimas mortais deve ultrapassar em muito as 84 mortes confirmadas, podendo chegar aos “mais de mil óbitos”, sendo que “mais de 100 mil pessoas correm perigo de vida”.
Os feridos estão a ser socorridos pela Cruz Vermelha, assim como pelos Médicos sem Fronteiras, mas a dificuldade maior ainda está a ser chegar aos familiares e amigos desaparecidos. Os telemóveis não funcionam devido às falhas de rede, e a falta de energia não deixa carregar aparelhos elétricos. Neste momento, há milhares de pessoas incontactáveis na Beira que deixaram a família e os amigos expectantes e sem notícias. No total dos três países africanos atingidos pela tempestade, estima-se que mais de 1,5 milhões de pessoas tenham sido afetadas, sendo que, só em Moçambique, as estimativas iniciais apontam para 600 mil pessoas nessas circunstâncias, incluindo 260 mil crianças.
Vivem cerca de 500 mil pessoas na Beira, a segunda maior cidade moçambicana. Segundo os números oficiais, mais de 1500 pessoas ficaram feridas só na sequência de quedas de árvores ou de telhados de edifícios. Os ventos chegaram a atingir os 177 quilómetros hora e toda a ajuda é pouca. “Praticamente tudo foi afetado pela calamidade. Temos pessoas a sofrer e precisamos de ajuda”, chegou a dizer o governador da província de Sofala, cuja capital é a cidade da Beira, Alberto Moldane.
Imagens captadas pela televisão sul-africana eNCA mostram pessoas a trepar às árvores e a atravessar ruas com água até à cintura, enquanto telhados e destroços se espalhavam pela cidade. “Estávamos em casa e nunca pensámos que se tornasse tão sério como tornou. Foi catastrófico, destrutivo, ficámos em pânico”, disse um residente da Beira àquela televisão. “Nós tivemos sorte, mas a maior parte das pessoas não”, acrescenta.
Até agora, não há qualquer registo de vítimas portuguesas mortas ou feridas, segundo confirmou o ministro português dos Negócios Estrangeiros e o secretário de Estado das Comunidades, mas as casas e as empresas de portugueses destruídas fazem parte do cenário de devastação total que abalou a cidade e os prejuízos financeiros já se avistam. Para além do tempo sem trabalhar, as vias de acesso à cidade estão completamente inutilizáveis, o que faz parecer que o país está partido ao meio.
Portugal já se mostrou disponível para ajudar Moçambique através da União Europeia e das Nações Unidas, segundo deu conta Marcelo Rebelo de Sousa numa nota publicada no site da Presidência da República portuguesa. “Portugal procurará contribuir para o esforço de ajuda e reconstrução, quer diretamente, quer através da União Europeia e das Nações Unidas, exprimindo ao Povo irmão moçambicano e a todos quantos, em particular portugueses, foram afetados por esta grande tragédia”, lê-se.
This just in: shocking footage from our team via helicopter that has just arrived in #Beira, #Mozambique. The devastation is widespread with barely a house intact following #CycloneIdaipic.twitter.com/BnyqVIJ9YF
— IFRC Africa (@IFRCAfrica) March 17, 2019
Marcelo Rebelo de Sousa, que tem fortes ligações familiares e afetivas a Moçambique, tendo o pai sido governador daquele país, adianta ainda na mesma nota que já falou com o Presidente moçambicano, Filipe Nyusi, para se inteirar de “mais detalhes sobre os efeitos do ciclone no centro de Moçambique e particularmente na cidade da Beira, com um balanço bem mais trágico e dramático do que inicialmente estimado, quer em enormes perdas de vidas humanas e de feridos, quer em destruições e perdas de bens”.
A partir de Bruxelas, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, deu conta dos estragos, ressalvando que as notícias sobre os portugueses afetados continuam em permanente atualização, e a associação Cáritas portuguesa anunciou entretanto que vai enviar 25 mil euros para ajudar, mostrando disponibilidade para mais apoios.
“Felizmente, até agora não temos registo de cidadãos portugueses mortos, feridos ou em situação de perigo, mas ainda não conseguimos contactar todos (…) Infelizmente, temos já notícia de várias dezenas de compatriotas nossos que perderam as suas casas e os seus bens e que se encontram alojados por exemplo em unidades hoteleiras ou noutras casas de amigos ou vizinhos e estamos a fazer os levantamentos desses danos nos bens pessoais”, disse Augusto Santos Silva. Ainda assim, ressalvou ser “prematuro dar por concluído esse levantamento”, uma vez que, devido às grandes dificuldades de comunicações, ainda não foi possível contactar todos os milhares de portugueses registados na região.
O Observador tentou olhar para a cidade da Beira através das redes sociais, falou com familiares de vítimas e preparou uma fotogaleria com fotos tiradas por residentes em Moçambique, que ilustra as consequências do devastador Idai.
Na impossibilidade de familiares e amigos chegarem aos seus entes queridos, o Twitter encheu-se de mensagens de desespero e de pedidos de ajuda. Moçambicanos de todos os pontos do mundo não têm contacto com as pessoas mais próximas desde quinta-feira, dia da catástrofe. São quatro dias de espera e quase nenhuma resposta. Também há pessoas de outros países que tentam de forma incansável entrar em contacto com aqueles que podem estar em risco. A lista é longa, começa em Portugal e passa, por exemplo, pela Alemanha e pela Índia.
Quatro histórias (quase) sem rasto
1. O pai que não consegue falar com a menina de 14 anos que quer ser médica
José Wello fez o primeiro tweet sobre a tragédia no dia 16 de março. Por essa altura, já não falava com a filha há dois dias e agora ainda continua sem notícias. José trabalha em Maputo, por isso está longe da rapariga de 14 anos que vive na cidade da Beira, onde estuda e quer ser médica. O pai conta ao Observador que já tentou falar com a filha de todas as formas, “contudo, os relatos, vídeos e fotos recebidos são desoladores”. Mas não é só com a filha que não consegue falar. José viveu 10 anos na Beira e o ciclone impediu-o de entrar em contacto com todos os seus amigos. Agora, espera pela viagem que marcou para meio da semana para ir até à Beira buscar filha e “apoiar naquilo que puder”.
O homem de 42 anos conta ao Observador que a companhia de telemóveis Movitel está a distribuir 20 mil cartões, visto que é a única das companhias que conseguiu reestabelecer a rede (a Tmcel e a Vodacom ainda não conseguiram). É a única esperança do pai para conseguir encontrar a filha.
Segundo o jornal moçambicano O País, as empresas de telecomunicações locais estão a fazer tudo para encontrar soluções que permitam, a qualquer momento, o restabelecimento das linhas de comunicação fixa e móvel, entre a cidade da Beira e o resto do país. “Em resultado destes esforços, as linhas fixas estiveram operacionais durante sexta-feira e parte do dia de sábado, porém, devido ao recrudescimento das condições meteorológicas adversas naquela província, a rede ficou de novo inoperacional, desde a noite de sábado”, lê-se num comunicado da Tmcel. Também a Vodacom também está inoperacional, com a companhia a informar que o que tem estado a dificultar o restabelecimento da linha é o bloqueio das vias de acesso devido aos danos nas pontes e estradas.
“As equipas técnicas da Vodacom estão no terreno desde a manhã deste sábado e neste exato momento todos os distritos das províncias da Zambézia, Tete e Manica estão com a rede 2G e 3G restabelecidas, o que significa que os nossos clientes nestes pontos do país já podem usar os nossos serviços de comunicação”, informou a Vodacom à imprensa nacional.
2. O indiano que vive no Dubai e que não sabe do primo em Moçambique
Mehul Dangodra vive no Dubai mas vem da Índia. O homem de 32 anos saiu do país para trabalhar, assim como o primo, de 36, que foi viver para Moçambique em 2005. Tal como José Wello, Mehul não consegue falar com a família, que vive na cidade da Beira, desde quinta-feira. O primo vive com a mulher de 29 anos (grávida de 3 meses) e o filho de 5 anos.
Mehul já tentou falar com a embaixada da Índia, que “tem sido muito rápida a responder, mas que não pode fazer muito”, visto que não há eletricidade e por isso o contacto com as vítimas é muito limitado. Mehul está “extremamente preocupado” e tem lido notícias incansavelmente e procurado informação nas redes sociais sempre que pode.
3. O português que escapou no sul mas que tem um amigo no centro
Rui Marques trabalha em Maputo e não ficou afetado pelo ciclone, mas conhece quem tenho sofrido na pele as consequências. O gestor de empresas de 46 anos só teve conhecimento do paradeiro de um amigo na segunda-feira, através no Facebook. Pedro Rodrigues vive na Beira, tem 50 anos e é diretor comercial de uma empresa.
O gestor foi dos poucos que conseguiu falar com pessoas da cidade devastada e olha para o ciclone de fora enquanto vai recebendo notícias como quem está longe mas mais perto do que o resto dos portugueses, que se limitam a saber do desastre pelas notícias. É Rui Marques quem informa o Observador de que “vai sair um navio de carga de Maputo quinta-feira com ajuda” e se está a “mobilizar toda a gente para entregar todo o tipo de ajuda no porto de Maputo”, visto que as estradas estão cortadas. Para além desta embarcação, a LAM (Linhas Aéreas de Moçambique) organizou uma campanha de recolha de alimentos que vão ser transportados em aviões da companhia todos os dias.
4. O químico youtuber que foi para a Alemanha e nunca esteve tão longe de casa
Se Manuel Augusto já estava longe da família, agora está ainda mais. Este é outro dos inúmeros casos de pessoas que não conseguem falar com os familiares ou amigos desde quinta-feira. Manuel foi para a Alemanha em 1980 para estudar química e acabou por ficar. Casou com uma cidadã alemã e hoje vive em Eilenburg e trabalha na área da logística.
O ex-aluno de química respondeu a tweets sobre o desastre em Moçambique em inglês, fez vídeos para o Youtube em alemão e falou com o Observador em português. Foi na língua partilhada entre Portugal e Moçambique que Manuel confessou estar “muito triste” por não saber como estava “a situação neste momento”.
Para além do apoio das Linhas Aéreas de Moçambique, também chegou um avião com alimentos do UNHRD (Humanitarian Response Repot) no Dubai. Contas feitas, são 22 toneladas de biscoitos energéticos para dar apoio a 22 mil pessoas até quarta-feira. Na página de Facebook das Nações Unidas de Moçambique é possível ver os alimentos a saírem do avião.
On Saturday 16 March, WFP Aviation airlifted 2,000 boxes???? of high-energy biscuits from Kenya to Beira, #Mozambique as food assistance to those affected by tropical #CycloneIdai.@WFPLogistics @WFP_Africa pic.twitter.com/sbge7bODON
— World Food Programme (@WFP) March 18, 2019
Entretanto, também a Cruz Vermelha Portuguesa (CVP) identificou centenas de alimentos de longa duração nos armazéns da instituição espalhados pelo país destinados à cidade da Beira, em Moçambique. Em declarações à agência Lusa, o presidente da CVP, Francisco George, adiantou que foi emitido um alerta a nível nacional para as reservas de alimentos de longa duração (conservas) para serem recolhidos no caso de ser organizado um voo humanitário para Moçambique.