É possivelmente o país estrangeiro de que mais se tem falado nestes meses que antecedem as presidenciais brasileiras. Portugal tem sido tema de campanha e praticamente todos os candidatos já o apontaram como exemplo — positivo ou negativo. Um destaque em parte vaticinado por Marcelo Rebelo de Sousa que, em julho, depois do almoço cancelado por Bolsonaro, não teve meias palavras. “Aquilo que podia ser um amargo de boca foi uma coisa muito doce, vista numa perspetiva de médio-longo prazo”, disse aos jornalistas a partir de São Paulo, afirmando que o ‘fora’ que o Presidente brasileiro lhe deu permitira que Portugal passasse “a ser tema” — “tão coberto, tão coberto pela comunicação social brasileira”.
E não foi só pela imprensa. Mesmo entre candidatos, o país tem sido apontado como referência: Ciro Gomes (PDT) prometeu um plano para transformar o Brasil “num Portugal”; Soraya Thronicke (UB) frisou num debate que o Presidente português foi à telescola dar uma aula em plena pandemia, Bolsonaro já lembrou os fogos que atormentam os portugueses para aliviar responsabilidades do seu Governo pelos incêndios da Amazónia; e Lula — que ao contrário do Presidente brasileiro se encontrou com Marcelo em julho — aproveitou os insultos racistas aos filhos do ator Bruno Gagliasso na Costa da Caparica para fazer uma promessa: “Vamos construir um mundo sem racismo.”
Bolsonaro: “É comum pegar fogo de forma espontânea”
Na última semana, o Presidente brasileiro foi o primeiro numa ronda de entrevistas que a TV Globo transmitiu com os candidatos mais bem colocados nas sondagens e fez questão de se referir a Portugal quando estava a ser questionado sobre as suas políticas ambientais. A pergunta dos dois jornalistas não fazia antever qualquer comparação com outros países — “A taxa anual de desmatamento na Amazónia deu um salto, é a maior em 15 anos. Continua a apoiar essa política de desregulamentação?” Na resposta Bolsonaro fez questão de usar os exemplos de Portugal, França, EUA e Espanha para mostrar como no que toca aos fogos florestais a culpa não é do seu Governo.
“Na Amazónia você tem quase 30 milhões de habitantes lá. A primeira preocupação é essa. Qualquer propriedade lá tem de preservar 80% e utilizar os restantes 20%. Eu tentei, no primeiro ano de mandato, fazer a regulação fundiária, para saber, para cada lugar desmatado ou foco de calor, qual é o CPF [número de identificação nacional] daquela propriedade. O presidente da câmara não colaborou para botar essa proposta avante”, começou por dizer, rematando de seguida que nem tudo está nas mãos do Homem, muito menos de um Governo.
“Agora, quando se fala em Amazónia, porque não se fala na França, que há mais de 30 dias está pegando fogo. A mesma coisa, está pegando fogo na Espanha e em Portugal. A Califórnia pega fogo todo o ano. No Brasil infelizmente não é diferente, acontece. Uma parte disso aí é criminoso, sei disso outra parte não é criminoso. […] é comum pegar fogo de forma espontânea”.
A taxa anual de desmatamento saltou no governo de Bolsonaro de 7.500 em quilómetros quadrados, em 2018, para 13 mil no ano passado.
“Deus, Pátria e Família. Viva Portugal e viva o Brasil”
Também algumas declarações recentes de Bolsonaro com Portugal como pano de fundo têm pegado fogo. Uma delas aconteceu na última terça-feira na cerimónia oficial de receção do coração de D. Pedro (IV de Portugal, I do Brasil), que teve honras idênticas às que teria se estivesse vivo.
Como o Observador noticiou na altura, foram muitas as pessoas que esperaram à frente do Palácio do Planalto, em Brasília, pela chegada do órgão transportado do Porto — onde está guardado — para a capital brasileira para a comemoração dos 200 anos de independência do Brasil. O transporte foi feito num Rolls-Royce com honras militares feitas por seis aviões da Força Aérea brasileira — desenhando no céu as palavras “Independência 200 anos”, seguidas de um coração.
Antes de sair, Bolsonaro fez uma declaração, para cumprir o protocolo de receção de um chefe de Estado, em que terminou com o lema de Salazar “Deus, pátria e família”. O jornal O Globo chegou mesmo a noticiar: “Bolsonaro repete lema da ditadura de Salazar diante do coração de D. Pedro e surpreende portugueses”.
O Presidente — candidato do Partido Liberal, que nas sondagens mais recentes surge em 2º lugar, com 32% das intenções de voto — esteve durante grande parte da cerimónia ao lado da primeira-dama, Michelle Bolsonaro, e escolheu fazer um pequeno discurso, que acabou por ter pouco destaque dos dois lados do Atlântico: “Dois países unidos pela História, ligados pelo coração. 200 anos de independência. Pela frente, uma eternidade em liberdade. Deus, pátria, família. Viva Portugal e viva o Brasil“.
O almoço cancelado que acabou por ser “uma coisa muito doce”
No início de julho, Marcelo Rebelo de Sousa rumara ao Brasil com uma agenda muito apertada — em três dias, além da participação numa uma sessão comemorativa do centenário da travessia aérea do Atlântico Sul no Rio de Janeiro e na Bienal do Livro de São Paulo, o Presidente teria encontros com os ex-presidentes Michel Temer e Lula da Silva e com o Presidente Jair Bolsonaro, neste caso em Brasília. O problema é que Lula da Silva já não era só um ex-Presidente e Bolsonaro não gostou que o chefe de Estado português se encontrasse com o seu principal adversário nas eleições deste ano, sobretudo que tal encontro acontecesse antes do almoço de ambos.
Em público, o Presidente português chegou a justificar que um dos objetivos das reuniões era debater e saber o posicionamento que protagonistas influentes do outro lado do Atlântico — os do passado e presente “e, possivelmente, do futuro” — tinham sobre temas como a CPLP e o conflito da guerra na Ucrânia.
Mas à ultima da hora, ficou a saber-se, através dos jornais brasileiros, que Bolsonaro poderia cancelar o encontro com Marcelo — o que acabou mesmo por acontecer. O português não se deixou ficar e frisou sempre o lado positivo das consequências da atitude do Presidente brasileiro. “Teve grandes virtualidades. Portugal ficou marcante no Brasil e abriu-se o apetite para futuros encontros. E não há nada como isso, de facto, assim um compasso de espera, para depois o abraço ser ainda maior, como o abraço que recebemos genericamente de todos os brasileiros”.
Até porque o cancelamento, disse, parece ter feito com que a sua presença fosse mais notada pelos brasileiros: “Na rua acenavam dos carros, cumprimentavam, paravam. Eu devo dizer que nunca tive tantas ‘selfies’ de brasileiros no Brasil como agora”.
Dessa viagem ficaram as fotografias com Lula da Silva — o candidato do Partido dos Trabalhadores, que nas sondagens mais recentes surge em 1º lugar, com 47% das intenções de voto –, ainda disponíveis no site da Presidência da República.
Os insultos na Costa que levaram Lula a prometer “um mundo sem racismo”
Quase um mês depois do regresso de Marcelo, um caso voltou a pôr o nome de Portugal nas páginas de todos os jornais. Os filhos dos atores Bruno Gagliasso e de Giovanna Ewbank foram alvo de insultos racistas num bar de uma praia na Costa da Caparica.
Um comunicado do casal dava conta de que “uma mulher branca, que passava na frente do restaurante” havia feito insultos racistas contra os filhos de ambos, como também contra “uma família de turistas angolanos que estavam no local — cerca de 15 pessoas negras”.
Nenhuma mãe ou pai merece ver seus filhos sendo vítimas de xingamentos racistas. Minha solidariedade a @gioewbank, @brunogagliasso, sua família e também aos turistas angolanos que sofreram ataques racistas ontem. Vamos construir um mundo sem racismo.
— Lula (@LulaOficial) July 31, 2022
“A criminosa pedia que eles saíssem do restaurante e voltassem para a África, entre outras absurdos proferidos às crianças, tais quais ‘pretos imundos’”, lia-se no comunicado da família.
O caso gerou uma onde de apoio ao casal e à forma como defenderam os filhos e o ex-presidente e candidato às próximas eleições Lula da Silva aproveitou para prometer a construção de um mundo melhor: “Nenhuma mãe ou pai merece ver seus filhos sendo vítimas de xingamentos racistas. Minha solidariedade a @gioewbank, @brunogagliasso, sua família e também aos turistas angolanos que sofreram ataques racistas ontem. Vamos construir um mundo sem racismo”.
Marcelo também comentou o caso, mas nessa altura para transmitir a mensagem de que o racismo não é generalizado em Portugal. “Qualquer comportamento racista ou xenófobo é condenável e intolerável, e deve ser devidamente punido, seja qual for a vítima”, disse, afirmando que “não vale a pena negar que há, infelizmente, setores racistas e xenófobos entre nós”. Ainda assim, salvaguardou: “Não se pode, nem deve, generalizar, pois o comportamento da sociedade portuguesa é, em regra, respeitador dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana […] Somos todos transmigrantes”.
Ciro Gomes quer que Brasil se transforme “num Portugal”
Mas o protagonismo de Portugal continua, sendo referido nas mais recentes entrevistas e debates com os candidatos. Ciro Gomes, o candidato do Partido Democrático Trabalhista, que nas últimas sondagens surge em 3º lugar, com 7% das intenções de voto, foi o entrevistado da última terça-feira dos jornalistas William Bonner e Renata Vasconcellos, da TV Globo.
A meio da entrevista, questionado sobre como aplicará todas as suas medidas em apenas 4 anos de mandato, já que promete não se recandidatar caso seja eleito presidente, o candidato explicou que o trabalho dos próximos anos seria o de preparar o Brasil para uma mudança significativa. Qual?
“A minha tarefa é projetar o Brasil para os próximos 30 anos. A essência do projeto, para as pessoas terem como acompanhar, é transformar o país num Portugal sob ponto de vista dos indicadores sociais e económicos: qualidade de vida, matrícula, maternidade, materno-infantil, atenção à velhice, que é uma tendência grave”.
“Então, Portugal tem [um determinado] padrão, o Brasil está num padrão muito atrás. Eu quero que em 30 anos o Brasil vire um Portugal em qualidade de vida. E a minha etapa são os primeiros 4 anos”, rematou, antes de os apresentadores o voltarem a enquadrar no que defende para a área do ambiente — e sobre cumprimento das metas já definidas.
“Marcelo é professor e também ele foi para a TV dar aulas”, atirou Soraya Thronicke
Já no primeiro debate em que estiveram frente-a-frente todos os candidatos às Presidenciais brasileiras — transmitido na madrugada desta segunda-feira (horário de Lisboa) pela TV Bandeirantes, portal UOL, TV Cultura e Folha de São Paulo –, a candidata do União Brasil, Soraya Thronicke, foi especialmente dura relativamente à forma como o atual governo brasileiro lidou com a educação durante a pandemia e lembrou o que aconteceu deste lado do Atlântico.
Mais uma vez, foi Portugal o país escolhido. E mais uma vez Marcelo Rebelo de Sousa esteve em destaque.
“Durante a pandemia, tivemos as nossas crianças fora da escola, e o Governo não conseguiu fazer um programa que resolvesse isso. Simples seria se ele [Bolsonaro] utilizasse o mesmo método que utilizou o Presidente de Portugal. Marcelo Rebelo é professor também e foi para a televisão estatal. Ele foi para a televisão estatal dar aulas, e contratou os melhores professores do país para dar aula na televisão aberta para os alunos”, rematou a candidata — que não esteve entre os entrevistados pela TV Globo na última semana por, segundo as sondagens, ter menores intenções de voto.