Um padre da diocese de Setúbal, que foi suspenso e investigado ao longo de sete anos num processo canónico movido pela Igreja e acabou absolvido em 2015, foi agora investigado pelo Ministério Público pelos mesmos motivos: suspeita de abuso sexual de menores. Mas a procuradora que ficou com o inquérito, aberto na sequência de uma denúncia à Comissão Independente, não chegou sequer a ter conhecimento deste histórico. Primeiro, porque a única pergunta que fez à Igreja foi apenas para saber a identificação completa do padre. Depois, porque o registo criminal do suspeito estava limpo, uma vez que a Igreja, à data, nada comunicou às autoridades civis.
O processo agora arquivado foi aberto na sequência das primeiras 17 denúncias que a Comissão Independente – que investiga os abusos sexuais de menores por membros da Igreja Católica – enviou à Procuradoria-Geral da República e acabou num inquérito aberto em abril de 2022. Foi arquivado cinco meses depois e só recentemente foi dada autorização ao Observador para consultá-lo.
A denúncia anónima referia um caso ocorrido entre 2002 e 2003 em que um rapaz, à data com 14 anos, tinha sido abusado pelo padre da paróquia na casa onde este vivia. A denúncia referia também o primeiro nome do padre e a paróquia da diocese de Setúbal onde tinham acontecido os alegados abusos.
Ao longo de cinco meses, o trabalho de investigação do Ministério Público resumiu-se a quatro diligências descritas no despacho de arquivamento: um contacto com a Comissão Independente, um contacto com a Igreja, outro com o Tribunal de Família e Menores e uma consulta ao registo criminal do suspeito. A polícia nunca foi chamada a fazer qualquer diligência.
Ministério Público só pediu identificação do padre e não perguntou mais nada sobre ele
A procuradora titular do processo, Vânia Anselmo, começou por procurar mais informações junto da Comissão e da própria PGR na tentativa de chegar à identidade da vítima. Empenhada em manter o anonimato prometido às vítimas que prestam o seu depoimento, a Comissão enviou a mesma informação que já tinha enviado, explicando que os abusos terão ocorrido ao longo de seis meses e que a vítima era agora um adulto licenciado.
O Ministério Público decidiu, então, pedir ao administrador da diocese o nome completo do padre que naqueles anos esteve à frente daquela paróquia. “Oficie à diocese de Setúbal no sentido de indicar a identificação do pároco (…). Nada vindo ao fim de 20 dias, insista e conclua”.
A resposta chegou em poucos dias, assinada pelo administrador diocesano Padre José Lobato, que forneceu o nome completo do padre e a indicação onde ele prestava atualmente funções. Em resposta oficial ao Observador, a diocese afirma desconhecer o conteúdo do processo no qual foi chamada a identificar o padre.
O Ministério Público acabaria por fazer mais um pedido à diocese, já em setembro: os dados completos do cartão de cidadão do referido padre. Dados com os quais, antes de arquivar o processo a 13 de setembro, pediu à Conservatória do Registo Criminal a folha criminal do padre em questão. Uma folha limpa, sem referência a qualquer processo — porque apesar de a Igreja o ter investigado ao longo de sete anos, nunca comunicou o caso às autoridades civis.
Ainda antes de arquivar o processo, o MP ainda tinha tentado saber junto Tribunal de Família e Menores se por aquele serviço alguma criança teria sido acompanhada por ter sido alegadamente vítima daquele padre. A resposta, que o Observador foi impedido de consultar, também não terá trazido luz à investigação.
Em nenhum momento o Ministério Público pediu à Polícia Judiciária, ou a qualquer outro órgão de polícia criminal, para fazer diligências junto do local onde teriam ocorrido os alegados crimes. E a 13 de setembro a procuradora Vânia Anselmo acabaria mesmo a dar a investigação por concluída, notando que não conseguiu chegar à vítima nem a “testemunhas oculares” .
“Inexiste qualquer meio de prova que permita confirmar o inicialmente reportado, desconhecendo-se quem é o ofendido nos presentes autos e testemunhas oculares dos eventuais factos praticados”, concluiu a magistrada.
Vânia Anselmo referiu ainda que dos dados recolhidos não é possível “avançar na investigação, porquanto apenas se conhece o suspeito e atos praticados, mas desconhece-se a testemunha principal — o ofendido”, lê-se no despacho de arquivamento.
Padre esteve suspenso de funções sete anos por suspeitas de abuso. Mas foi absolvido
Sem mais perguntas à Igreja, e com um registo criminal imaculado, o Ministério Público ficou sem saber que o referido padre já tinha sido alvo de uma investigação canónica que se prolongou por sete anos, período em que o pároco esteve suspenso e completamente afastado de funções.
Ao Observador, a diocese de Setúbal explicou que de facto o padre foi suspenso em 2008, altura em que chegaram algumas denúncias à hierarquia da Igreja, algumas delas por parte dos tutores dos menores. A averiguação canónica prolongou-se até 2015. “O padre foi suspenso das suas funções enquanto se aguardava a conclusão do processo. Esse foi o motivo pelo qual deixou o serviço pastoral logo em 2008, ou seja, aquando da receção da denúncia na Diocese”, explica a Igreja.
Mas o padre acabaria por ser ilibado de todas as acusações. “Concluída a averiguação, o decreto emanado pela Santa Sé ilibou o padre em questão e permitiu que voltasse a exercer o seu ministério. Quando o processo canónico terminou, com a declaração de inocência confirmada pela Congregação para a Doutrina da Fé (o Dicastério do Vaticano que trata destas situações) foi considerado que aquele presbítero deveria retomar o ministério em paróquia diferente”, diz a diocese.
Em agosto, depois de notícias vindas a público a dar conta de que o então bispo de Setúbal, Gilberto Canavarro dos Reis, tinha ocultado um caso de abusos da polícia, a diocese fez mesmo um comunicado a explicar porque na altura não comunicou o caso às autoridades civis — um dever que saiu da Cimeira no Vaticano para a proteção de menores, em 2019, e passou a ser obrigação em 2020. “A Diocese de Setúbal não se revê nas expressões ‘ocultação’ ou ‘encobrimento’, dado que o processo de averiguação decorreu no cumprimento das orientações canónicas e civis em vigor à data.”, lia-se no comunicado.
Desconhece-se se a vítima que agora denunciou o caso à Comissão Independente por alegados crimes de que foi alvo entre 2003 e 2004 tem alguma relação com o processo canónico aberto em 2008, cujos factos poderão ter acontecido anos antes, uma vez que permanece no anonimato.
Crime podia estar já prescrito
No despacho de arquivamento assinado por Vânia Anselmo, porém, é invocada uma outra razão para o arquivamento: a hipótese de o processo estar prescrito, uma vez que passaram 10 anos sobre o alegado crime.
Em junho — relativamente a outra das 17 queixas que a comissão liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht entregou à Procuradoria –, o Ministério Público de Vila Real também arquivou um caso semelhante que terá ocorrido naquela diocese com argumentos semelhantes. No entanto, aqui havia ainda mais elementos desconhecidos: não se sabia o nome do padre, da vítima, nem da paróquia. Sem existir uma ‘vítima’, fica difícil definir um fio condutor na investigação, na tentativa de obter prova testemunhal e documental que corrobore os factos denunciados”, argumentou o MP no despacho de arquivamento
MP arquiva queixa de abusos contra padre por “impossibilidade” de prova
Neste caso, porém, a procuradora concluía também que se a vítima quis ficar no anonimato era porque queria “manter a reserva da vida privada”.
Porque é que as vítimas denunciam à comissão e não à polícia?
Contactado pelo Observador, o psicólogo João Veloso, que se tem dedicado ao Trauma, até entende que não se insista em encontrar as vítimas de abuso sexual. “A justiça do homem não é igual à justiça dos homens. Temos justiça para oferecer num caso destes? É a justiça que a comunidade precisa ou a que a vítima precisa?”, interroga o psicólogo, que lembra que para uma vítima assumir que foi vítima de um crime de abuso sexual tem depois de ter um grande acompanhamento psicológico e psiquiátrico, específicos, que nem no Serviço Nacional de Saúde estão disponíveis.
“Se não conseguirmos dar segurança é quase desumano obrigar estas pessoas a deixarem de ter um suporte, para cumprir aqui um processo comunitário de justiça”, afirma. “O tempo do trauma está muito distante do tempo jurídico e dos tribunais, muitas das vítimas agora já são adultas e elas sabem que o tempo da justiça que elas poderão procurar, o tribunal não vai conseguir acompanhar”.
Segundo João Veloso, uma vítima que foi abusada sexualmente sofreu um “evento potencialmente traumático que tem dois elementos muito característicos: a culpa e a vergonha”. Muitas vezes estas vítimas pensam que podiam ter feito alguma coisa para evitar o crime, e não o fizeram, e não o denunciam por vergonha.
Em crianças, quando acontecem estes crimes, normalmente a reação é fugir daquela memória. “É raríssimo as crianças terem estruturas de luta, o que reforça ainda mais os momentos negativos”. Mas, já adultas, o facto de haver uma comissão encabeçada por pessoas reconhecidas na sociedade, como é o caso do pedopsiquiatra Pedro Strecht e do psiquiatra Daniel Sampaio, “que têm toda uma narrativa e uma imagem de segurança” pode levá-las a falar. “Falar sob anonimato significa que têm vergonha”.