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Nos últimos tempos, a outrora prestigiada Universidade de Oxford tem surgido associada a notícias que causam alarme social: como se não bastasse o clima de histeria em torno da vacina desenvolvida conjuntamente pela AstraZeneca e pela dita universidade, descobre-se agora que o ensino musical naquele estabelecimento está conluiado com os supremacistas brancos.

Os últimos anos têm sido férteis em episódios de denúncia do teor racista de romances, livros infantis, bandas desenhadas ou filmes de animação (ver De Amanda Gorman a Lucky Luke: Correcção ou excesso?). As reacções de indignação e as pressões para suprimir estas criações têm vindo a alastrar às mais diversas áreas e acabaram por chegar ao canto relativamente isolado, anquilosado e negligenciado da música clássica.

A Opéra National de Paris foi das primeiras instituições nesta área a anunciar um programa destinado a remover elementos ou práticas susceptíveis de ofensa. Compreende-se que, na música, a tomada de consciência do racismo estrutural tenha começado pela ópera, que, por pressupor um enredo, personagens e um contexto histórico, é mais susceptível de gerar “ofensas” do que uma sinfonia ou um quarteto de cordas, que consistem “apenas” em combinações de sons e se movem no reino da abstracção, sem vínculo com o mundo real e as suas lutas entre opressores e oprimidos. Porém, o racismo na música clássica não passa apenas por haver tenores brancos em blackface a cantar o papel de Otello na ópera homónima de Verdi (prática que alguns teatros, como a Metropolitan Opera de Nova Iorque, já abandonaram). No final de Março passado, o The Telegraph teve acesso a documentos internos da Universidade de Oxford que denunciam a subjugação do ensino da música naquela instituição à “hegemonia branca” e apresentam propostas de reforma (ver Musical notation branded “colonialist” by Oxford professor hoping to “decolonise” the curriculum). Acontece que a situação denunciada em Oxford não é um caso isolado: o ensino da música dita clássica segue padrões similares um pouco por todo o mundo e só a falta de professores tão woke como os de Oxford explica que conservatórios, escolas de música e bandas filarmónicas por todo o planeta não se inflamem em protestos.

Ben Heppner as Otello

O tenor (branco) canadiano Ben Heppner, no papel de Otello, numa produção da Royal Opera House, no Covent Garden, em Londres, c.2005, usando uma maquilhagem “politicamente incorrecta”

O pecado capital do eurocentrismo

Uma das principais acusações reveladas por The Telegraph é a de que o repertório clássico ensinado em Oxford se foca excessivamente em “europeus brancos do período da escravatura”. Reclamar do excesso de compositores “europeus brancos” num curso de música clássica é como protestar por um curso de caligrafia kanji estar centrado na cultura japonesa ou por um seminário sobre fado ser ilustrado apenas com exemplos cantados em português. Acontece que aquilo a que, por facilidade de linguagem, se denomina de “música clássica” diz, na verdade, respeito à música “erudita” desenvolvida na Europa a partir da Idade Média e que, a partir do final do século XIX, se estendeu a compositores de outros continentes que adoptaram a tradição europeia.

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“A família de Willem van den Kerckhoven” (c.1652-55), por Jan Mijtens/Johannes Mytens: Uma alegoria do papel dos negros no cânone da música clássica?

Assim, quem queira aprender música clássica árabe terá de buscar iluminação não em Oxford mas no Cairo ou em Marrakesh; quem não esteja disposto a aprender a tocar piano (instrumento que, além de ser uma criação europeia, favorece as teclas brancas em desfavor das pretas) e prefira antes o geomungo, encontrará mais facilmente professores habilitados em Seul.

O geomungo (ou hyeongeum) é uma cítara de seis cordas surgida na Coreia por volta dos séculos IV-VII

Todas as culturas do planeta têm as suas tradições musicais, mas enquanto na Europa a música foi “infectada” pelo “vírus da inovação” e cada nova geração de compositores tentou emancipar-se dos modelos dos seus antecessores, dando origem a um complexo processo evolutivo (o que não significa que a música composta no século XIX seja superior à que foi composta no século XVI), no resto do mundo a música (como muitas outras artes) manteve-se relativamente estática: os músicos aspiravam a reproduzir os modelos legados pela tradição, de forma que o conceito de “compositor” nem sequer faz muito sentido; seguindo a mesma lógica, também os instrumentos destas tradições tenderam a manter-se inalterados durante séculos.

Por muito que se apreciem as tradições musicais dos San do Kalahari ou do Império Khmer, há que reconhecer que nenhuma delas oferece a variedade, a sofisticação e as possibilidades que a música clássica europeia desenvolveu ao longo de dez séculos de evolução e talvez tenha sido por isso que o seu ensino se implantou por todo o mundo e que as técnicas de composição, as técnicas instrumentais e o repertório privilegiados nos cursos de música em Singapura ou Bogotá sejam similares aos de Oxford ou Viena.

[Dueto de arcos com corda metálica, povo San, registo realizado no Botswana em 1972:]

“No período da escravatura”

As acusações de eurocentrismo feitas ao mundo das artes e da cultura têm-se tornado recorrentes, mas em Oxford foi introduzida na contestação uma delimitação temporal: além de não apreciarem a música composta por europeus brancos, entendem como factor agravante que estes tenham vivido no “período da escravatura”. Quando os movimentos woke submetem os escritores ocidentais do passado ao seu anacrónico escrutínio, encontram facilmente trechos de livros, diários, cartas e discursos que identificam como “racistas”, parecendo não perceber que eles não reflectem a visão particularmente maligna do autor, mas antes o pensamento dominante na sociedade em que o autor estava inserido. Se Voltaire, um dos mais progressistas, irreverentes, destemidos e radicais pensadores do Iluminismo, estava persuadido da inferioridade da raça negra, que poderia esperar-se dos seus contemporâneos menos dados a meditar sobre questões morais ou a questionar a ordem estabelecida?

Retrato de Johann de la Faille (1674) por Jan Verkolje: Na pintura holandesa do século XVII, os negros surgem frequentemente como servos ou escravos das personagens ilustres e famílias abastadas

O rastreio de ideias “racistas” nos escritores do passado encontra uma minhoca a cada cavadela, mas tinha, até agora, produzido fracos resultados entre os compositores, dado o carácter abstracto da música e dado que a maioria dos músicos não se dedicou à escrita e quando o fez se cingiu, usualmente, a assuntos estritamente musicais ou comezinhos e raramente ou nunca desenvolveu considerações sobre a natureza e costumes dos povos não-europeus, ou sequer dos povos europeus (seria preciso esperar por Richard Wagner para ver emergir um compositor racista explícito, articulado e animado de evidente má-fé).

Na ausência de textos da autoria de Mozart ou Haydn defendendo a inferioridade da raça negra e os méritos do esclavagismo ou de documentos atestando que estes compositores possuíram escravos ou plantações no Novo Mundo, foi descoberta uma nova forma de demonizá-los: basta terem vivido no “período da escravatura”. Uma vez que são europeus e que alguns europeus estiveram associados ao tráfico e escravização de povos africanos ou, de algum modo, beneficiaram deste, mesmo que involuntariamente, Mozart e Haydn tornam-se escravocratas por associação – e, nesta argumentação, não serve de atenuante que a Áustria não possuísse colónias ultramarinas.

No contexto das lutas identitárias que hoje agitam a sociedade, é claro que o termo “o período da escravatura” refere o período em que os europeus promoveram o tráfico de escravos africanos para o Novo Mundo, entre o início do século XVI e meados do século XIX, bem como o período em que, já com o tráfico abolido, a escravatura prosseguiu nas possessões ultramarinas europeias e nos novos países do continente americano, o que, nalguns casos, se estendeu até perto do final do século XIX. O repertório clássico que impera nos conservatórios e nas salas de concertos provém, essencialmente, do mesmo período temporal, mas não tem distribuição homogénea: o período entre 1500 e 1700 costuma ter fraca representação e as obras mais populares concentram-se entre as primeiras décadas do século XVIII e o início do século XX.

Mas se quisermos ser objectivos, “o período da escravatura” é uma expressão completamente vazia e inadequada: os homens escravizaram os seus semelhantes em todas as latitudes e climas desde tempos imemoriais (e continuam a fazê-lo, mais discretamente, nalguns locais do mundo islâmico). Considere-se, por exemplo, a da Grécia Clássica: a sua formidável produção de ciências, artes e letras, que é um dos pilares da civilização ocidental, não só correspondeu a um “período de escravatura”, como o vínculo entre criação intelectual e escravatura foi muito mais directo na Grécia Clássica do que na Europa dos século XVI a XIX: as cidades-estado gregas de então assentavam inteiramente no trabalho escravo. Os escravos eram usados como trabalhadores rurais, mineiros e empregados domésticos, deixando tempo aos filósofos, poetas, escultores e dramaturgos para se consagrarem às suas criações. Na “democrática” Atenas dos séculos V-VI a.C., cada família tinha em média três ou quatro escravos e é muito provável que Sócrates, Platão, Aristóteles, Heráclito, Demócrito, Fídias, Aristófanes, Ésquilo e Sófocles tivessem possuído escravos; e quando um prestigiado pensador como Aristóteles defendeu a escravatura como sendo natural e necessária não estava a desviar-se da opinião dominante na época. No entanto, ninguém refere Platão e Aristóteles como “filósofos do período da escravatura”.

Escravos trabalhando numa mina, terracota originária de Corinto, na Grécia, e datada do final do século VII a.C.

Muito do conhecimento acumulado pelos gregos caiu no esquecimento com o colapso da civilização greco-romana a partir do século V e só foi “re-injectado” na civilização europeia porque foi preservado, traduzido e comentado pelos eruditos do mundo islâmico medieval, também ele assente na escravatura; e importa realçar que o Islão, ao mesmo tempo que se abastecia de escravos no Cáucaso e na Europa, também importou maciçamente escravos de África, num fluxo comparável em volume (e desumanidade) ao do tráfico negreiro transatlântico; para mais, não praticava a escravatura em colónias distantes, longe do olhar das pessoas sensíveis, mas “em casa” (ver Escravatura: Culpa, ressentimento e histórias mal contadas).

Porém, os escravos dos gregos eram maioritariamente brancos – eram prisioneiros de guerra, vítimas de pirataria e escravos adquiridos nos estados limítrofes dos Balcãs e Ásia Menor – e a escravização de africanos pelos árabes e pelos turcos otomanos costuma ser encarada, nos nossos dias, com inexplicável benevolência. A verdade é que os movimentos identitários de afro-descendentes parecem estar focados numa única faceta da longa e variada história da escravatura: a que foi exercida pelos europeus sobre os africanos entre o início do século XVI e o final do século XIX.

Um traficante de escravos árabe elimina um escravo que se mostra incapaz de acompanhar o ritmo da marcha: a gravura foi publicada pela primeira vez em 1874, em The last journals of David Livingstone in Central Africa, from 1865 to his death, e baseia-se nos esboços realizados em 1866 pelo explorador britânico junto ao Rio Ruvuma, numa região que hoje corresponde a Moçambique e Tanzânia

O mundo extra-europeu na música clássica europeia

Os compositores europeus não só não deram qualquer atenção à triste sorte dos africanos vendidos como escravos como ignoraram olimpicamente quaisquer outros eventos políticos ou realidades sociais do seu tempo, excepto quando lhes era encomendada uma obra para celebrar uma vitória militar ou a assinatura de um tratado de paz.

Nas raras ocasiões em que o mundo extra-europeu surge na música barroca, é como condimento exótico e superficial: é o caso da semi-ópera The Indian queen (1695), de Purcell, que atropela a história e a geografia para colocar aztecas e incas em conflito; da ópera Motezuma (1733), de Vivaldi, ambientada no período da conquista do Império Azteca por Hernán Cortés; ou da ópera-ballet Les Indes galantes (1735), de Rameau, com quadros independentes que decorrem na Turquia, no Peru, na Pérsia e nas florestas da América do Norte. Nem Rameau nem o seu libretista, Louis Fuzelier, nem o seu público, tinham qualquer conhecimento sobre os povos e as paragens evocados em Les Indes galantes: os enredos dos quatro quadros são historietas românticas protagonizadas por príncipes e belas escravas e envolvendo rivalidades amorosas, jogos de sedução, logros, traições e desmascaramentos, terminando quase sempre em reviravoltas que proporcionam a dissipação das tensões e um final feliz.

[“Menuets pour les guerriers et les amazones” e ária “Régnez, plaisirs et jeux! Triomphez dans nos bois!”, do IV quadro (Les Sauvages), de Les Indes galantes, de Rameau, pela soprano Patricia Petibon (Zima) e Les Arts Florissants, em instrumentos de época, com direcção de William Christie e encenação de Andre Serban, na Opéra National de Paris, 2004]

No Classicismo e, sobretudo, no Romantismo, os cenários americanos foram sendo preteridos em favor dos orientais – com particular insistência no mundo otomano – mas os libretos não ganharam em veracidade etnográfica.

A função da música era entreter, não suscitar reflexões sobre questões existenciais, injustiças sociais, a dureza da vida das pessoas comuns ou a crueldade das guerras e conquistas, e muito menos apelar ao derrube da ordem instituída – afinal, a realeza e a aristocracia eram os promotores, mecenas ou empregadores directos dos compositores. Os protagonistas das óperas do século XVIII são quase todos príncipes e princesas e até os que entram em cena como plebeus acabam, no último acto, por revelar ser também de sangue azul (simularam ser plebeus para efeito dos seus jogos de sedução ou foram, em criança, afastados da sucessão do trono e entregues a um casal de camponeses), por reivindicar os seus direitos hereditários numa ária de bravura.

Nas fantasiosas, perfumadas e acolchoadas cortes otomanas de O rapto do serralho (1782), de Mozart, ou de L’italiana in Algeri (1813), de Rossini, a condição de escravo dos protagonistas pouco tem de penoso (é certo que estão privados de liberdade, mas usufruem de luxo e ócio em quantidades ilimitadas) e o harém é apenas cenário (de bilhete postal) para uma frívola intriga amorosa. De qualquer modo, deve ser realçado que nas duas óperas mencionadas de Mozart e Rossini os esclavagistas são os turcos e os cativos são os europeus.

[Excerto de L’italiana in Algeri, de Rossini, por Marilyn Horne (Isabella), Douglas Ahlstedt (Lindoro), Paolo Montarsolo (Mustafà, o bey de Argel) e o Coro e Orquestra da Metropolitan Opera de Nova Iorque, com direcção de James Levine, numa produção de 1986:]

Nesta indiferença quase absoluta pela realidade extra-europeia, a “Cantata do Café” (“Schweigt stille, plaudert nicht” BWV 211), composta por Johann Sebastian Bach, por volta de 1732-35, ocupa um lugar que poderá revelar-se desconfortável. Esta cantata profana – o mais próximo que Bach esteve de compor uma mini-ópera (o que justifica que, por vezes, seja apresentada em versão encenada) – aborda, de forma exagerada e cómica, a popularidade na Europa desta infusão de grãos que eram o fruto do suor e sangue de escravos africanos, que o libreto não menciona. É possível que os vigilantes woke um dia descubram que Bach compôs uma obra sobre café omitindo deliberadamente a horrenda realidade humana que lhe estava subjacente e proponham a sua remoção dos repertórios ou, pelo menos, exijam que a sua execução seja precedida de um enquadramento histórico que instile um sentimento de culpa no público maioritariamente branco das salas de concertos.

[Ária “Ei, wie schmeckt der Coffe süsse”, da “Cantata do Café” (Kaffeekantate), de Bach, por Robin Johannsen (Liesgen) e Accademia Montis Regalis, em instrumentos de época, com direcção de Alessandro De Marchi, no Festival de Música Antiga de Innsbruck, 2010:]

Quem branqueou o cânone ocidental?

Os académicos de Oxford não foram os primeiros a dar-se conta da intolerável dominância de compositores europeus no ensino de música: em Julho de 2020, um estudo do University College of London concluíra, após escrutínio das peças utilizadas nos exames (envolvendo 15 instrumentos diferentes) das várias escolas de música que integram a Associated Board of the Royal Schools of Music (ABRSM), que 98.8% das 3166 peças eram da autoria de compositores brancos e que os restantes 1.2% correspondiam oito compositores negros. Para mais, esta representação residual de compositores negros (onde figuram, por exemplo Miles Davis e Duke Ellington) devia-se sobretudo aos cursos de jazz – na música clássica a ausência de compositores negros era ainda mais notória e não havia um sequer entre os autores das 158 peças usadas nos cursos e exames de piano.

A “revelação” desta situação suscitou várias reacções de indignação e levou ao surgimento de uma petição reclamando a inclusão de mais compositores negros no ensino da música nas escolas da ABRSM. De acordo com Grace Healy, a promotora (branca) da petição, “existem historicamente imensos compositores negros que moldaram o curso da música clássica ocidental: Chevalier de Saint-Georges, Florence Price, Scott Joplin, Samuel Coleridge-Taylor, George Bridgetower, William Grant Still, Julia Perry, Undine Smith Moore, Robert Nathaniel Dett, George Walker, Hale Smith, Nora Holt, Ulysses Kay, William Dawson, Margaret Bonds, Francis Johnson, Eva Jessye, Shirley Graham du Bois, Thomas Wiggins, Will Marion Cook…, todavia os seus nomes são sistematicamente omitidos. Porque limitamos a diversidade numa área que tem indiscutivelmente uma história rica e variada e contribuímos para o apagamento dos negros da história ocidental?”.

William Grant Still (1895-1978) não só foi um dos mais talentosos e prolíficos compositores clássicos afro-americanos, como foi o primeiro afro-americano a dirigir uma orquestra “de primeira divisão” e a ter uma sinfonia sua estreada por uma orquestra “de primeira divisão”. Foto de 1949 por Carl Van Vechten

É provável que o leitor nunca tenha ouvido música saída da pena destes compositores – com excepção de Scott Joplin – ou tenha sequer ouvido falar deles e há uma boa razão para tal e não envolve uma conspiração de supremacistas brancos com o fito de “apagar os negros da história”: é que nenhum deles “moldou o curso da música clássica ocidental”. Alguns deles são compositores estimáveis, mas secundários – e a história da música está cheia de compositores brancos igualmente estimáveis e secundários que foram remetidos para a obscuridade. E outros nomes nesta lista nem sequer surgem como notas de rodapé nas histórias da música mais detalhadas.

E se é verdade que Scott Joplin (c.1868-1917) foi um compositor influente, a sua influência exerceu-se sobretudo na música popular e no jazz, não na música clássica. A sua produção centrou-se em peças para piano no registo ragtime e a sua produção “erudita” é escassa e irrelevante: a sua única sinfonia perdeu-se e o mesmo aconteceu com o seu único concerto para piano e a sua primeira ópera, A guest of honor (1901): esta última costuma ser mencionada por razões extra-musicais: tinha por tema o jantar oferecido, nesse mesmo ano, na Casa Branca, ao líder dos direitos cívicos Booker T. Washington pelo presidente Theodore Roosevelt. Da produção clássica de Joplin sobrou a ópera Treemonisha, também ela com temática ligada à luta pelos direitos cívicos dos afro-americanos: foi completada em 1910, num versão só com acompanhamento de piano e foi sob essa forma que teve a sua primeira (periclitante) apresentação, em 1915, em versão de concerto; a estreia em versão orquestrada (por J.T. Anderson) e encenada só teve lugar em 1972. Será talvez um marco na afirmação dos afro-americanos na sociedade americana, mas foi e é irrelevante para a História da música clássica.

A lista de Healey apresenta dois enviesamentos que lhe retiram credibilidade: a percentagem de mulheres compositoras é de 35% (em contraste com um cânone de compositores de música clássica quase exclusivamente masculino) e a percentagem de compositores vivos é de 0% (o mais “jovem” é Ulisses Kay, falecido em 1995).

[“A real slow drag”, final da ópera Treemonisha, de Joplin, em orquestração de Gunther Schuller, interpretada por Carmen Balthrop (soprano) e Houston Grand Opera Orchestra, com direcção de Gunther Schuller, num registo de 1975 para a Deutsche Grammophon:]

Healy, que é professora de piano, teclista da banda de disco-punk Bugeye e doutoranda na Universidade de Huddersfield, na Grã-Bretanha, com uma tese que “examina a influência da filosofia e dos movimentos artísticos do século XX no punk e no pós-punk”, ou está tragicamente mal informada ou faz parte do número crescente de investigadores e académicos nas faculdades de humanidades que confundem ciência com activismo. Por outro lado, pode ser apenas uma estratégia de sobrevivência num meio académico cada vez mais superlotado e competitivo – é cada vez mais frequente ver irromper nos media académicos obscuros defendendo teorias bombásticas e ao arrepio do que é aceite consensualmente na comunidade científica, na esperança de obter 15 minutos de fama.

Seja qual for a motivação para as proclamações descabeladas dos académicos woke, não é verdade que “o cânone ocidental tenha sido branqueado” e não faltam razões para explicar a reduzida relevância dos negros na música clássica ocidental: durante a maior parte da história da Europa, os negros tiveram o estatuto de escravos e mesmo depois de a escravatura ter sido abolida, permaneceram durante muito tempo remetidos ao desempenho de tarefas humildes. Mesmo na viragem dos séculos XIX/XX – quando o repertório clássico começou a cristalizar –, em Milão, Paris ou Viena os negros eram relativamente raros e não estavam seguramente no conservatório – a não ser que trabalhassem na sua limpeza e manutenção.

“Interior de fantasia com Jan Steen e a família de Gerrit Schouten” (c.1660), por Jan Steen. As filhas de Gerrit Schouten exibem os seus dotes musicais, enquanto um criado (escravo?) negro se prepara para servir o vinho

Um mulato de Guadalupe brilha em Paris

O primeiro negro que conseguiu obter reconhecimento no níveo meio musical europeu foi Joseph Bologne (1745-1799), usualmente referido como Chevalier de Saint-Georges. Não foi por acaso que Grace Healy o escolheu para encabeçar a lista de compositores negros merecedores de maior visibilidade, pois foi uma das figuras mais extraordinárias da música do século XVIII.

Bologne nascera na ilha de Guadalupe, então uma colónia francesa, fruto da união de Georges de Bologne, um branco, dono de uma próspera plantação, com Anne (Nanon), uma escrava negra ao serviço da sua esposa. Ao contrário do que era usual em situações destas, o pai zelou para que Joseph tivesse uma educação esmerada e quando o rapaz tinha sete anos foi enviado para um internato em França. Georges e Anne instalaram-se em Paris em 1755 e o pai parece ter projectado para Joseph uma carreira militar, pois em 1758 matriculou-a na Académie Royale Polytechnique des Armes et de l’Équitation. Aqui fez progressos tão fulgurantes na esgrima que, ainda adolescente, desafiou para um duelo (que apaixonou Paris) o mestre de esgrima Alexandre Picard, que o apodara de “mulato” – e venceu-o.

Georges de Bologne foi nobilitado em 1757, mas as leis da época impediam que alguém com um progenitor negro pudesse herdar títulos de nobreza – todavia, Georges, após regressar, em 1764, a Guadalupe (onde faleceria, dez anos depois), lavrou testamento em que assegurou uma confortável anuidade para Joseph, que, em 1766, concluídos os estudos, foi admitido nos Gendarmes du Roi.

Joseph Bologne, numa gravura de 1789 por William Ward, a partir de um retrato executado por Mather Brown em 1787

Pouco se sabe sobre a educação musical de Joseph Bologne (uma fonte pouco fiável afirma que estudou com o violinista virtuoso Jean-Marie Leclair), mas a sua inclinação natural para a esgrima, a equitação e outras proezas atléticas (foi também um boxeur temível) parece ter sido complementada por uma viva inteligência musical. Assimilou tão rapidamente a técnica do violino que em 1764 – aos 19 anos – se tornou dedicatário de dois concertos para violino compostos por Antonio Lolli, seguidos, dois anos depois, por uma colecção de seis trios de cordas compostos por François-Joseph Gossec, então um dos mais prestigiados compositores franceses. Em 1769, quando Gossec fundou Le Concert des Amateurs (que o nome não iluda: era uma orquestra profissional), deu a Saint-Georges o posto de primeiro violino.

Não tardou que Saint-Georges se lançasse também na composição: estreou-se com três sonatas para teclado e violino, datadas de 1770 (mas só publicadas em 1781) e rubricou uma série de concertos para o seu instrumento, num total de 14, publicados entre 1773 e 1777. Ao mesmo tempo, publicou também sinfonias concertantes para um ou dois violinos – oito entre 1775 e 1778 –, duas sinfonias propriamente ditas, surgidas em 1779, e três colecções de seis quartetos de cordas cada, publicadas entre 1773 e 1785.

Em 1777, estreou a sua primeira ópera, Ernestine, que, apesar de ter tido uma recepção fria que impediu que tivesse mais récitas, levou a que o foco de interesse de Saint-Georges se deslocasse para o teatro, deixando praticamente de compor música instrumental após 1778-79. Porém, das seis óperas que estreou entre 1778 e 1790, nenhuma foi um sucesso e apenas chegou aos nossos dias a partitura de L’amant anonyme (1780).

[I andamento (Allegro) da Sinfonia op.11 n.º 1, do Chevalier de Saint-Georges, pela Tafelmusik Baroque Orchestra, em instrumentos de época, com direcção de Jeanne Lamon, do álbum Le Mozart Noir (Tafelmusik):]

Entretanto, em 1773, Gossec assumira a direcção do Concert Spirituel, a principal instituição de concertos de Paris, e legara a direcção de Le Concert des Amateurs a Saint-Georges, cargo que assumiu até 1781, altura em que a instituição foi dissolvida devido a problemas financeiros. Regressaria pouco depois, ainda sob a direcção de Saint-Georges e com uma formação similar, agora sob a designação Concert Olympique (ou Concert de la Loge Olympique). Na qualidade de director musical desta instituição, Saint-Georges encomendou a Haydn as célebres seis “Sinfonias de Paris” (n.º 82 a 87) e dirigiu a sua estreia parisiense, em Janeiro de 1786. A qualidade das prestações e o prestígio do Concert Olympique são atestados pelo facto de a rainha Marie-Antoinette ser presença frequente nos concertos.

[I andamento (Adagio lento – Allegro) da Sinfonia op.5 n.º 3 Pastorella, Chevalier de Saint-Georges, pela Tafelmusik Baroque Orchestra, em instrumentos de época, com direcção de Jeanne Lamon, do álbum Le Mozart Noir (Tafelmusik):]

Deve depreender-se daqui que Saint-Georges estava perfeitamente integrado na sociedade parisiense e que a sua cor de pele não era um obstáculo à sua aceitação? Claro que não: em 1776, quando a Académie Royale de Musique – antecessora da actual Opéra National de Paris – ponderou o nome de Saint-Georges para o cargo de director, três das cantoras mais prestigiadas da companhia apresentaram uma petição à rainha, assegurando que a “ sua honra e a sua refinada consciência nunca poderiam permitir que recebessem ordens de um mulato”, o que terá levado Saint-Georges a retirar a sua candidatura, de forma a não deixar Marie-Antoinette numa posição embaraçosa. A rainha compensaria parcialmente Saint-Georges passando a incluí-lo no círculo restrito de músicos que convidava para tocar nos concertos privados nos seus aposentos no palácio de Versailles. Pouco depois, Saint-Georges seria nomeado director musical do teatro privado da Marquesa de Montesson, esposa do Duque de Orléans.

É de realçar que esta intensa actividade musical não embotou os dotes de Saint-Georges no manejo da espada, tendo continuado a mostrar a sua perícia em confrontos com alguns dos mais notáveis esgrimistas do seu tempo.

Joseph Bologne num duelo, por Alexandre-Auguste Robineau, 1787

Liberdade, igualdade, fraternidade?

A Revolução Francesa de 1789 pôs, praticamente, termo à carreira de Saint-Georges como compositor: por um lado, porque o tumultuoso período que se seguiu foi pouco propício a actividades musicais, quanto mais não fosse porque a realeza e a aristocracia que as sustentavam passaram a ter como preocupação mais premente salvar o pescoço; por outro porque Saint-Georges, que, apesar do seu indiscutível talento, nunca deixara de defrontar-se com a discriminação racial, aderiu entusiasticamente a uma nova ordem que proclamava que todos os homens são iguais, independentemente da cor da sua pele. Saint-Georges reassumiu, assim, a carreira militar que iniciara na juventude e em 1792 o Parlamento outorgou-lhe o comando, com o posto de coronel, de uma unidade constituída exclusivamente por voluntários negros, com origem nas Antilhas ou em África, que foi baptizada como “Légion des Américains et du Midi”, mas que ficou conhecida como “Légion de Saint-Georges” pelos feitos militares a que o seu enérgico e destemido comandante a conduziu.

[I andamento (Allegro presto) da abertura da ópera L’amant anonyme, do Chevalier de Saint-Georges, pela Tafelmusik Baroque Orchestra, em instrumentos de época, com direcção de Jeanne Lamon, do álbum Le Mozart Noir (Tafelmusik):]

Sempre que os afazeres militares lhe permitiam, Saint-Georges não perdia uma oportunidade para retomar o violino, mas esta paixão foi mal recebida no clima de crescente radicalismo e desvario que tomara conta da Revolução: em Novembro de 1793, Saint-Georges foi detido, demitido do seu posto e condenado à prisão, não só por dispersar as suas energias em actividades não-revolucionárias (como a música) como por suspeita de simpatia pela causa monárquica. Após 18 meses na prisão foi libertado e expulso do exército e pouco se sabe de certo sobre a sua vida daí para a frente. Há quem o coloque de regresso às Antilhas, na colónia de Sainte-Domingue (actual Haiti), onde se teria cruzado com Toussaint Louverture, líder da rebelião dos negros contra o poder colonial francês, mas é provável que não tenha voltado a sair da Europa. Em 1797 regressou às lides musicais, fundando a orquestra Le Cercle de l’Harmonie (cujo nome foi “repescado” por Jérémie Rohrer para a sua actual orquestra de instrumentos de época), mas esta não parece ter alcançado grande sucesso, pois o Chevalier de Saint-Georges faleceu na miséria em 1799, com 54 anos, em resultado de uma úlcera.

[II andamento (Adagio) do Concerto para violino op.3 n.º 1, do Chevalier de Saint-Georges, por Linda Melsted (violino) e a Tafelmusik Baroque Orchestra, em instrumentos de época, com direcção de Jeanne Lamon, do álbum Le Mozart Noir (Tafelmusik):]

A implacável triagem do tempo

A alcunha “Mozart negro” que foi atribuída postumamente a Saint-Georges não só é infeliz (ao colocar ênfase na cor da pele) como é destituída de sentido, pois as vidas e as carreiras dos dois músicos nada têm em comum, exceptuando o facto de terem partilhado a mesma mansão durante dois meses, quando da terceira estadia de Mozart em Paris, em 1778. A alcunha de Saint-Georges labora noutro equívoco: dá a entender que este possuiria um génio musical comparável ao de Mozart, quando era “apenas” um compositor talentoso.

Grace Healy atribui a escassa visibilidade actual das obras de Saint-Georges ao “branqueamento do cânone ocidental”, mas esta teoria ignora que há centenas (milhares?) de compositores brancos tão talentosos quanto Saint-Georges e que, como ele, desfrutaram de grande popularidade em vida, desempenharam cargos prestigiantes e conviveram com marquesas, duques e rainhas, e acabaram por ser vítimas de um esquecimento similar. As massas contentam-se com dois ou três nomes por século e mesmo os melómanos mais dedicados não têm espaço nas suas discotecas e nas suas memórias para reter todos os compositores talentosos que a história produziu.

É instrutivo examinar qual o estatuto de popularidade actual de alguns contemporâneos de Saint-Georges, que, como ele, se distinguiram na música orquestral.

Giovanni Battista Sammartini (c.1701-1775). Desenvolveu actividade em Milão – em 11 igrejas diferentes – e deixou razoável produção de música sacra, mas distinguiu-se sobretudo na sinfonia, de que produziu pelo menos 78 exemplares.

[Sinfonia em fá JC.37, de Giovanni Battista Sammartini, pela Orchestra da Camera Milano Classica, com direcção de Roberto Gini (Dynanmic):]

Antonio Brioschi (fl. 1725-1750). Activo na região de Milão; compôs cerca de 90 sinfonias

Jean-Joseph Cassanéa de Mondonville (1711-1772). Foi protegido de Madame de Pompadour e desempenhou cargos na Chapelle Royale e no Concert Spirituel. Teve papel pioneiro no desenvolvimento da sinfonia em França, com a publicação, em 1749, das Six Sonates en Symphonies.

[II andamento (Aria: Andante gratioso), da Sonata n.º 4 das Six Sonates en Symphonies op.3, de Jean-Joseph Cassanéa de Mondonville, por Les Musiciens du Louvre, em instrumentos de época, com direcção de Marc Minkowski (Archiv/Deutsche Grammophon):]

Ignaz Holzbauer (1711-1783). Activo em Holleschau, Viena, Stuttgart e Mannheim. Compôs 196 sinfonias, parte das quais se perderam – hoje “apenas” sobrevivem 130, a que há a somar 13 concertos.

Antoine Dauvergne (1713-1797). Como Mondonville, desempenhou importantes cargos no Concert Spirituel, na corte francesa e na Académie Royale de Musique, e os seus Concerts de Simphonies, de 1751 são obras pioneiras da sinfonia em França.

Georg Christoph Wagenseil (1715-1777). Nasceu em Viena e foi aluno de Johann Joseph Fux, o mestre da capela imperial, à qual o próprio Wagenseil ficaria vinculado de 1739 até à morte. Deixou uma centena de sinfonias.

Johann Stamitz (1717-1757). Nasceu na Boémia como Jan Václav Antonín Stamic; distinguiu-se na corte de Mannheim, onde germanizou o nome e foi ascendendo gradualmente na hierarquia: primeiro violino, Konzertmeister e director musical. Deixou 10 trios orquestrais, uma trintena de concertos e 68 sinfonias.

[IV andamento (Menuetto) da Sinfonia em sol maior, de Johann Stamitz, pelo Concerto Köln, em instrumentos de época (Teldec/Warner Classics):]

Carl Friedrich Abel (1723-87). Nasceu em Cöthen, na Alemanha, foi gambista na corte de Dresden e em 1759 instalou-se em Londres, onde se tornou numa figura dominante da vida musical. Legou-nos 40 sinfonias.

Christian Cannabich (1731-1798). Filho de um músico da orquestra de Mannheim, discípulo no violino de Stamitz, estudos em Itália com Jommelli e Sammartini. De regresso a Mannheim, ascendeu a primeiro violinista e director da orquestra. Compôs 75 sinfonias.

Anton Fils (1733-1760). Nasceu na Baviera, foi aluno de Stamitz e membro da orquestra de Mannheim. Apesar de ter falecido com apenas 26 anos, deixou 34 sinfonias e 30 concertos.

[I andamento (Allegro) da Sinfonia em sol menor, de Anton Fils, pelo Concerto Köln, em instrumentos de época (Teldec/Warner Classics):]

Franz Ignaz Beck (1734-1809). Filho de um músico da orquestra de Mannheim e aluno de violino de Stamitz. A promissora carreira em Mannheim foi cortada por um imbróglio que o levou a fugir e a fazer pela vida em Itália, Marselha e Bordéus. Compôs 24 sinfonias, publicadas em Paris.

François-Joseph Gossec (1734-1829). Aos 17 anos tornou-se aluno de Rameau em Paris, onde viveria o resto da vida. Dirigiu a orquestras privadas de Le Riche de La Poupelinière e do Príncipe de Condé, bem como o Concert Spirituel e Le Concert des Amateurs. Legou-nos um total de 60 sinfonias.

[I andamento (Grave maestoso) da Symphonie à grand orchestre op.13 n.º 2 Br.62 La chasse, de François-Joseph Gossec, pelo Concerto Köln, em instrumentos de época (Capriccio):]

Karl von Ordoñez (1734-1786). Filho de um oficial do exército imperial de ascendência espanhola. Apesar de só se dedicar à música nos tempos livres das suas funções como alto funcionário judicial, de ter uma saúde débil, acumular o cargo de violinista em duas orquestras e ter falecido com apenas 52 anos, arranjou maneira de compor 73 sinfonias.

Johann Christian Bach (1735-1782). Filho mais novo de Johann Sebastian; em 1754 estabeleceu-se em Milão, onde estudou com o padre Martini, conviveu com os irmãos Sammartini, foi organista da catedral, triunfou como compositor de ópera e recebeu a visita do jovem Mozart (que o idolatrava). Em 1762 mudou-se para Londres, estabelecendo uma frutuosa parceria com Carl Friedrich Abel e compondo c.30 sinfonias, c.20 sinfonias concertantes e c.30 concertos.

Ignaz Fränzl (1736-1811). Filho de um músico da orquestra de Mannheim e aluno de violino de Stamitz. Com excepção de uma passagem pelo Concert Spirituel, fez toda a carreira em Mannheim, onde foi primeiro violino. Compôs duas sinfonias e seis concertos para violino.

Josef Mysliveček (1737-1781). Este compositor boémio foi um dos mais populares da Europa no 3.º quartel do século XVIII (era muito admirado pelo jovem Mozart), sobretudo graças às mais de 20 óperas que estreou em Itália, país onde decorreu a sua carreira. Deixou também uma dúzia de concertos e 55 sinfonias.

[I andamento (Allegro assai) da Sinfonia em fá maior, de Josef Mysliveček, pelo Concerto Köln, em instrumentos de época (Archiv/Deutsche Grammophon):]

Carl Ditters von Dittersdorf (1739-1799). O talento deste filho de um alfaiate vienense levou a que a imperatriz Maria Teresa o elevasse à nobreza. Coleccionou cargos em cortes na Alemanha e na Austro-Hungria e deixou muitas dezenas de concertos e 120 sinfonias de atribuição confirmada, mais 90 de atribuição incerta.

Johann Baptist Wanhal (1739-1813). Nasceu na Boémia (onde hoje é conhecido como Jan Křtitel Vanhal), numa família humilde e foi apadrinhado, ainda muito jovem, pela Condessa Schaffgotsch que o tomou ao seu serviço como pianista e o levou para Viena, onde recebeu aulas de Dittersdorf. Após estudos em Itália, regressou a Viena, onde compôs 1300 obras. Publicou 51 sinfonias, deixou mais 81 em manuscrito e teria composto muitas mais se não tivesse abandonado o género no final da década de 1770.

[I andamento (Allegro con brio) da Sinfonia em dó maior Bryan C.11, de Johann Baptist Wanhal, pelo Concerto Köln, em instrumentos de época (Teldec/Warner Classics):]

Wenzel Pichl (1741-1805). Nasceu na Boémia como Vacláv Pichl e, após estudos em Bechyne e Praga, foi violinista Tyn e em Praga, primeiro violino da orquestra do Teatro Imperial de Viena e mestre de capela do governador austríaco da Lombardia, em Milão. Deixou 400 obras, onde se contam 89 sinfonias.

Simon Le Duc (1742-1777). Violinista de renome, natural de Paris; co-dirigiu o Concert Spirituel com Gossec e deixou três trios orquestrais e três sinfonias.

Carl Stamitz (1745-1801). Filho de Johann Stamitz, ingressou na orquestra de Mannheim como violinista com apenas 17 anos; numa carreira marcada por incessantes tournées pela Europa, teve Paris como base de operações a partir de 1770. Deixou 50 sinfonias, 38 sinfonias concertantes e mais de 50 concertos.

[III andamento (Allegro moderato – Presto) da Symphonie de chasse em ré maior (1772), de Carl Stamitz, pela Das Neue Mannheimer Orchestra, em instrumentos de época, com direcção de Anders Muskens, do álbum Army Of Generals: The World Of The Court Orchestra In Mannheim 1742-1778, vol.1 (EtCetera):]

Leopold Koželuch (1747-1818). Nasceu na Boémia e aos 34 anos mudou-se para Viena, onde decorreu o resto da carreira. Legou-nos 400 obras, entre as quais se contam uma trintena de sinfonias e 22 concertos para piano.

Antonio Rosetti (c.1750-1792). Nasceu na Boémia como Franz Anton Rösler. Activo nas cortes de Oettingen-Wallerstein e Ludwigslust e em Paris. Apesar de ter falecido com apenas 42 anos, rubricou 400 obras, em que se incluem 44 sinfonias, 5 sinfonias concertantes e 50 concertos.

[I andamento (Vivace) da Sinfonia em ré maior Kaul I:18 La chasse, de Antonio Rosetti, pelo Concerto Köln, em instrumentos de época (Teldec/Warner Classics):]

Paul Wranitzky (1756-1808). Nasceu na Morávia, como Pavel Vranicky, e aos 20 anos mudou-se para Viena, onde teve (diz-se) aulas com Haydn, foi professor de violino e director da orquestra do príncipe Lobkowitz, e dirigiu a orquestra do Teatro Imperial. Compôs 50 sinfonias.

Joseph Martin Kraus (1756-1792). Este contemporâneo quase exacto de Mozart nasceu na Alemanha e radicou-se na Suécia aos 21 anos, o que levou a que fosse baptizado como “o Mozart sueco”. Após algumas dificuldades iniciais em impor-se na nova pátria, o rei Gustavo III tomou-o sob a sua protecção e nomeou-o director da Real Academia de Música. Compôs algumas dezenas de sinfonias, de que sobraram apenas 12.

[I andamento (Andante mesto) da Sinfonia em dó menor VB.148 Symphonie funèbre (1792), pelo Concerto Köln, em instrumentos de época (Capriccio). A obra foi composta para as cerimónias fúnebres de Gustavo III, em Abril de 1792 e Kraus apenas viveria mais nove meses do que o monarca:]

Enquanto vivos, estes compositores foram tão famosos quanto o Chevalier de Saint-Georges e alguns deles contribuíram efectivamente para “moldar o curso da música clássica ocidental” (o que não pode dizer-se de Saint-Georges). Todavia, estão praticamente ausentes dos programas das escolas de música e poucos leitores terão ouvido falar deles (com eventual excepção de Johann Christian Bach) e menos ainda terão em casa discos com obras suas. Quem despenda algum tempo a familiarizar-se com estes nomes esquecidos reconhecerá quão injusto é que o cânone da música orquestral da segunda metade do século XVIII se cinja quase exclusivamente a Haydn e Mozart, quando muitas obras destes não são mais meritórias, inovadoras e inspiradas do que as de Sammartini, Wanhal ou Mysliveček. Estes nomes não foram apagados deliberadamente do cânone por supremacistas brancos, mas por um efeito de afunilamento da perspectiva histórica, a que não é estranha a preguiça mental de melómanos e músicos que se contentam em revisitar o que já conhecem.

É saudável quebrar a rotina e arejar e diversificar os curricula das escolas de música? Sem dúvida, mas Saint-Georges não é um candidato mais forte do que qualquer dos nomes acima listados. Porém, estes entram na “corrida” com uma desvantagem: não têm activistas travestidos de investigadores universitários a fazer claque por eles.

[IV andamento (Finale) da Sinfonia em dó maior Die Vier Weltalter (As quatro eras do mundo), de Carl Ditters von Dittersdorf, pela Cappella Coloniensis, em instrumentos de época, com direcção de Hans-Martin Linde & Ulf Björlin (Capriccio):]

A célebre Sonata mulattica

No dia 24 de Maio de 1803, o copista que costumava trabalhar para Beethoven foi arrancado da cama às 4:30 da madrugada: nessa noite, pelas 20:00, o compositor iria participar, na qualidade de pianista, na apresentação, no Augarten, um parque público em Viena, de um reputado virtuoso do violino, um jovem anglo-polaco chamado George Polgreen Bridgetower; Beethoven, entusiasmado pelos dotes do solista, lançara-se, poucos dias antes, na composição de uma grandiosa sonata para violino e piano (com mais de 40 minutos de duração, algo nunca visto) que lhe era destinada. O copista conseguiu despachar o seu serviço antes do início do concerto, mas não a tempo de Bridgetower conseguir ensaiar a sonata – o que não o impediu de rubricar uma interpretação de alto nível, lendo a partitura à primeira. O clima de amizade e descontracção entre Beethoven e Bridgetower está bem patente no título trocista que o compositor atribuíra à obra: “Sonata mulattica composta per il mulatto Brischdauer, gran pazzo e compositore mulattico”.

“Brischdauer” era uma corrupção germanizante de “Bridgetower”, “gran pazzo” pode ser traduzido, livremente, como “ganda maluco” e a designação “mulatto” explica-se por Bridgetower ser, como Saint-Georges, um dos raros virtuosos do violino na Europa do classicismo a possuir sangue negro.

George Bridgetower, numa gravura por Henry Eridge, 1790

George Augustus Polgreen Bridgetower nascera em 1778 em Biała Podalska, na Polónia, filho de mãe polaca e de pai mestiço, proveniente das Índias Ocidentais, provavelmente de Barbados. O pai, Jack Frederick Bridgetower, que fazia questão de apresentar-se com “príncipe africano”, estava então ao serviço do príncipe polaco Hieronim Wincenty Radziwiłł, e passaria, no ano seguinte, para o serviço dos príncipes Esterházy (patrões de Haydn). O talento para o violino exibido precocemente pelo pequeno George levou a que, como Mozart, fosse exibido perante a realeza e aristocracia europeias; quando, em 1791, o Príncipe de Gales (futuro Jorge IV) ouviu George, ficou tão encantado que decidiu tomá-lo ao seu serviço e assegurar que teria uma educação musical esmerada, que lhe foi ministrada pelos mais reputados mestres então activos em Londres. Foi aproveitando uma licença concedida pelo Príncipe de Gales que, em 1803, Bridgetower se deslocou a Dresden, para visitar o irmão, e aproveitou para dar uma volta por Viena.

Na noite de 24 de Maio, após o concerto, Bridgetower e Beethoven foram tomar uns copos, mas a amizade entre os dois homens estilhaçou-se quando o violinista fez, inadvertidamente, observações lesivas para a honra de uma senhora que Beethoven tinha em grande estima. O compositor revogou de imediato a dedicatória a Bridgetower e quando a obra foi publicada em 1805, como Sonata para violino e piano n.º 9 op.47, o dedicatário passara a ser o virtuoso francês do violino Rodolphe Kreutzer, que Beethoven conhecera pessoalmente em Viena, em 1798. Também esta escolha acabou por revelar-se infeliz, pois Kreutzer declarou que a sonata era “absolutamente incompreensível” e nunca chegou a tocá-la em público – o que não impede que a peça tenha ficado na história como “Sonata Kreutzer” e seja vista como o cume da produção de Beethoven para violino e piano.

[IV andamento (Allegro) da Sonata para violino e piano n.º 9 op.47 de Beethoven, por Itzhak Perlman (violino) e Vladimir Ashkenazy (piano) (Decca):]

Se o talento de George Bridgetower como violinista é indiscutível – o endosso de um juiz tão exigente quanto Beethoven bastaria – já a sua inclusão na lista de “compositores negros que moldaram o curso da música clássica ocidental” é pura fantasia: Bridgetower foi um compositor pouco prolífico, parte do que compôs perdeu-se e o que sobreviveu é de escassa relevância e não produziu efeito algum sobre o rumo da música.

A cor da pele do compositor afecta a música?

É certo que alguns compositores negros se inspiraram em temas relevantes para a condição dos afro-descendentes numa sociedade dominada por brancos – é o caso, como se viu acima, das duas óperas de Scott Joplin. Outros poderão ter buscado inspiração nas tradições ancestrais de África ou nas tradições desenvolvidas no Novo Mundo, em resultado da fusão das tradições africanas com as tradições indígenas americanas e as tradições europeias. Estas inspirações tanto podem manifestar-se nos libretos das óperas e nos textos de cantatas, canções e peças corais, como nas melodias, ritmos e instrumentação das obras. É o caso, por exemplo, da Sinfonia n.º 1 Afro-American (1930), de William Grant Still, que está impregnada de blues e jazz.

[I andamento (Moderato assai) da Sinfonia n.º 1 Afro-American, de William Grant Still, pela Detroit Symphony Orchestra, com direcção de Neeme Järvi (Chandos):]

Todavia, a maioria dos compositores “negros” com que se pretende quebrar a “hegemonia branca” acabam por soar, na linguagem e forma, indistinguíveis dos seus colegas brancos. Tome-se por exemplo a Ballade para orquestra em lá menor op.33 (1898), de Samuel Coleridge-Taylor: insere-se perfeitamente no registo do Romantismo tardio então em voga na Grã-Bretanha ou na Europa continental.

[Ballade para orquestra op.33, de Coleridge-Taylor, pela Royal Liverpool Philharmonic Orchestra, dirigida por Grant Llewellyn:]

A rarefeita produção de George Bridgetower e a escassa atenção que tem despertado junto dos intérpretes tornam difícil fazer uma apreciação: no YouTube está disponível uma única peça de sua autoria (o que contrasta com a abundância de vídeos em que que se enaltece o talento e relevância de Bridgetower). A canção “Henry: A ballad” (c.1812) em nada se distingue do que os compositores brancos do seu tempo produziam, o que não surpreenderá quem tenha cotejado as sinfonias do Chevalier de Saint-Georges com as dos seus contemporâneos.

[“Henry: A ballad”, de Bridgetower, por Zyda Culpepper (soprano) e Sylvia Berry (fortepiano):]

Se muitas das peças de compositores negros não incorporam marcas “identitárias”, o que se ganha em incorporá-las no cânone à custa da supressão de peças de compositores brancos mais talentosos? O que causa desconforto aos militantes das causas identitárias é a linguagem, a forma e as técnicas de composição da música ocidental ou é a cor da pele de quem compôs as peças?

[“Water in the moonlight” (1866), do afro-americano Thomas Wiggins: música de salão de meados do século XIX, sem nada que seja distintivamente afro-americano:]

Outras ausências “escandalosas” no cânone

Quando se examina o cânone da música clássica pelo prisma da etnicidade, constata-se, sem surpresa, que não são os negros os únicos ausentes dos programas de concertos e de discos.

Tome-se o caso das grandes e antigas civilizações da Ásia Oriental: nos programas de concertos, na melhor das hipóteses, a Coreia está representada por Unsuk Chin (n.1961), o Japão por Toru Takemitsu (1930-1996) e Toshio Hosokawa (n.1955) e a China por Tan Dun (n.1957). Tan Dun é, por larga margem, o mais visível destes quatro nomes, pois compôs bandas sonoras para filmes de artes marciais de grande público, como Crouching tiger, hidden dragon (2000) e Hero (2002); as suas óperas subiram ao palco de salas ocidentais de prestígio (como a Metropolitan Opera de Nova Iorque); e tem recebido encomendas de grande projecção mediática, como o Concerto para piano The fire (2008), encomendado pela New York Philharmonic e destinado à super-estrela Lang Lang, e a Internet Symphony n.º 1 (2008), encomendada para a YouTube Symphony Orchestra; ainda assim, está longe de ser um compositor “canónico”. Quanto a Unsuk Chin, Takemitsu e Hosokawa são conhecidos apenas de uma pequena parte do micro-grupo dos apreciadores de música contemporânea.

[“Rain tree” (1982), de Toru Takemitsu, um dos raros compositores asiáticos com algum reconhecimento no Ocidente. Interpretação do Toronto New Music Ensemble (Naxos):]

A Índia, apesar da sua cultura milenar, da forte influência que as suas tradições musicais exerceram na música ocidental a partir de meados do século XX, e dos seus 1375 milhões de habitantes, não produziu um único compositor clássico que seja minimamente conhecido. O gamelão balinês fascinou compositores ocidentais (como Debussy) mas a Indonésia, embora seja o 4.º país mais populoso do mundo, também não tem um único representante. E mesmo que estivesse em jogo um milhão de euros, quem seria, mesmo entre os melómanos, capaz de nomear (sem recorrer ao Google ou outra ajuda externa) um compositor clássico mongol, vietnamita ou tailandês?

O mundo islâmico também não produziu nenhum compositor clássico de renome, o que não é de estranhar, dada a relação difícil que os fundamentalistas islâmicos têm com a música. Sem surpresa, foi na Turquia “ocidentalizada” de Kemal Atatürk que germinaram compositores clássicos de relevo, com o grupo conhecido como os “Cinco Turcos” (Türk Beșieri), cujo “chefe de fila”, Ahmet Adnan Saygun (1907-1991), deixou obra vasta mas que pouca divulgação tem tido fora do país natal (pese embora o empenho da editora alemã CPO). Mais recentemente, o turco Fazil Say (n. 1970) tem tirado partido da sua fama como pianista virtuoso para gravar as suas próprias composições. Todavia, quer Saygun quer Say estão muito longe de fazer parte do cânone.

[I andamento (Lento – Adagio) da Sinfonia n.º 3 op.39 (1960), do turco Ahmet Adnan Saygun, pela Staatsphilharmonie Rheinland-Pfalz, com direcção de Ari Rasilainen (CPO):]

A música desempenhou importante papel na cristianização dos nativos do Novo Mundo nos séculos XVI a XVIII e, a fim de assegurar a componente musical dos serviços religiosos, a importação de músicos e compositores europeus foi complementada com o adestramento musical de índios e mestiços. Porém, estes caíram na mais completa obscuridade e mesmo o nome de um dos mestizos mais conhecidos, Roque Jacinto de Chavarría (1688-1719), que tinha sangue índio e espanhol, será reconhecido apenas por especialistas no barroco sul-americano. O brasileiro José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), filho de um humilde casal de mulatos, conseguiu, apesar da origem, chegar a mestre da catedral do Rio de Janeiro e da capela real de D. João VI, mas acabou por ser preterido em favor do afamado compositor de ópera Marcos Portugal, quando, em 1811, este se juntou à corte portuguesa no exílio – hoje apenas os musicólogos estão a par da sua existência.

[“Dies irae” do Requiem (1816) de José Maurício Nunes Garcia, pelo Coral Reyes Bartlet, Coro de Cámara Mateo Guerra e Orquesta del Encuentro de Música Religiosa de Canarias, com direcção de Gregorio Gutiérrez, ao vivo na Iglesia de Nuestra Señora de la Peña de Francia, Puerto de la Cruz, Tenerife, 2014:]

No século XX, vários compositores latino-americanos lograram aceder ao “cânone secundário” da música clássica – os argentinos Alberto Ginastera (1916-1983) e Mauricio Kagel (1931-2008), o brasileiro Heitor Villa-Lobos (1887-1959), o cubano Leo Brouwer (n.1939), os mexicanos Charlos Chávez (1899-1978) e Silvestre Revueltas (1899-1940). Porém, estão longe do patamar de prestígio de um Bartók ou de um Ravel e, hélas!, todos eles são brancos.

A Oceânia é praticamente invisível no cânone e os poucos compositores desta proveniência com um mínimo de visibilidade são, claro, australianos brancos e neo-zelandeses brancos, não aborígenes australianos, maoris, samoanos ou fijianos.

[I andamento (Prelude) do Quarteto de cordas n.º 14 Quamby (1998), de Peter Sculthorpe, por Stephen Kent (didgeridoo) e Del Sol Quartet (Sono Luminus). O australiano (branco) Peter Sculthorpe (1929-2014) tem uma obra notável, marcada pelo recurso a instrumentos, lendas e outros elementos da cultura aborígene:]

Na verdade, a acusação de que o cânone da música clássica é gritantemente eurocêntrico oculta desigualdades tremendas dentro da própria Europa, já que é esmagadoramente dominado pela Alemanha, Áustria, Itália e França.

Os Países Baixos (no sentido lato do termo, englobando o que é hoje a Bélgica e Norte da França) foram a potência dominante durante a Idade Média e Renascimento, mas estes períodos merecem pouca atenção do grande público e os compositores holandeses tornaram-se quase invisíveis a partir do século XVI.

[Moteto “Continuo lacrimas”, de Jacobus Vaet (c.1529-1567), por The Lacock Scholars, com direcção de Greg Skidmore. Este compositor flamengo fez parte da capela de Carlos V e foi mestre de capela do imperador Maximiliano II – mas quantos estudantes e professores de música conhecem o seu nome?:]

Espanha teve rica produção musical durante a Renascença e Barroco, mas a maior parte desta caiu no olvido, e são os compositores do século XX (Albéniz, Granados, Falla, Turina, Rodrigo) que a representam no cânone.

A Rússia só ganhou representação no cânone no século XIX, com Glinka, Borodin, Balakirev, Mussorgsky, Tchaikovsky, Rimsky-Korsakov, e continuou a afirmar-se como super-potência ao longo do século XX, com Scriabin, Rachmaninov, Stravinsky, Prokofiev, Shostakovich).

A Checoslováquia só se tornou independente em 1918, mas foi um viveiro de compositores de talento a partir do século XVIII; porém, só obteve representação no cânone a partir do século XIX, com Smetana, Dvořák e Janáček e, depois, com Martinu.

O contributo da Hungria nem sempre é fácil de avaliar, dado que passou parte da sua existência fundida com a Áustria, mas está associada a nomes sonantes como Liszt, Bartók, Kodály e Ligeti.

A Polónia, apesar de ter passado bastante tempo sob o domínio de outras potências, contribuiu no século XIX com Chopin (que os franceses também reclamam como seu) e no século XX com Szymanowski, Lutoslawski e Penderecki. A música polaca não começou com Chopin, mas nenhum compositor polaco anterior a ele faz parte do cânone ou é conhecido fora de um círculo restrito de especialistas.

[Moteto “Plaudite manibus”, de Marcin Mielczewski (c.1600-1651), pelo ensemble Les Traversées Baroques, em instrumentos de época, com direcção de Étienne Meyer (K617):]

Os países nórdicos têm representação apenas a partir do final do século XIX, com Berwald (Suécia), Grieg (Noruega), Nielsen (Dinamarca) e Sibelius (Finlândia).

Os compositores dos países mais periféricos, como Portugal, Irlanda e Islândia, raramente são ouvidos fora dos próprios países (embora os entusiastas da polifonia seiscentista possam conhecer alguns mestres portugueses do século XVI).

Os Estados Bálticos e os países dos Balcãs juntam a localização periférica ao facto de terem passado a maior parte da sua existência sob domínio de outras potências – no caso dos Balcãs sob o domínio de uma potência não-europeia – pelo que não é de estranhar que não haja lugar no cânone para compositores letões, gregos ou montenegrinos (a excepção é o estónio Pärt).

A geografia, a história, a economia e a sociologia não bastam para que possa prever-se a evolução da criação artística, e a prova é que a central, pacífica, estável, próspera e muito branca Suíça não tem um único compositor no cânone – faça-se o teste: quantos leitores possuem na sua discoteca discos de Ludwig Senfl, Ernest Bloch, Arthur Honegger ou Frank Martin?

[A oratória Golgotha (1948), de Frank Martin, é uma obra-prima, mas quantas pessoas a conhecem? Coro de abertura pelo Coro de Câmara Filarmónico da Estónia e a Orquestra Sinfónica Nacional da Estónia, com direcção de Daniel Reuss (Harmonia Mundi):]

Deixou-se para o fim desta contabilidade a Grã-Bretanha, por ser um caso “paradoxal”: Londres foi, durante séculos a fio, uma das capitais musicais da Europa, a par de Paris, Roma, Nápoles ou Viena, mas, após ter gerado compositores de primeiro plano ao longo da Renascença e Barroco inicial, parece ter esgotado o seu stock de génios com Purcell (1659-1695). A partir daí, viveu durante dois séculos de génios importados (Handel tornou-se cidadão britânico, mas chegou a Londres com 25 anos e com obra apreciável) e de pequenos talentos indígenas e só na viragem dos séculos XIX/XX voltou a produzir compositores “canónicos”, como Vaughan Williams, Holst e Britten.

Se, como argumentam os activistas woke, o cânone musical é determinado pelas potências imperiais europeias, como se explica a ausência de compositores britânicos precisamente nos dois séculos em que a Grã-Bretanha ergueu um império onde o sol nunca se punha e se tornou na potência mundial n.º 1?

A resposta é simples: o cânone da música clássica, embora comporte injustiças e lacunas, decorre sobretudo do mérito, não de políticas de quotas étnicas ou nacionais, e não há forma de fazer passar Thomas Roseingrave (1688-1766) à frente de Domenico Scarlatti (1685-1757), Thomas Linley Jr. (1756-1778) à frente de Mozart (1756-1791), Robert Lucas de Pearsall (1795-1856) à frente de Schubert (1797-1828), Henry Smart (1813-1879) à frente de Verdi (1813-1901), Ebenezer Prout (1835-1909) à frente de Brahms (1833-1897) ou Liza Lehmann (1862-1918) à frente de Debussy (1862-1918). Os influentes meios musicais britânicos bem se esforçaram por promover Linley como “o Mozart inglês”, por ter nascido no mesmo ano que Mozart, ter revelado talento precoce e ter morrido novo (apenas 22 anos), e, no entanto, Linley continua a ser uma figura menor na Grã-Bretanha e a ser praticamente desconhecido do lado de cá do Canal.

[Ária “Ariel, who sees thee now”, da Ode on the spirits of Shakespeare (1776), também conhecida como Lyric ode on the fairies, aerial beings and witches of Shakespeare, de Thomas Linley Jr., por Helen Parker (soprano) e os Musicians of the Globe, em instrumentos de época, com direcção de Philip Pickett (L’Oiseau-Lyre/Decca):]

A arte da vitimização

Os leitores atentos terão reparado numa omissão flagrante nesta contabilização da origem geográfica dos compositores canónicos: África. Se esta análise foi suscitada pelas reclamações indignadas para que se dê mais espaço a compositores negros, como pode África ficar de fora? A verdade é que, até à data, não surgiram compositores clássicos africanos de relevo e os próprios paladinos da “descolonização da música clássica” são incapazes de adiantar nomes. A “generosa” lista de Grace Healy, mesmo abrindo-se a figuras francamente menores, não inclui um único compositor nascido em África. Na verdade, a sua lista em prol da “inclusão” é ferozmente exclusiva: com excepção do Chevalier de Saint-Georges (natural de Guadalupe), de George Bridgetower (anglo-polaco) e de Samuel Coleridge-Taylor (britânico), todos os outros compositores são naturais dos EUA e fizeram carreira nos EUA (o rigor impõe que se diga que Robert Nathaniel Dett nasceu no Canadá, em Niagara Falls; porém, esta cidade está separada dos EUA apenas por um rio, o pai de Dett era americano e Dett mudou-se para os EUA aos 11 anos e aí viveu o resto da vida).

Os académicos que se insurgem contra o fechamento dos curricula musicais não se apercebem de que eles mesmos têm uma percepção do mundo limitada, que mais não faz do que decalcar a selecção de “compositores negros” promovida pelos movimentos identitários afro-americanos. Se tivesse vistas mais largas, talvez Healy estivesse a par da obra de José Maurício Nunes Garcia e outros compositores “mulatos” latino-americanos dos séculos XVII-XIX, ou, já no nosso tempo, da obra de Thierry Pécou (n.1965, Boulogne-Billancourt), um francês com ascendência nas Antilhas, que possui uma linguagem original, um imaginário enraizado nas culturas da América Latina e um talento muito acima da média, como pode comprovar-se em obras como Symphonie du jaguar (2002), Tremendum (2005), L’oiseau innumérable (2006), Vague de pierre (2007), ou L’arbre aux fleurs (2010) (estão todas disponíveis em gravações Harmonia Mundi).

[III andamento (Akbal), da Symphonie du jaguar, pelo Ensemble Zellig e Orchestre Philharmonique de Radio France, com direcção de François-Xavier Roth (Harmonia Mundi):]

A ênfase colocada em compositores negros quase exclusivamente americanos acaba por denunciar a origem e a verdadeira motivação das campanhas pela “descolonização” da música clássica: emanam de grupos de activistas afro-descendentes nos EUA e na Grã-Bretanha que passam o tempo a julgar o passado pelos critérios éticos actuais, a remoer agravos históricos e a exigir compensações por estes. São campanhas que se alimentam do ressentimento e interpretam a realidade a partir da pertença a grupos étnicos e das relações históricas de dominação/submissão entre esses grupos e as teorias fantasiosas em que se sustentam são cozinhadas nos departamentos de Estudos Culturais das universidades anglo-americanas. Estas proclamações e reivindicação não são novas, mas o movimento Black Lives Matter incutiu-lhes uma audácia nunca vista.

Os filipinos, chilenos, chineses, cambodjanos, uzbeques, croatas, nigerianos, malaios, peruanos, cipriotas, iranianos, suíços, sul-africanos, egípcios, japoneses, búlgaros e neo-zelandeses que seguem estudos de música clássica parecem não fazer questão de tocar compositores dos respectivos países e ter prazer em estudar Bach, Vivaldi e Schumann, mas os americanos e britânicos afro-descendentes sentem-se melindrados e oprimidos.

Um dos docentes de Oxford vai ao ponto de considerar que a própria “notação musical ocidental” é um “sistema de representação colonialista”. A notação musical que se usa em todo o mundo é, com efeito, de origem ocidental (deve-se, em parte, ao teórico medieval italiano Guido d’Arezzo), impôs-se a outros sistemas de notação (indiano, coreano, japonês) possivelmente por ser mais prática, versátil e completa e, até agora, nenhum não-europeu se sentira oprimido por ela. O facto de haver uma notação musical que é válida em todos os países, todos os géneros musicais e todos os instrumentos deveria ser interpretado como uma vantagem, uma vez que torna a música realmente universal – em vez disso, é agora visto como uma forma de perpetuação do colonialismo europeu. Se tivesse prevalecido o jeongganbo, o sistema de notação coreano, sentir-se-iam estas almas menos “stressadas”? O que as atormenta é o conceito de um sistema com validade universal ou que este seja de origem europeia? Não lhes repugnará também usar as unidades do Sistema Internacional? Não serão o quilograma, o metro, o segundo e o ampere também expressões do colonialismo europeu? Como conseguem suportar a humilhação de usar o alfabeto latino?

“A abolição da escravatura nas colónias francesas, a 27 de Abril de 1848”, por François-Auguste Biard, 1849

Adenda: A colina que descemos

Continuemos no tema das ofensivas da cultura woke, mas passando da música para a poesia, para regressar à polémica gerada nos Países Baixos e em Espanha em torno da tradução de The hill we climb, poema declamado na cerimónia de tomada de posse de Joe Biden pela afro-americana Amanda Gorman (ver De Amanda Gorman a Lucky Luke: Correcção ou excesso?). A rejeição dos tradutores para holandês e catalão originalmente designados, com base no argumento de que não possuíam o “perfil certo” (ou seja, por serem brancos), foi fazendo o seu caminho e Gorman continua, quase dois meses após o seu início, sem se pronunciar sobre o afastamento liminar de tradutores que não sejam jovens mulheres negras – está talvez demasiado ocupada a gozar o proveito (“Uau! História feita: a maior semana de vendas de qualquer título de poesia jamais publicado”, foi o seu comentário, no Facebook, à recepção comercial de “The hill we climb”) e a fama (tornou-se no “primeiro poeta de sempre na capa da Vogue”).

A inusitada euforia planetária em torno de Gorman já teve um desenvolvimento em Portugal: a editora Presença, que adquiriu os direitos de publicação da poetisa, informou que, em 2021, irá publicar “A colina que subimos” e mais dois livros de Gorman e que estes serão traduzidos pela jornalista de origem angolana Carla Fernandes (n.1980, Malange).

Esta apresenta-se como “jornalista, tradutora e produtora cultural”, dedicada “desde 2005 a temas relacionados com comunidades africanas e afro-descendentes, em Portugal e na Alemanha” e fundadora e directora da Afrolis, “organização voltada para a promoção da expressão cultural e construção de novas narrativas identitárias de afro-descendentes através da identificação, investigação e partilha de conhecimento” e informa que está a doutorar-se em Ciências da Comunicação. Fernandes assume-se ainda como “curadora, investigadora e consultora de diversas iniciativas no âmbito académico, média e movimentos sociais” e é referida nos media como “blogger” e “produtora de rádio” – em tempos seria tentador aplicar-lhe o termo “mulher do Renascimento”, mas hoje este seria, possivelmente, interpretado como uma ofensa, pois o Renascimento é visto como mais um episódio de consolidação do poderio opressivo do patriarcado branco e como tendo engendrado a ideologia que justificou a expansão colonial europeia.

Poderá haver quem note que o impressionante curriculum de Fernandes não lista livros de poesia de autores anglófonos que tenha traduzido, mas é uma objecção irrisória: Carla Fernandes tem o “perfil certo” e na definição desse perfil as competências literárias são menos relevantes do que as coincidências identitárias. Muito antes da “polémica Gorman”, já o russo Aleksandr Pushkin (1799-1837) tinha realçado a importância das afinidades entre autor e tradutor quando escreveu: “O poeta Gnedich, tradutor de Homero o Cego,/ Era ele mesmo zarolho,/ Portanto, a sua tradução/ Só é meio fiel ao original”.