Num modesto bairro residencial na zona oriental da capital da Albânia, Tirana, está atualmente a ser preparado o nascimento daquele que passará a ser o país mais pequeno do mundo. Com uma área de apenas dez hectares, o Estado Soberano da Ordem de Bektashi será ainda mais pequeno do que o Vaticano (44 hectares) — microestado ao qual as autoridades albanesas foram buscar a ideia de criar um território soberano para albergar a sede daquela denominação muçulmana, um orgulho nacional que se distingue por uma abordagem moderada ao Islão e que rejeita o fundamentalismo.
O anúncio formal foi feito no domingo passado pelo primeiro-ministro da Albânia, Edi Rama, nas Nações Unidas. No discurso, Rama lembrou outro dos grandes orgulhos nacionais albaneses, a Madre Teresa de Calcutá, a célebre religiosa de etnia albanesa que fundou as Missionárias da Caridade, ganhou o Nobel da Paz em 1979 e em 2016 foi canonizada pelo Papa Francisco.
O governante, que é católico, frisou que a Madre Teresa de Calcutá (nascida Anjezë) “personificou o amor pela humanidade” e que a sua inspiração se estende ao projeto para conceder a soberania ao pequeno território que vai ser para a Ordem de Bektashi o mesmo que o Vaticano é para a Igreja Católica. “Ela disse-nos que nem todos podemos fazer grandes coisas, mas todos podemos fazer pequenas coisas”, destacou Rama.
“É essa a nossa inspiração para apoiar a transformação da Ordem de Bektashi num Estado soberano na nossa capital, Tirana, como um novo centro para a moderação, a tolerância e a coexistência pacífica”, disse o primeiro-ministro albanês.
De acordo com a Associated Press, o Islão é a religião de cerca de 50% dos 2,4 milhões de pessoas que vivem na Albânia. A outra metade da população é composta por cristãos, tanto católicos como ortodoxos, e por outras comunidades religiosas minoritárias. Entre os muçulmanos, cerca de 10% são Bektashi (embora a comunidade argumente que o número é superior).
O novo microestado vai ser composto por um território de cerca de 10 hectares que já pertence à Ordem de Bektashi. Lá dentro, existe atualmente o templo central, onde se realizam as celebrações religiosas (trata-se de um tekke, diferente de uma tradicional mesquita), mas também um museu, uma clínica, um arquivo histórico e as instalações administrativas.
O Estado Soberano da Ordem de Bektashi vai ser liderado pelo mais alto clérigo daquela denominação religiosa, que tem o título de Haji Dede Baba e, tal como o Papa, recebe o tratamento formal de Sua Santidade. O atual Haji Dede Baba é Edmond Brahimaj, de 65 anos, tratado pelos fiéis como Baba Mondi. Tal como o Vaticano, vai ter fronteiras, passaportes (já se sabe que vão ser verdes), uma cidadania própria e até um serviço secreto (embora, ao contrário do Vaticano, não deva ter exército nem tribunais).
Numa entrevista recente ao The New York Times, Baba Mondi garantiu que o novo Estado pretende ser um exemplo de tolerância e pacifismo. Rejeitando liminarmente os extremistas e o uso da violência para defender a fé islâmica (os extremistas “são apenas cowboys”, garante), Baba Mondi sustenta a legitimidade da criação de um microestado à luz do exemplo do Vaticano e recusa qualquer intenção de expandir o território ou de obter influência política. “Somos os únicos no mundo que dizem a verdade sobre o Islão” e “não o misturamos com a política”, diz ao jornal norte-americano.
“Um modelo de coexistência”
Mas, afinal, quem são os Bektashi? É logo no momento da morte do profeta Maomé, no ano 632, que começam as divisões no mundo muçulmano. Uma vez que o profeta não deixou indicações sobre quem lhe deveria suceder, surgiu a dissensão: de um lado, aqueles que consideravam que o sucessor de Maomé deveria ser escolhido por consenso entre a comunidade islâmica; do outro, aqueles que consideravam que só os familiares de Maomé podiam suceder-lhe.
Nessa crise de sucessão (sobre a qual pode ler ao pormenor neste artigo do Observador) estão as raízes da principal divisão do mundo muçulmano, entre sunitas e xiitas. Os primeiros têm origem na sucessão iniciada por Abu Bakr, companheiro próximo de Maomé; os segundos naqueles que defendem que a sucessão foi iniciada por Ali, genro de Maomé.
Perto de 1.400 anos depois, esta é ainda hoje a principal divisão do mundo islâmico: dos quase 2 mil milhões de muçulmanos que existem no mundo, cerca de 85% são sunitas (uma corrente que tem as principais autoridades na Arábia Saudita e no Egipto) e 15% xiitas (de onde se destaca a autoridade religiosa sediada no Irão).
Foi no contexto do Islão sunita que surgiu inicialmente a corrente Bektashi, no século XIII. Foi nessa altura que o filósofo e místico Hajji Bektash Veli (natural da Pérsia, mas que se fixaria na Anatólia, atual Turquia) fundou a Ordem de Bektashi, um movimento integrado nas práticas do sufismo, uma corrente do misticismo islâmico que busca o conhecimento de Deus através da experiência da ascese e de outras práticas espirituais.
Apesar de ter surgido no contexto do sunismo, a Ordem de Bektashi aproximou-se do xiismo no século XVI, altura em que se fixou em definitivo na Anatólia (região onde hoje se situa a Turquia), nomeadamente através da veneração do califa Ali e do seguimento da corrente dos doze imãs, uma das escolas teológicas do Islão xiita, que se diferencia por seguir a linha dos doze imãs sucessivos após a morte de Maomé. (Outra das escolas teológicas do xiismo, por exemplo, é a dos Ismailis, ou Ismaelitas, que têm a sua sede mundial em Lisboa.)
Como explica a Enciclopédia Britannica, os muçulmanos Bektashi eram pouco ortodoxos no seguimento da lei islâmica no dia-a-dia, bebiam vinho e não acatavam muitas das restrições habitualmente seguidas pelos fiéis de uma linha mais restritiva. Por outro lado, a Ordem de Bektashi destacou-se também pela produção literária, nomeadamente no campo da poesia. Entre os séculos XVI e XIX, a Ordem de Bektashi gozou de uma grande notoriedade e influência política no Império Otomano, expandindo-se territorialmente para a região dos Balcãs. Chegou a ser a ordem oficial dos janíçaros, os soldados de elite do Império Otomano.
Com a queda do Império Otomano e o surgimento do Estado da Turquia, as ordens sufis foram dissolvidas e a cúpula da Ordem de Bektashi mudou-se para a Albânia, região onde já tinha uma forte influência. Segundo o The New York Times, os Bektashi tinham sido, inclusivamente, uma importante força no apoio à causa independentista albanesa durante o Império Otomano, nomeadamente através da promoção de uma abordagem moderada ao Islão e à convivência pacífica com a comunidade cristã do país.
Sob um regime comunista depois da II Guerra Mundial, a Albânia baniu toda a prática religiosa em 1967, o que levou a Ordem de Bektashi a depender das comunidades que ainda se mantinham na Turquia. Já depois da queda do Muro de Berlim e do colapso do mundo comunista, a tradição religiosa voltou a florescer na Albânia e a Ordem de Bektashi ganhou novamente grande popularidade.
Quando se instalou em Tirana, no início do século XX, a cúpula da Ordem de Bektashi dominava um pedaço de território de cerca de 36 hectares, onde foi instalado o templo e os edifícios de administração daquela comunidade religiosa. Contudo, depois da proibição das religiões pela ditadura, em 1967, o governo albanês confiscou uma boa parte do território, onde construiu armazéns. Já depois da queda do comunismo, a partir de 1991, alguns construtores privados construíram habitações em partes do antigo terreno da ordem, sem autorização.
Como consequência, quando a Ordem de Bektashi pôde retomar o seu funcionamento normal, já tinha menos de um terço do território — apenas dez hectares. Ainda assim, como disse Baba Mondi ao The New York Times, a Ordem de Bektashi não pretende reivindicar qualquer território além dos dez hectares que atualmente controla. “O que foi confiscado já não faz parte”, disse. “Esta não é uma questão de propriedade, mas uma questão espiritual.” O novo Estado soberano, disse Baba Mondi, pretende ser um “modelo de coexistência”.
“Temos de cuidar deste tesouro que é a tolerância religiosa”
Atualmente, há uma equipa de juristas, não só albaneses, mas também internacionais, a trabalhar na preparação do projeto para a implementação de um Estado soberano naquele pequeno território — um processo que ainda não tem uma data para a sua conclusão. De acordo com o mesmo jornal norte-americano, que entrevistou tanto o primeiro-ministro albanês como o líder Bektashi, a concessão de independência ao minúsculo território terá de ser ainda aprovada no parlamento, o que não deverá ser um problema, já que o Partido Socialista de Edi Rama tem atualmente maioria na assembleia legislativa.
Depois desse processo de definição do novo estatuto do Estado Soberano da Ordem de Bektashi, largamente inspirado no estatuto de soberania do Vaticano, segue-se um novo processo, indispensável para a existência de um Estado: o reconhecimento por parte dos outros estados.
Quando Edi Rama deu aquela entrevista ao The New York Times, explicou que o governo da Albânia não tinha partilhado os seus planos com outros países, incluindo os membros da NATO (de que a Albânia faz parte).
Já depois disso, quando se dirigiu ao mundo nas Nações Unidas e anunciou o plano, Edi Rama recordou o historial da Albânia — um país significativamente pobre — no apoio aos necessitados, exemplificando não só com o caso da Madre Teresa de Calcutá, mas também com o facto de a Albânia ter acolhido muitos refugiados judeus que fugiram dos nazis durante a II Guerra Mundial e muitos afegãos que fugiram do Afeganistão quando os talibãs regressaram ao poder, em 2021.
Não há, para já, dados que permitam saber que países planeiam reconhecer o Estado Soberano da Ordem de Bektashi como um país independente. O único exemplo comparável é o Vaticano, que tem relações diplomáticas com a quase totalidade dos países do mundo (excluem-se casos como a Arábia Saudita ou o Afeganistão, mas também a China, devido ao reconhecimento de Taiwan por parte do Vaticano).
À partida, segundo explica ainda o The New York Times, parece improvável que o Irão venha alguma vez a reconhecer o Estado Soberano da Ordem de Bektashi, já o regime dos aiatolás é o bastião do Islão xiita e opõe-se frontalmente a qualquer abordagem moderada ou progressista da fé xiita.
Se o movimento sufista é um dos mais progressistas do Islão, a Ordem de Bektashi é uma das mais liberais dentro desse ramo, o que se traduz numa vida quotidiana muito menos restritiva. O consumo de álcool é permitido (o raki, um licor tradicional da Turquia, é uma bebida muito consumida socialmente entre os Bektashi), não há segregação entre homens e mulheres, as mulheres não têm de usar véu na cabeça e a carne de porco não é proibida.
“Em primeiro lugar, ser um Bektashi significa ser um humano. Quem não é humano não pode ser um Bektashi”, disse Baba Mondi numa entrevista à Euronews em 2018. “Construímos a nossa comunidade com base nos princípios da paz, do amor e do respeito mútuo.” Ao The New York Times, explicou que “Deus não proíbe nada e é por isso que ele nos deu a mente”. No novo Estado soberano, garantiu, “todas as decisões vão ser tomadas com amor e bondade”.
Baba Mondi é reconhecido na Albânia como um defensor da paz e do diálogo e chegou a ser distinguido como um Ícone da Paz Mundial pela ONG We Care for Humanity. Em 2016, foi recebido no Vaticano pelo Papa Francisco. Numa entrevista à Rádio Vaticana, descreveu o encontro como “maravilhoso”, sublinhou que os dois líderes religiosos reafirmaram o “compromisso para com o diálogo e o encontro fraterno” e reiterou a “importância da presença das comunidades religiosas na sociedade contemporânea”.
À Euronews, Baba Mondi explicou que, para a comunidade Bektashi, a responsabilidade pelas ações de cada um é individual, pelo que não é possível ser um verdadeiro Bektashi e cometer ataques terroristas em nome de Deus. “Sabemos bem quais são os três maiores inimigos da humanidade. Em primeiro lugar, a ignorância; depois a pobreza, que deriva muitas vezes da situação política; e por fim o ego, o egoísmo. Esses três fatores só podem ser combatidos e destruídos se as pessoas cooperarem entre si”, disse.
Em 2015, depois dos ataques terroristas contra o jornal satírico francês Charlie Hebdo (cometidos por fundamentalistas islâmicos depois de o jornal ter publicado desenhos satíricos do profeta Maomé), Baba Mondi e o primeiro-ministro albanês, Edi Rama, foram a Paris para participar numa marcha contra o terrorismo.
Rama, numa entrevista ao The New York Times, explicou que a tolerância religiosa é uma das características de que a Albânia mais se orgulha. “Temos de cuidar deste tesouro que é a tolerância religiosa, que não podemos dar por garantido”, afirmou, sublinhando que o novo Estado soberano islâmico pretende reforçar a nível mundial a imagem de um Islão moderado: “Não deixemos que o estigma sobre os muçulmanos defina quem são os muçulmanos.”
“Estaremos numa posição mais forte para contrariar as ideologias radicais”
À imprensa albanesa, Baba Mondi explicou que “o reconhecimento da soberania é um momento transformador para a Ordem de Bektashi”, permitindo-lhe levar a cabo a “missão espiritual de promover a paz, a tolerância e o amor pela humanidade a uma escala global”.
“A criação do Estado Soberano da Ordem de Bektashi vai dar-nos autonomia para continuar o nosso trabalho sem interferência, permitindo-nos governar os nossos assuntos religiosos e administrativos como o Vaticano. Este novo capítulo para a comunidade Bektashi assegura que a nossa voz, que há muito tem defendido a moderação e o diálogo inter-religioso, vai ressoar mais intensamente em todo o mundo”, disse o líder islâmico.
Baba Mondi esclareceu também que a cidadania do novo microestado “será limitada aos membros do clero e àqueles diretamente envolvidos na administração do Estado, de uma forma similar ao modo como a cidadania é estruturada no Vaticano”. A razão, diz, é o facto de a prioridade do Estado Soberano da Ordem de Bektashi ser “a governação espiritual e não a criação de uma grande população politicamente definida”.
Atualmente, o Vaticano tem um total de 618 cidadãos, que incluem os 104 elementos da Guarda Suíça (o exército do Vaticano), o próprio Papa, um conjunto de 64 cardeais que vivem em Roma e dezenas de funcionários diplomáticos do Vaticano destacados em países por todo o mundo. Tal como no projeto do Estado Soberano da Ordem de Bektashi, a cidadania vaticana não é atribuída por definição aos católicos, mas apenas às pessoas necessárias para manter a soberania do pequeno território, cuja função primordial é acolher a Santa Sé e garantir que a sede da Igreja Católica se encontra num território que não depende de outros países. A curta dimensão do Vaticano traduz-se em estatísticas caricaturais, como a média anual de nascimentos (um) ou o número de animais de estimação (zero) do país.
“O nosso novo Estado é, em primeiro lugar, uma entidade espiritual, e o objetivo é preservar a capacidade da Ordem de Bektashi para funcionar de modo independente nos seus assuntos religiosos e administrativos”, garante. “A Ordem de Bektashi sempre foi uma voz de moderação dentro do Islão. Com a nossa soberania reconhecida, estaremos numa posição mais forte para contrariar as ideologias radicais que infetaram não apenas as comunidades muçulmanas, mas também a nível mundial.”
Baba Mondi esclarece ainda que conta com o apoio do Ocidente. “O extremismo prospera com base nas divisões e, ao dar poder a vozes como a nossa, podemos criar uma contra-narrativa poderosa”, diz o líder Bektashi. “Planeamos colaborar de forma próxima com parceiros internacionais, incluindo com os Estados Unidos, a União Europeia e países em todo o Médio Oriente que já expressaram o seu apoio a esta iniciativa.”
“Esta iniciativa não é uma questão de autodeterminação, nem estamos à procura de influência política ou de poder. Ao invés disso, procuramos a liberdade para continuar a nossa tradição secular de moderação espiritual e inclusão religiosa”, destaca Mondi, que sublinha que “o mundo enfrenta um aumento da intolerância religiosa, do radicalismo e do extremismo”, pelo que “este é o momento de elevar as vozes que promovem a paz e a compreensão”.