A sublinhagem BA.2 da variante Ómicron está a contribuir desde meados de janeiro para o crescimento a pique da quinta vaga, apontaram vários especialistas entrevistados pelo Observador. O número de novos casos tinha estabilizado entre os dias 10 e 14 deste mês, em alinhamento com a diminuição do índice de transmissibilidade, mas logo aumentou para neste momento ultrapassar os 65 mil diagnósticos positivos num só dia. Na semana passada, a reabertura das escolas foi apontada como a principal causa para este fenómeno, mas há quem teorize que não será a única: é que o aumento de casos também coincidiu com um aumento da circulação da sublinhagem BA.2 nessa mesma semana.
Fernando Batista, engenheiro que está a acompanhar a evolução da pandemia de Covid-19, defende que uma coisa e outra estão correlacionadas. A tese brota de um olhar à lupa para os gráficos que mostram a incidência nacional a sete dias e a incidência dos casos atribuídos a cada uma das variantes em circulação. Há quatro linhas: uma azul que simboliza a incidência dos casos da variante Delta; uma vermelha com a incidência da variante BA.1; uma lilás que representa a soma destas duas; e uma preta, que é a incidência a sete dias de acordo com todos os casos notificados diariamente pelas autoridades de saúde.
Até 10 de janeiro, dia em que as escolas reabriram após a semana-tampão a seguir à época natalícia, a curva lilás e a curva preta sobrepunham-se, enquanto a curva azul continuava a decrescer a níveis muito baixos — ou seja, a esmagadora maioria dos novos casos estava mesmo a ser provocada pela linhagem BA.1 da variante Ómicron. Depois dessa data, no entanto, isso deixou de acontecer: a linha preta, com a incidência nacional a sete dias, continuou a subir, mas a linha lilás começou a decrescer. “É a partir daqui que há duas teorias”, defende Fernando Batista: “Ou o motivo é o surgimento da BA.2 ou é apenas a abertura da sociedade”.
Segundo o último relatório de diversidade genética do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), publicado esta terça-feira, os primeiros casos da sublinhagem BA.2 descobertos em Portugal foram notificados na última semana do ano passado, entre 27 de dezembro e 2 de janeiro. A partir daí a percentagem de casos atribuídos à nova sublinhagem aumentou de 0,2% para 0,7% na semana seguinte, que terminou a 9 de janeiro. Depois disso, ainda não há dados: o INSA diz apenas que há 18% de casos que não foram atribuídos à sublinhagem BA.1 da Ómicron, por isso ou foram provocados pela subvariante BA.2 ou pela Delta. Quantos são em cada um dos casos é que o INSA ainda não sabe responder.
BA.2 tem mesma mutação que a Delta: “Não temos ideia real dos números”.
É assim por causa de uma diferença fundamental na estrutura das duas sublinhagens. Diana Lousa, bioinformática do Instituto de Tecnologia Química e Biológica António Xavier (ITQB), explica que não é difícil detetar uma infeção pela BA.1: basta que, durante a testagem PCR, o sistema não detete um dos três genes que está programado para sondar. É assim porque uma das mutações mais marcantes da linhagem principal da Ómicron é a eliminação de um gene que existia na variante Delta, mas que não existe nessa sublinhagem. A dificuldade com a BA.2 é que volta a ter esse gene, por isso só mesmo uma sequenciação genómica pode confirmar se um teste PCR com os três genes-alvo detetados é positivo para esta sublinhagem da Ómicron ou para a variante Delta.
A teoria do investigador do Instituto Politécnico de Leiria a de é que, se a variante Delta tinha estabilizado em níveis de incidência muito baixos, não haveria motivos para ressurgir com força suficiente para compensar a aparente perda de terreno da BA.1 — por isso, a diferença entre a curva preta e a curva lilás revela a prevalência da sublinhagem BA.2, representada numa curva laranja. A reabertura da sociedade só veio alimentar ainda mais o monstro, mas não deve ser o único fator: países como a Dinamarca (o epicentro da sublinhagem BA.2 na Europa), a Suécia ou os Países Baixos estão a registar um crescimento da incidência nos últimos dias muito semelhante ao português e, por lá, a presença comprovada da BA.2 é maior que os dados portugueses apontam, argumenta o engenheiro.
Outro sinal que aponta para um impacto da sublinhagem BA.2 da Ómicron é a proporção de amostras positivas entre todas as que foram aleatoriamente recolhidas pelo INSA: no início de janeiro, a percentagem de casos positivos em que o teste PCR falhou a deteção de um gene na proteína S (um indicador fiel de que se está perante a sublinhagem BA.1) chegou a estar acima dos 90%, mas desceu para cerca de 80% desde meados deste mês e assim se tem mantido. O INSA admitiu que o decréscimo, na ordem dos 12 pontos percentuais, na segunda semana de janeiro “apontou para um aumento da circulação da linhagem BA.2 nessa semana” — pelo menos é isso que sugere a sequenciação em amostras suspeitas sem a falha na proteína S que caracteriza a BA.1.
Ainda assim, e enquanto espera a confirmação do número de novos casos da BA.2 na semana passada, as autoridades de saúde asseguram que “os dados atuais não ilustram um aumento acentuado e consistente de frequência relativa da linhagem BA.2 em Portugal, ao contrário do que se tem observado noutros países”. Outros cientistas argumentam que o gráfico em causa testemunha uma luta de titãs: a BA.1, dominante e mais espalhada, estabilizou o seu avanço; e a BA.2, depois de uma explosão, também. É um compromisso que, para Miguel Castanho, bioquímico do Instituto de Medicina Molecular, não durará muito tempo: a BA.2, aparentemente mais transmissível que a BA.1, será dominante em breve. Só que o avanço vai ser mais lento do que quando se salta de uma variante para a outra porque as diferenças não são tão profundas.
Em conversa com o Observador, o cientista avisa que a BA.2 pode ser confundida com a Delta, como se esta última “fosse resistente e não desaparecesse”. Isso está mesmo a condicionar a velocidade com que os estudos em torno da BA.2 estão a decorrer: não sabendo distinguir os casos de Delta e os casos da segunda sublinhagem da Ómicron, torna-se mais difícil determinar a gravidade da Covid-19 que elas causam, a capacidade para escapar ao sistema imunitário e a transmissibilidade do vírus. E admite que o aumento da incidência em Portugal desde 14 de janeiro terá não só a ver com a retoma da vida após a contenção de Natal, mas com um efeito da BA.2: “Estamos sempre nos campos das possibilidades. Podemos assumir que há um impacto, mas que a influência será relativamente subtil e não será muito expressiva”
Diana Lousa também acredita que parte do descontrolo no número de novos casos na quinta vaga pode justificar-se com a sublinhagem BA.2: “Ela ganhou terreno em relação à BA.1, isso significa que consegue propagar-se facilmente”. A bioinformática, que está há dois anos a acompanhar os saltos da SARS-CoV-2 de variante em variante, argumenta que as previsões nestes casos é mesmo que uma nova sublinhagem com essas características traga consequências para a situação epidemiológica. Só que desta vez “não temos uma ideia real dos números”.
Nova sublinhagem é 1,5 vezes mais transmissível. Pode ser bom sinal
Isto são más notícias? Para o progresso do conhecimento científico, sim. Na prática, não há motivos para mais preocupações. João Manuel Braz Gonçalves, virologista da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, nota que o surgimento destas sublinhagens é o que se espera quando a convivência de um vírus com a humanidade começa a entrar em equilíbrio. É quando, quando o SARS-CoV-2 saltou de uma variante dominante para outra, a transmissibilidade aumentou cerca de cinco vezes: “Não percebemos bem porquê, é um mistério, mas a evidência é esta”.
Desta vez, os dados preliminares relacionados com a BA.2 dizem que, em comparação à linhagem original da Ómicron, a transmissibilidade só aumentou 1,5 vezes — uma espécie de Ómicron Plus, ou Super Ómicron, à semelhança do que já tinha acontecido com a Delta: “Se calhar, o vírus está a tentar evoluir para ser mais transmissível, mas não está a conseguir.” Diana Lousa confirma que “não parece haver diferenças no que toca à doença que a BA.2 causa ou ao escape à imunidade”: a transmissibilidade só deve ser maior (faltam mais dados para dizer perentoriamente que é mesmo) porque uma das cerca de 30 alterações da BA.1 para a BA.2 ocorre numa zona crítica da proteína S — a que o vírus usa para entrar nas células e na qual a maioria dos anticorpos contra o SARS-CoV-2 se acopla perante uma infeção.
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Efeito da BA.2 está ofuscado pela reabertura das escolas
Outros cientistas estão mais céticos sobre o verdadeiro impacto da BA.2 na situação portuguesa. Carlos Antunes, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, diz que é difícil ajuizar sobre a pressão da nova sublinhagem na quinta vaga: qualquer que ela seja, está a ser ofuscado pelo verdadeiro peso pesado da situação epidemiológica — a reabertura das escolas. “As crianças infetam-se nas escolas, passam o vírus aos pais, os pais transmitem no local de trabalho”, descreve o engenheiro. A pandemia estende-se assim de faixa etária em faixa etária e por isso é que temos esta “onda com réplicas”. Celso Cunha, virologista do Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT), concorda que é prematuro apontar dedos à nova sublinhagem: “A haver um peso dela, seria muito pequeno”.
Mas prova de todas as interrogações em torno da variante BA.2 é que nem mesmo a sua origem está completamente esclarecida. E o mundo microscópico demonstra bem porquê. Vamos a um exercício: só esta terça-feira, segundo o relatório de situação publicado esta tarde pela Direção-Geral da Saúde, 65.578 pessoas testaram positivo para a infeção pelo coronavírus. Cada uma destas pessoas, no pico da carga viral, terá mil milhões a 100 mil milhões de partículas virais — produtos da multiplicação dos vírus que lhe deram origem. Pode não haver duas iguais: umas terão genes diferentes dos vírus originais, outras terão genes a mais e algumas terão genes a menos. Por isso, no limite, só as pessoas notificadas esta quarta-feira podem originar quase 6,6 triliões de sublinhagens. São números tão desconcertantes que os virologistas as organizam em classes (variantes). A BA.2 é só uma das subclasses.
O motivo pelo qual a BA.2 não é considerada uma variante independente da Ómicron é só uma: há muito mais a uni-las do que a separá-las. São “dois ramos da mesma variante, mas foram adquirindo mutações diferentes e seguiram linhas de evolução distintas”, descreveu Diana Lousa em entrevista ao Observador. Isso não significa, porém, que também tenha surgido em África, como se desconfia ser o caso na sublinhagem BA.1: os primeiros casos da BA.2 foram detetados na Tailândia, há uma prevalência elevada na Índia, mas foi na Dinamarca que ela realmente explodiu. Só que ainda ninguém sabe explicar porquê: Diana Lousa menciona o “esforço de sequenciação: pode ter aparecido num país em que a monitorização não seja tão apertada e passou debaixo do radar”. João Manuel Braz Gonçalves sugere que a BA.2 “pode ter encontrado na Dinamarca indivíduos mais vulneráveis, por diferenças genéticas”. Ou então pode tudo ter sido uma questão de sorte ou azar.