Em Anata, o governo israelita apoderou-se das terras parcela por parcela, anexou parte da cidade a Jerusalém, ergueu um muro de separação para cercar o centro urbano e confiscou o resto para criar quatro colonatos, construiu vários postos avançados de colonos, uma base militar e uma auto-estrada segregada, dividida ao meio por outro muro, que impede os colonos de avistarem o tráfego palestiniano, a piscina natural e a nascente foram transformadas numa reserva exclusiva para israelitas.
É assim que o jornalista Nathan Thrall ,judeu norte-americano a viver em Jerusalém, relata a vida daquela pequena cidade da Cisjordânia no livro Um dia na Vida de Abed Salama – Anatomia de uma Tragédia em Jerusalém, publicado nos Estados Unidos e agora em Portugal (ed. Zigurate). O que começou por ser um artigo para a revista The New York Review of Books, centrado na vida do palestiniano Abed Salama, evoluiu para livro e o jornalista foi à procura das histórias verídicas de outras pessoas para complementar a trama.
A história central é a de Abed, pai de uma criança que segue num autocarro que tem um acidente. O que aconteceu? Onde estão as criaçãso? Em que hospital está o filho de Salama? E como é que o protagonista, palestiniano, vai conseguir navegar através da estrutura israelita para conseguir ter informações sobre o acidente? Como é que ele vai encontrar o filho?
A partir daqui, desenha-se uma estrutura narrativa que conta a história dos 70 anos de conflito entre israelitas e palestinianos. Trata-se de um livro fascinante em termos de literários e instrumental para compreender o passado e o presente daquela região do Médio-Oriente. Entrevistámos o autor, que esteve em Lisboa para uma apresentação na Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento.
A história do seu livro começou por ser uma reportagem para a revista The New York Review of Books. Como é que Abed e a sua história chegaram até si?
Passei os últimos quatro anos da minha vida com ele. Passámos a maior parte das nossas vidas nos últimos anos a conversar, mesmo quando não estava a tomar notas para o livro. Estávamos apenas juntos. Até chegámos a fazer o início da digressão de promoção do livro juntos. Teve de ser interrompida porque a situação atual na Cisjordânia é como a segunda Intifada e toda a cidade [Anata] está fechada. Mas, sim, foi um período muito profundo e intenso com Abed e com as outras personagens do livro.
Sendo jornalista, como é que tem traçado o limite quanto ao seu envolvimento com a vida destas pessoas?
Houve muitos desafios nesse sentido. Normalmente, um jornalista não partilha o artigo ou o livro com o sujeito da sua história. Neste caso, eu estava a sentir-me atormentado. Ele tinha-me contado tantos pormenores íntimos que cheguei a sentir-me na obrigação de os partilhar com ele e de lhe dar a oportunidade de poder assinalar alguma incorreção. Mas, em vez disso, o que fiz foi voltar a fazer-lhe milhares de perguntas e verificar assim as coisas dessa forma. Mas não conseguia dormir, não parava de pensar na reação que teria ao livro. Sabia que muitas das coisas que ele me contou seriam difíceis para ele na sua comunidade. Ele fala da cunhada, fala sobre o principal partido político da Cisjordânia, o Fatah, diz muitas coisas que iriam metê-lo em sarilhos.
Ele estava a contar essas histórias consciente de que o Nathan iria escrever sobre elas.
Sim. Esperei até ter uma capa dura da primeira versão do livro para lho dar a ler. Dois dias depois, ele ligou-me e disse: “vais meter-me em muitos sarilhos”. Tinha acabado de ler a primeira parte, que é sobre a sua vida amorosa. E disse-lhe: “por favor, continua a ler e falamos quando acabares”. Ele estava claramente perturbado, estava nervoso com a reação da comunidade. Fiquei confuso porque aquela era a reação que mais temia. Quando acabou o livro, ligou-me e disse: “compreendo o que estás a fazer e estou pronto para enfrentar os desafios que surgirem”. Até agora, tem corrido bem. Mas foi precisa uma enorme dose de coragem da parte dele para fazer isto. Uma das coisas que lhe disse quando me telefonou pela primeira vez foi: “verás que outras pessoas me disseram coisas ainda mais íntimas”. A força deste livro estará no facto de as pessoas sentirem que estão realmente na pele das personagens do livro. E, para isso, têm de ser autênticas. Ele aceitou isso.
Juntou histórias de pessoas diferentes. Como foi o trabalho de as encaixar, em termos de estrutura da obra?
Foi um desafio enorme porque, em termos de estrutura, era basicamente um puzzle. Havia dois tipos de linhas temporais que estava a tentar entrelaçar. Uma é a história do acidente, e aí estou a contá-la cronologicamente. É muito difícil para um leitor manter muitas personagens diferentes na sua mente. Por isso, precisava de concentrar uma determinada pessoa quando ela aparece na história do acidente, e não reaparecer 50 páginas mais tarde. Além disso, há uma linha temporal separada, que é a história profunda, a história familiar, de cada uma dessas pessoas. Toda a história de Israel-Palestina é apresentada através dos olhos destas diferentes personagens judias e palestinianas. Era, portanto, um grande puzzle juntar tudo isto. O artigo original era sobretudo um artigo de história e análise histórica e muito menos sobre Abed. O livro partilha uma página de texto com o artigo original, a história de Abed foi muito alargada. O livro não tem um narrador omnisciente que faça a análise histórica, estruturalmente foi um grande desafio.
Como definiu os grandes blocos narrativos do livro?
A principal ambição era que, através do período de 24 horas do acidente, se pudesse conhecer toda a história de Israel-Palestina. Foi assim que a estrutura surgiu. Eu sabia que a segunda parte do livro poderia acrescentar, por exemplo, a história do exílio palestiniano através da história da família de Abed. Já a história de Abed não era a de um exilado palestiniano mas a da primeira Intifada, de um ativista que se tornou muito político e que se tornou num líder político na sua comunidade, tendo sido preso e torturado. É uma história sobre a forma como o sistema israelita entra na sua vida, de tal forma que, a certa altura, ele escolhe com quem quer casar com base na cor do bilhete de identidade dela, só para poder manter o seu emprego em Jerusalém. Cada bloco está a dar uma parte diferente da História de Israel-Palestina. Outra personagem, o arquiteto do muro, Dany Tirza, deu-nos muito contexto através da sua história. Aprendemos muito sobre os primórdios do sionismo e sobre as negociações em que Dany participou durante os acordos de paz de Oslo e a forma como este homem criou, de facto, toda a estrutura que vemos em vigor na Cisjordânia, com diferentes zonas para os palestinianos e diferentes zonas para os colonatos. E como escolheu criar este muro, este louco muro sinuoso através de Jerusalém, que acaba por cercar aquela comunidade.
Conseguiu fazer uma coisa bastante difícil que é a de dar todo esse contexto histórico sem que parecesse tratar-se de um ensaio, usando técnicas narrativas literárias. Como foi o processo de escrita? Escreveu, reescreveu, escreveu por partes, encaixou, escreveu de uma vez só e de forma fluída?
Era esse o meu objetivo. A escrita funciona através de reportagens e pesquisas intensivas em que não estou a escrever nada. E depois há um período intensivo de reflexão e de análise de todo o material, numa tentativa de descobrir a estrutura. Este é o período a que a minha mulher chama de procrastinação. Ela goza comigo e diz: “escreve o livro, só estás a arranjar desculpas”. Mas estou mesmo a tentar descobrir qual é a estrutura. E, neste caso em particular, foi realmente um enorme desafio. Durante esses meses em que não escrevi nada, estava a tentar perceber qual seria a ordem, quais as histórias que tinha de deixar de lado e quais as que tinha de incluir. E só depois comecei a escrever. Dito isto, o primeiro rascunho do livro é duas vezes mais longo do que este. Por isso, não houve muita reescrita, mas sim muitos cortes. Eu precisava que funcionasse da forma que está a descrever. Tinha de haver um bom equilíbrio entre o regresso à história principal do acidente, e só podia afastar o leitor durante um certo tempo antes de ele sentir que já não se tratava do acidente. Esse foi o verdadeiro desafio.
Ou seja, teve tempo, que é o que os jornalistas normalmente não têm.
Sim.
Na entrevista que deu ao The Guardian, diz que ser ser “um judeu com consciência é muito solitário”. A sua mãe, por exemplo, não consegue ler o que escreve. Que reações teve ao livro por parte de judeus e de judeus israelitas?
Tenho estado fora desde 30 de setembro. O livro foi publicado a 3 de outubro.
Quatro dias depois, estala a guerra Israel-Hamas.
Exato. Muito má altura, em muitos aspetos. Vou regressar a Jerusalém dentro de duas semanas e, então, poderei realmente responder a esta pergunta. Uma das minhas críticas favoritas ao livro foi feita por um professor israelita chamado David Schulman, na The New York Review of Books. Ele é uma figura venerada em Israel. Ganhou o Prémio Israel. Vive em Jerusalém. É professor na Universidade Hebraica de Jerusalém. Situa-se politicamente à esquerda. No tempo livre, faz um trabalho de proteção dos pastores palestinianos contra os colonos. Todos os fins-de-semana, passa praticamente o tempo livre a fazer este trabalho. Não é um israelita-tipo, mas é um israelita. Fiquei profundamente comovido com a recensão que fez do livro.
Leu-o em inglês.
Leu-o em inglês. Penso que, depois de 7 de outubro, o número de israelitas que estarão abertos à mensagem do livro será muito menor.
Há possibilidades de publicação em Israel?
Espero mesmo que sim. Ainda não há uma editora hebraica, mas eu gostaria muito que houvesse. Haverá, com certeza.
Como se sente em relação ao regresso daqui a umas semanas? Vai encontrar uma Jerusalém diferente.
Hei-de encontrar uma Jerusalém diferente, sim, em muitos aspetos. Tenho medo de ver essa diferença. Vejo o quanto há de racismo no ar neste momento, o quanto há de mentalidade fechada, o quanto as pessoas se retraíram em pontos de discussão muito rígidos. Tenho três filhas que estou a criar lá. Só vou conseguir controlar até certo ponto o ambiente em que elas vão ser criadas, o que me preocupa. Nem falo da segurança, refiro-me ao ambiente cultural em que vão ser criadas. No caso israelita, tudo é agravado por este desejo de fundo, mesmo pela esquerda, de ter uma maioria judaica no país. Aconteça o que acontecer, temos de ter uma maioria judaica. E, portanto, tudo é apresentado como uma ameaça a essa maioria.
“O ‘ethos’ israelita é-lhes inato: ‘não temos escolha’. Este é o lema da corrente vigente em Israel”
Lemos este livro e percebemos que os meios de comunicação chamados “alternativos” estão a relatar o que se passa em Gaza de forma diferente daquela que os mass media ocidentais. Que direito ao contraditório pode Israel ter?
Os principais meios de comunicação social que vemos não têm falta de perspetiva israelita. Estão impregnados pela perspetiva israelita. Por isso, um livro como este, que mostra a vida quotidiana dos palestinianos que vivem sob este sistema, é algo que não se vê nos principais meios de comunicação social. Em termos de voz israelita, especialmente da minha perspetiva como americano, não sinto que haja qualquer tipo de falta de expressão. Penso que é realmente impressionante o grau a que a perspetiva israelita é enfatizada, mesmo sem que os meios de comunicação social que a apresentam o saibam, sem que a compreendam. Os preconceitos são muitos, muito profundos, assim como a falta de conhecimento histórico, a anulação de certos pontos de discussão. Está tudo muito enraizado. O ethos israelita é-lhes inato. Este é o lema da corrente dominante em Israel: “não temos escolha”.
E para si, enquanto jornalista?
Para mim esse lema não é verdade, porque houve muitas oportunidades para Israel resolver este conflito de longa data de uma forma que teria sido muito favorável a Israel. Basta recuarmos um pouco e pensarmos em todo o conflito israelo-palestiniano, não só na ocupação da Cisjordânia e de Gaza desde 1967, mas também na deslocação forçada em 1948, na própria ideia de criar um Estado judeu na Palestina, na altura em que o movimento sionista começou. Quando os primeiros colonos sionistas chegaram à Palestina em 1882, a população judaica era de 5%. Quando falamos dos principais meios de comunicação social e do que Israel tem a dizer, a maioria dos israelitas diria que se trata de um conflito de 2000 anos ou que houve esta luta desde sempre. Não. Na verdade, o conflito começou com a ideia política do sionismo, em 1882. E, nessa altura, com a ideia de criar um Estado para os judeus numa terra que era mais de 95% não judaica, contra a vontade da população local. A população local achou isso injusto. E esta foi a fonte de décadas de conflito, mesmo antes de 1948, antes da criação do Estado. Os israelitas dirão que não têm escolha. Mas tiveram uma escolha durante muito tempo.
Que escolha é essa?
A de criar um Estado palestiniano na Cisjordânia e em Gaza, com 22% da Palestina histórica. E Israel com 78%. Os 22% na faixa de Gaza e na Cisjordânia não teriam soberania total. Seriam uma espécie de grande zona desmilitarizada, com todo o tipo de restrições. Esta tem sido uma oferta feita a Israel repetidamente desde 2000 pela Liga Árabe. Todos os Estados árabes se reuniram e apresentaram esta proposta a Israel: criar um Estado palestiniano apenas na Cisjordânia e em Gaza. E mesmo a questão dos refugiados, que é tão sensível, que está no centro deste conflito, eles propõem que seja resolvida de uma forma justa e consensual, o que significa que Israel concordaria. Ou seja, teria direito de veto sobre a solução dos refugiados. Muitos na esquerda israelita reconhecem que essa oferta é um excelente negócio para Israel e o governo israelita ainda não respondeu. A Liga Árabe repete esta oferta todos os anos. E, na perspetiva israelita, esta proposta de 22% traduz-se numa posição maximalista. “Nós somos fortes. Eles são fracos. Eles não nos podem oferecer nada. Em que parte da negociação é que a fação forte permite à fação fraca ver a sua proposta máxima concretizada?” É esta a atitude israelita. “Vamos chegar, entrar na negociação, vocês vêm com a vossa posição máxima e nós chegaremos a algum tipo de compromisso: dar-vos-emos algo menos do que 22%.” Mas, para os palestinianos, 22% é já aceitar que vão desistir de 78% da sua terra natal, que não vai haver um regresso concreto dos refugiados, que 80% dos colonos vão ficar. Partes de Jerusalém Oriental vão manter-se nas mãos de Israel, apesar de ser território ocupado. Não vão ter uma verdadeira soberania. E assim por diante. Eles sentem que fizeram o melhor compromisso com que alguém poderia sonhar. E depois entram na sala e dizem-lhes: “OK, agora vamos negociar daí para baixo”. Portanto, a perceção israelita de que não têm escolha baseia-se numa visão histórica muito limitada.
Esse é o ponto de vista do governo ou também da população israelita?
Acho que é de ambos. A população está muito mal informada.
Mas foi a mesma população que esteve nas ruas em março e abril a manifestar-se contra o governo, porque o governo queria subjugar os poderes do Tribunal Constitucional. Eram manifestações, diziam, em defesa da democracia no país, que consideravam ameaçada.
Os protestos em massa contra a reforma judicial em Israel foram um movimento muito autêntico e generalizado. Mas, mais uma vez, baseiam-se em enormes equívocos sobre o que é Israel. O slogan destes protestos é: preservar a democracia, salvar a democracia israelita. Israel tem hoje 7 milhões de judeus e pouco mais de 2 milhões de palestinianos. A grande maioria desses palestinianos não tem direitos civis básicos. Um judeu israelita sair à rua e dizer “salvem a democracia” quando temos 2 milhões de pessoas que não têm os direitos civis mais básicos, que são presas por protestar, que não têm liberdade de expressão, mostra o quão possível é viver numa bolha em Telavive e negar o facto de que o sistema em que vivemos não é democrático. O movimento de protesto foi autêntico, foi real. Foi contra estas reformas judiciais, foi contra esta ideia de que Israel está a transformar-se numa teocracia. Houve um protesto muito antirreligioso. Todos esses sentimentos são reais, mas quando se trata da questão palestiniana, há todo o tipo de negação e desinformação.
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Mas ao viverem lado a lado, ao verem a forma como são tratados, ao verem os muros…
Não veem. Em Telavive não se vê. Em Jerusalém vê-se mais. Mas mesmo em Jerusalém não se entra nas zonas palestinianas. Na verdade, a maioria dos judeus israelitas não entra nas zonas palestinianas. E de certeza que em Telavive, na maior parte do país, não os veem. Passam pelo muro na autoestrada. Está lá. Os seus filhos e filhas vão e servem no outro lado. E depois voltam para casa para o jantar de sexta-feira à noite. Mas é totalmente compartimentado. Claro que todos serviram no Exército, sabem o que o Exército faz, têm a experiência pessoal disso. Mas, na sua vida quotidiana, aquela realidade está noutro sítio. “Aqui em Israel há uma boa democracia e depois ali há um conflito qualquer”. Como os EUA no Afeganistão ou os EUA no Iraque, ou qualquer coisa do género – um conflito distante. Claro que não se trata de um conflito distante. Os seus próprios cidadãos estão a viver em colonatos mesmo no centro da Cisjordânia e a trabalhar como juízes no Supremo Tribunal, a trabalhar como ministros no governo. Eles sabem que toda esta ideia de que existe uma boa democracia está desmoronada.
E conseguiu ver tudo isto que diz que os israelitas judeus não veem porquê? Porque é estrangeiro?
Sim.
Perante a descrição que faz é fácil pensar na ideia de banalidade do mal a que se referia a judia Hannah Arendt aquando dos julgamentos de nazis em Nuremberga, depois da II Guerra Mundial. Esta ideia encontra reflexo no seu livro?
Sim. É muito semelhante. Há uma banalidade em toda a situação. Há uma burocratização…
Apartheid, como lhe chegou a chamar o antigo presidente norte-americano Jimmy Carter?
Apartheid, sim. Por exemplo, é possível ter um funcionário do Ministério da Saúde a trabalhar em Gaza, alguém que sempre trabalhou para cuidar e ajudar pessoas e agora está sentado num gabinete a olhar para pedaços de papel e a dizer: “não, ela não pode vir receber tratamento oncológico aqui, porque pode muito bem passar pelo Egito ou viajar para a Jordânia e talvez recebê-lo lá”. Estas pessoas são responsabilidade de Israel, estão a viver sob o controlo de Israel. É muito fácil ser um elemento desta burocracia e justificar a atitude dizendo não ter escolha, que este é o sistema que existe. Os israelitas são negacionistas, nunca aceitarão a existência de outros. E a outra desculpa é: “é temporário, não vai durar para sempre”; ou “É verdade, não é bom, mas haverá eventualmente paz. É uma situação imperfeita mas por agora.”
E o que pensam os palestinianos de tudo isto?
Não creio que algum palestiniano pense que a criação do Estado de Israel foi justa. É impossível para alguns palestinianos não saberem que 95% da população não era judia e que depois os israelitas vieram e criaram um Estado. Eles não vieram como refugiados. Não vieram e disseram: “queremos procurar abrigo convosco e viver em igualdade neste Estado”. Não, quiseram criar um Estado para eles próprios, não para os palestinianos, e com supremacia judaica. Os palestinianos rejeitam-no, quer se trate de 50% da terra ou de 78%. Acham que é injusto. Por isso, não creio que alguma vez pensem que Israel se justifica dessa forma. Mas fizeram uma acomodação realista com o facto de que Israel tem todo o poder e eles não têm nenhum. Esta é a cedência que estão dispostos a fazer para terem alguma sentido de liberdade. Foi por isso que o movimento nacional palestiniano acabou por concordar com um Estado com 22% do território nacional.
Há muitos movimentos judaicos que apelam a um cessar-fogo. Explícita ou implicitamente, a comunidade internacional está a começar a exercer alguma pressão, à qual Israel parece indiferente. O que poderia explicar essa atitude, além de terem os EUA a apoiá-los, claro?
Israel preocupa-se muito com o que o mundo exterior pensa porque está a investir imenso naquilo a que chamam hasbará, que significa “propaganda”. Tem um duplo significado em hebraico. Tem a conotação negativa de propaganda, e é assim que é mais comummente usado. E também quer dizer “informar”. Gastam muito na guerra de informação e estão muito, muito preocupados com o que aparece sobre Israel em qualquer publicação. Preocupam-se com a dimensão dos movimentos de protesto. Preocupam-se com a pressão que é exercida sobre o presidente dos EUA, se ele estará a começar a pensar que tudo isto o poderá prejudicar eleitoralmente. Há muitas organizações israelitas que se dedicam à monitorização dos meios de comunicação social. E exigem correções para qualquer artigo que considerem crítico de Israel, porque sabem que o método no jornalismo exige que não se afirme apenas, mas também que se demonstre.
Tem sido pressionado?
Claro. Os editores com quem trabalho já sabem que terão de passar semanas, depois de os meus artigos saírem, a responder a todos estes pedidos de correção.
A verificar todas as suas fontes.
Sim. Porque têm de responder a qualquer tipo de queixa deste género. É uma enorme dor de cabeça para qualquer editor que esteja a encomendar um artigo sobre Israel-Palestina. No sentido inverso, isso não existe. Ou seja, há um desequilíbrio em termos de terror na esfera dos meios de comunicação social, em que um editor de opinião do The New York Times sabe que, se encomendar um artigo a alguém que expresse uma opinião favorável aos palestinianos, terá semanas de trabalho pela frente e uma dor de cabeça enorme. Se fizer o contrário, um artigo que simpatize com Israel, não haverá nada. Talvez uma queixa. E assim se institucionalizam organizações bem financiadas, cujo único trabalho, a tempo inteiro, é fazer esta pressão.
Como definiria o governo de Israel, em termos de regime?
Temos relatórios recentes de todas as principais organizações de defesa dos direitos humanos, a principal organização israelita de defesa dos direitos humanos, B’Tselem, a principal organização palestiniana de defesa dos direitos humanos, al-Haq, as duas principais organizações internacionais de defesa dos direitos humanos, a Amnistia Internacional e a Human Rights Watch, e o relator especial da ONU para Israel-Palestina. Todas estas cinco organizações concluíram que Israel está a praticar apartheid. Por isso, a forma como eu caracterizaria Israel é a de um Estado de apartheid.