Centenas de garrafas estão deitadas em pilhas, mal iluminadas pela luz branda que existe nas caves que já foram palco de festas glamorosas nas décadas de 60 e 70 do século passado. Estamos no interior de poços de giz trabalhados pela mão do homem e forrados por paredes brancas que se afunilam a caminho da superfície. Lá em cima estão as vinhas de Champanhe, cá em baixo os vinhos que nelas nascem.
Em Reims, na região francesa de Champanhe, o vinho espumante feito sobretudo de uvas brancas envelhece nas entranhas da terra. Na mais antiga casa de champanhe do mundo, estabelecida em 1729, há pedreiras de giz que crescem de forma piramidal até uma profundidade de 40 metros, há paredes calcadas pela mão humana e há milhares de garrafas entregues ao embalo de um estágio demorado. Na Maison Ruinart, contam-se muitas histórias, mas nenhuma é como a do vinho que aqui nasce ano após ano, século após século.
Acima do solo, uma sucessão de edifícios do século XVIII espelham a maioridade há muito alcançada pela Ruinart, o primeiro negócio de champanhe alguma vez criado. Abertas as grandes portas que dão acesso ao coração da maison, uma guia espera-nos para, num português do Brasil quase imaculado, levar o grupo numa viagem pelo tempo até à segunda década de 1700. Nicolas Ruinart, conta-nos, era conhecido pelo trabalho no universo dos têxteis. Pouca ou nenhuma era a experiência na vinha, mas isso não o impediu de cedo perceber o potencial dos vinhos da região. Dom Thierry Ruinart, o tio monge do fundador, teve um papel importante na alavancagem da marca tal era o contacto regular com a aristocracia francesa — não é por acaso que o topo de gama, o champanhe Dom Ruinart, lhe leva o nome emprestado.
Em França, até 1728 era proibido vender vinho engarrafado noutras regiões que não as de origem — o mesmo para o champanhe, uma realidade a anos-luz do que acontece atualmente. Foi o rei Luís XV quem publicou um decreto real a autorizar o transporte de vinho não só em barricas de madeira, mas também em garrafas, de modo a promover os vinhos da região de Champanhe. A proibição tinha por base o simples facto de o tamanho das garrafas nem sempre ser igual, o que significava que a quantidade de vinho também não era uniforme, uma situação irregular difícil de taxar (as barricas facilitavam, então, o processo). O decreto real de 1728 terá sido influenciado pela amante do rei, Madame de Pompadour, que, conta-se, gostava muito de champanhe. Há quem diga que o formato das taças mais abertas de champanhe, anteriores à mais tradicional flûte, teriam tido a sua origem e inspiração nos seios de Madame de Pompadour, que terão servido de moldes para o efeito (outros relatos — ou lendas, se quisermos — referem os seios da rainha Maria Antonieta).
No início, a produção da Ruinart era bastante pequena — no primeiro ano foram produzidas apenas 170 garrafas, a maior parte oferecida aos melhores clientes no negócio dos têxteis. O objetivo era perceber a reação das pessoas ao vinho. Aos poucos, Nicolas Ruinart percebeu que o champanhe tinha um potencial de sedução tão interessante que abandonou os tecidos para focar-se na bebida vinda das uvas. A vontade de manter o negócio na família fê-lo ensinar tudo o que sabia ao filho Claude Ruinart, uma figura de particular importância na história da marca: inicialmente a Ruinart estava localizada no centro da cidade de Reims, com a produção armazenada num hotel privado da família; quando o hotel ficou pequeno demais, Claude Ruinart decidiu usar as pedreiras de giz como caves naturais.
Os poços não foram escavados para armazenar garrafas, longe disso: o calcário extraído das paredes foi durante muito tempo encaminhado para a construção na cidade — só a partir dos oito metros de profundidade é que eram usados blocos de calcário para a edificação de estruturas. Nada é ao acaso: debaixo da cidade de Reims existem cerca de mil poços que, em tempos de guerra, chegaram a funcionar como abrigo para proteger populações dos intensos bombardeamentos. De facto, a primeira guerra mundial foi particularmente dura para a cidade de Reims, tanto que em 1914 não houve qualquer colheita.
40
Nas caves da Ruinart trabalham sensivelmente 40 pessoas. Atualmente, 5 a 10% da remuage é feita à mão. Noutros tempos, 30 a 40 mil garrafas eram rodadas manualmente todos os dias, um esforço que resultava com frequência em tendinites.
Ao longo da viagem, tanto a guia Claire como o enólogo da casa, o chef de caves, vão repetir como os poços reúnem as condições perfeitas para armazenar as garrafas de champanhe. A humidade constante, a rondar os 90%, é precisamente um dos motivos porque, no século XVIII, optou-se por fazer das caves a morada de repouso de tantas garrafas — quantas ali estão ninguém nos diz. Na região a chuva é constante — em média, chove em 200 dias do ano, apesar de 2018 ter fugido à regra — e o calcário absorve a água, o que ajuda a manter uma temperatura bastante baixa (entre os 10 e os 11º graus). Na Ruinart em particular, os corredores de acesso aos 25 poços têm oito quilómetros de extensão — um trabalho da responsabilidade da terceira geração da família, François Jean Irénée Ruinart.
Quem visita as pedreiras de giz, onde trabalham cerca de 40 pessoas, tem uma noção diminuta do seu tamanho real. Diminuta só por comparação face ao que fica por explorar. A zona mais funda das caves, a chegar aos 40 metros, faz-nos esticar o pescoço ao máximo, num ângulo reto perfeito, para alcançar o topo das galerias que crescem no sentido contrário ao de um funil — estas caves são desde 2015 Património Mundial da UNESCO. E além das imensas garrafas que descansam nas profundezas, também a linha de dégorgement encontra-se abaixo do solo.
A casa tem poucos hectares próprios e a maior parte da produção é comprada (em forma de mosto). “Assim que temos o mosto, podemos começar as fermentações alcoólicas”, assegura Claire. Aqui não se fala de números. É política da casa e nem a guia sabe precisar valores. Para fugir à pergunta “qual o volume de produção”, Claire limita-se a afirmar que a Ruinart, que atualmente faz parte do grupo LVMH, dedicado a produtos de luxo, é “um negócio de champanhe pequeno entre os grandes”.
O enólogo da terra e a ode ao Chardonnay
2018 é um grande ano em potência, diz Frédéric Panaïotis, enólogo há mais de uma década na Ruinart. Está sentado numa mesa redonda, na sala de provas, e volta e meia fixa os quatro copos vazios que, gradualmente, são enchidos com quatro espumantes diferentes, Dom Ruinart e Ruinart Blanc de Blancs incluídos — quantidades mínimas para efeitos de prova. A cuspideira está mesmo ao lado.
Panaïotis nasceu e cresceu na região. Os avós tinham uma pequena vinha e vendiam a maior parte das uvas — o pouco com que ficavam, cerca de 200 garrafas por ano, era para consumo próprio, uma realidade com a qual o enólogo privou desde cedo. A formação de Panaïotis passou pelo Institut National Agronomique Paris-Grignon e pela Ecole Nationale Supérieure Agronomique. Enquanto aprendiz, trabalhou em casas do vinho em França e na Califórnia e desde 2007 é chef de caves da maison, um cargo que lhe dá a responsabilidade de fazer os blends.
Referências disponíveis em Portugal
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Existem três “non-vintage”
- “R” de Ruinart
- Ruinart Blanc des Blancs
- e Ruinart Rose
Existem duas referências vintage:
- Dom Ruinart Blanc des Blancs
- e o Dom Ruinart Rose
Estas referências encontram-se à venda em lojas gourmet um pouco por todo o país. Os formatos disponíveis são: 0,375L, 0,75L e 1,5L (da gama “non-vintage”) e 0,75L e 1,5L (da gama vintage).
“Digo sempre que temos a história mais antiga de Champanhe, mas em termos de história na produção de vinho é tudo bastante recente. Mudou muita coisa depois da segunda guerra mundial, quando a nova geração da Ruinart tomou posse e começou do zero”, conta enquanto sorve num repente um trago de rosé. A dedicação à casta Chardonnay começou precisamente nesta fase, uma escolha encarada como visionária — todos os champanhes da casa são feitos a partir da uva branca, inclusive os rosés (o champanhe com menos percentagem terá à volta de 40%; a casta tinta de preferência, embora em menor escala, é o Pinot Noir). “À data, o Chardonnay não era tão popular como hoje em dia. 70 anos depois, aqui estamos, a ser reconhecidos como especialistas da casta.” A frescura aromática é primordial e também um dos motivos porque o enólogo assegura que a maison tenta ser o mais fiel possível à uva. “Não gostamos assim tanto de leveduras, prefiro focar-me na fruta”, garante, já a prova a vai quase a meio.
O segundo vinho, Ruinart Blanc de Blancs, é precisamente um blend de três colheitas — 2015, 2014 e 2013. O enólogo explica que o uso de vinhos de reserva corresponde a uma estratégia da casa para tentar manter a consistência dos vinhos. “Neste caso só usamos vinhos de reserva novos, queremos a sua frescura. Usar vinhos de reserva antigos não faz sentido.” Todos os champanhes da marca são brutos, usam cerca de 7,5 gramas de açúcar por litro, sendo que, tecnicamente, é permitido ir às 15 gramas e permanecer na mesma categoria.
Este ano foi algo como nunca visto. É muito cedo para determinar a qualidade do vinho na garrafa, mas a quantidade e o potencial de qualidade… nunca tivemos nada assim. Perguntem a quem quiserem na região. Foi de doidos”, afirma Frédéric Panaïotis.
O ano de 2018 foi atípico para a região e essa realidade serve de post-it para relembrar o problema das alterações climáticas. Tanto a região, no geral, como a Ruinart, em particular, estão a tomar medidas nesse sentido, numa tentativa de reduzir a pegada ambiental. Isso passa pela reciclagem, com a maison a garantir que vai alcançar a meta dos 100% já este ano, pelo transporte feito de forma mais verde e até por pacotes ecológicos. “Temos uma equipa de investigação dedicada a isto. O nosso objetivo é reduzir as nossas emissões de dióxido de carbono até 75% até 2050. Toda a gente tem de entrar neste jogo.”
O último grande ano do topo de gama, o Dom Ruinart (vinho que é sempre vintage), data de 2010 e ainda não foi lançado no mercado. “Se perguntar a outros produtores, eles não lhe vão falar em 2010, mas para nós… De tudo o que já provámos, esse é o ano”, enfatiza Frédéric Panaïotis. O vinho em questão ainda não está pronto e deverá chegar às prateleiras de garrafeiras selecionadas dentro de três anos. O de 2006, em prova, tem notas de frutos secos, algum mel e uma boca cheia. O Dom Ruinart, garante quem o faz, nunca pode ser provado novo e, para explicar a importância do envelhecimento — mínimo de nove anos em caves –, compara o champanhe com o muito português Vinho do Porto. Além do envelhecimento, o enólogo destaca a qualidade das uvas — a maioria proveniente de Côte des Blancs e também da Montagne de Reims.
“Somos a casa mais velha e, de muitas maneiras, temos de ser a mais moderna. Fazemos isso com a arte, mas acho que também temos um estilo de vinhos muito moderno. Estes champanhes não são tradicionais, sobretudo os que não são vintage”, defende Frédéric Panaïotis, já a prova terminou.
A arte além do vinho
Não é fácil perceber à primeira do que se trata. A obra de arte precisa de uma legenda que é rapidamente entregue a tempo de apaziguar a curiosidade de quem a rodeia. É nas instalações da Ruinart, também elas centenárias, que a guia Claire nos conta que todos os anos, desde 1896, a maison convida um artista para interpretar a essência da sua história e dos seus vinhos. Em 2014 foi a vez da escocesa Georgia Russell, residente em Paris, criar uma escultura chamada Le Grand Livre para homenagear o fundador da Ruinart. A artista usou a cópia de um antigo livro de contas da maison — onde constam apontamentos manuscritos pelo próprio Nicolas Ruinart — e trabalhou-a com recurso a um bisturi. Cada folha foi meticulosamente cortada e o resultado final merece alguma contemplação.
1896 marca precisamente o ano da primeira colaboração artística com a criação do primeiro cartaz publicitário alguma vez feito no negócio do champanhe. No cartaz, uma mulher com um ombro a descoberto segura uma taça do vinho espumante na mão — as cores utilizadas e a postura feminina fazem lembrar sem grande dificuldade a Estátua da Liberdade, edificada dez anos antes. Atualmente, a Ruinart é patrocinadora de 30 feiras de arte. A colaboração contínua da empresa com diferentes artistas, ano após ano, resultou na parceria com o chinês Liu Bolin em 2018. O artista, conhecido pelas fotografias que são, ao mesmo tempo, uma performance, convidou vários colaboradores da Ruinart — o chef de caves incluído — para participarem de forma camuflada em fotografias que representam diferentes fases do processo de produção de champanhe. O resultado pode ser consultado na fotogaleria abaixo. Para 2019 está prevista a colaboração com uma artista brasileira.
O Petit R é outra forma de juntar a arte ao vinho. Uma mesa grande e imaculadamente branca domina a sala privada onde acontece esta experiência gastronómica que envolve, de uma forma muito original, a tecnologia de video mapping. A tela em branco salta de edifícios históricos onde já nos habituámos a ver imagens bonitas para a mesa de jantar e, ao longo da refeição, uma personagem animada a representar o fundador da casa, Nicolas Ruinart, vai contando a história da empresa, desde a sua origem, em 1729, aos dias mais atuais. Ao prato chegam propostas que variam consoante os produtos da estação, que são naturalmente acompanhados pelos champanhes da casa. A iniciativa é particularmente recente, lançada em 2017, e está aberta ao público mediante marcação atempada. Também as emblemáticas caves podem ser visitadas, sendo que a marcação deve ser feita através do site da Ruinart.
O Observador viajou a convite da Empor Spirits, distribuidor da Ruinart em Portugal