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O amor que tinha para com Lisboa era enorme. Se a visse hoje, Alexandre O’Neill não iria reconhecer os turistas a circular, os nómadas digitais ou os brunch places, mas iria certamente encontrar nela muita matéria para escrever. É pelo menos essa a visão do poeta e professor de literatura Fernando Pinto do Amaral, que considera residir também aí a atualidade da poesia de O’Neill.
“A Lisboa de hoje tem muita coisa para alguém como o O’Neill poder fazer uma desmontagem”, defende Pinto do Amaral. “Se vivesse agora, ele teria motivos para momentos de emoção, sim, mas teria também motivos para a ironia, para a sátira, para o sarcasmo. A Lisboa de hoje está repleta de apontamentos de ridículo, de lugares que há 12 anos eram tascos de copos de três a um euro e são agora wine bars a servir copos de vinho a dez euros.”
Gostamos da poesia de O’Neill como gostamos de alguém da família, de um amigo, de um namorado, que depois nos diz também as verdades e se ri de nós, explica Pinto do Amaral, que em 2003 escreveu o texto Ironia e Ternura para o número da revista de poesia Relâmpago dedicado a O’Neill. É precisamente isso que este poeta e professor universitário sente quando lê a poesia do poeta “caixa d’óculos”: fica comovido, enternecido, com a densidade e profundidade quando lê os poemas sobre os velhos de Lisboa, sobre a paisagem, sobre o amor. Mas depois, e ao mesmo tempo, encontra na poesia deste que foi um precursor do surrealismo em Portugal uma sátira e uma ironia que desconstrói ideias, situações, pessoas, hábitos. “Não temos muitos poetas assim”, defende Pinto do Amaral. “Temos quem faça isso de vez em quando, mas, com a acutilância do O’Neill, acho que não.” É para assinalar o legado e, ao mesmo tempo, a ausência, que a Biblioteca Nacional inaugura a exposição No Reino de O’Neill, patente até 8 de março.
Alexandre O’Neill, nascido a 19 de dezembro de 1924 (e que morreu a 21 de agosto de 1986), amava Lisboa, era acutilante, era excessivo, era incongruente. Fazia, no entender de Pinto do Amaral, muita falta aos dias de hoje. “O O’Neill é um autor que lemos e temos sempre ali ângulos diferentes. Não temos aquela carneirada de ir atrás dos outros, de imitar os outros, de fazer uma coisa só porque está na moda.” O’Neill tinha personalidade, algo que para Pinto do Amaral está a tornar-se cada vez mais raro. “Somos todos muito iguaizinhos, todos muito contentes, e o O’Neill era ultra-crítico disso. Se o O’Neill fosse vivo agora, seria absolutamente maravilhoso o modo como ele olharia para esta sociedade que nos rodeia.”
O’Neill era muito denso, muito profundo, e, ao mesmo tempo, muito irónico, leviano, sobre o que são os portugueses, sobre as idiossincrasias de Portugal. “É uma poesia que joga muito com as palavras, mas que joga também com as emoções e com os sentimentos, nomeadamente a ironia”, explica Pinto do Amaral, que chegou a cruzar-se com o poeta uma ou duas vezes, em tertúlias, tinha ele 20 e poucos anos. “Aquela coisa de pensarmos que ele está a brincar, mas não está. Ou então o levarmos a sério, mas ele afinal está a brincar. O O’Neill joga permanentemente com isso.” Procurava os absurdos, como neste excerto do poema intitulado Portugal:
“Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjetivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos”
Os amigos, motor da biografia
Entre escrever um poema e ir jantar com um amigo, Alexandre O’Neill preferia ir jantar com o amigo. Maria Antónia Oliveira escreveu a biografia do poeta, que acabou por ser publicada em versão revista e aumentada (Assírio & Alvim), precisamente a partir dos amigos, dos testemunhos dos amigos – uns de infância, outros das tertúlias surrealistas, como Cesariny; uns ficaram para sempre, outros perderam-se pelo decurso da vida. Chateavam-se e nunca mais falavam, como foi o caso de um amigo de infância, Alexandre Pinheiro Torres.
“A impressão que tive do O’Neill, através desses depoimentos e dessas conversas, foi essa lealdade que ele tinha para com os amigos”, conta a autora de Alexandre O’Neill — Uma Biografia Literária. “O que notei é que as pessoas com quem eu falava diziam, no final, por exemplo, de uma tarde ou de um almoço longo, ‘ai que bom poder ter falado do Alexandre’. As pessoas gostavam de o recordar e recordavam-se muito facilmente.”
Essa lealdade estendia-se ao gosto pela partilha. Partilhava o conhecimento que tinha, as coisas novas que lia, dava conselhos. E sabia também recebê-los, ouvia os amigos. O’Neill gostava de ler em voz alta e tinha um fascínio absoluto pela banalidade, pelo lugar comum, que desmontava e remontava sob outra forma qualquer. Adorava vaguear pelas ruas, frequentava muito a zona do Princípe Real, onde existiam muitas tertúlias, nos cafés Alsaciana e Cister. “Não digo que ele escrevesse poemas na rua, mas ele andava muito na rua a recolher, a fazer o que ele chamava de recolhas, que depois utilizava nos poemas”, conta Maria Antónia Oliveira. “Era uma pessoa muito virada para o exterior. Amava a vida.”
Alexandre O’Neill era descendente de aristocratas irlandeses. Usava inclusive o anel com o brasão da família, dado pelo pai, mas tão depressa o colocava no prego como o emprestava aos amigos. A avó paterna, Maria O’Neill, publicou o primeiro livro aos dez anos. Escreve Maria Antónia Oliveira que era “uma mulher de pulso, de personalidade forte, muito interventiva na vida política e social do seu tempo”. Separou-se do avô de Alexndre para ir atrás das suas paixões amorosas: um primo de quem chegou a ter uma filha, um judeu russo que chegou a Lisboa para dar uma conferência sobre vegetarianismo e naturismo. Foi ela quem organizou o Primeiro Congresso Feminista e de Educação, em Lisboa, em 1924, ano em que nasce este seu neto, filho de José António, bancário, e de uma amarantina cujo pai era médico e estava estabelecido em Lisboa. Dois anos mais tarde, um golpe militar mergulhava Portugal num regime autoritário que perduraria 48 anos, primeiro com a Ditadura Nacional e depois com o Estado Novo.
“O’Neill era de esquerda, antes e depois do 25 de Abril”, afirma Maria Antónia Oliveira. Era anti-regime, mais do que militante político. A militância que praticava era a cultural. Foi preso pela PIDE, porque fazia parte do grupo de pessoas que foram esperar a feminista Maria Lamas ao aeroporto Sá Carneiro em dezembro de 1953, quando regressava de um congresso sobre Paz. Esteve sempre muito ligado a pessoas próximas ou mesmo militantes do PS, mas isso não o impedia de ser acutilante para com estes seus amigos. É dele a frase “ele não merece, mas vota no PS”. Conta-se que Mário Soares se riu muito do slogan, na altura.
Sempre a vaguear por empregos, e a sair “definitivamente” da casa dos pais por diversas vezes, porque discutiam por causa da vida libertina do filho, o “poeta caixa d’óculos” foi primeiro escriturário e depois publicitário. É também de O’Neill o famoso slogan que veio a tornar-se provérbio português: “Há mar e mar, há ir e voltar”. Foi, aliás, na publicidade que encontrou a fonte de rendimento para tudo o que resto que lhe interessava realmente: viver.
Alexandre O’Neill era, em essência, independente. “Quando lhe cheirava muito a coletivo e a grupo, a independência dele falava mais alto. Como dizia o amigo João Pulido Valente, com palavras que ele proferia, ‘por aqui me safo’”, conta Maria Antónia Oliveira. De grupos fez apenas parte de dois: o Grupo Surrealista de Lisboa, de 1947 a 1951, e, mais tarde, o grupo que fazia a revista Almanaque.
O’Neill e o surrealismo português
O Surrealismo chegou a Portugal mais de 20 anos depois do movimento ter nascido, em França, com a publicação do Manifesto de André Breton, em 1924, em que se lia que o surrealismo era “automatismo psíquico puro, pelo qual se pretende exprimir, verbalmente ou por escrito, ou de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento”. Exigia-se o derrube da “vigilância exercida pela razão”.
Alexandre O’Neill ficou maravilhado quando leu o livro História do Surrrealismo, de Maurice Nadeau. Apareceu no café com ele debaixo do braço, como pode ler-se na biografia de Maria Antónia Oliveira, que se socorreu de uma carta escrita por Mário Cesariny, datada de maio de 1986, estava O’Neill já muito doente, internado nos cuidados intensivos do hospital Egas Moniz, depois de um segundo AVC, em abril desse ano. Viria a morrer em agosto. “O’Neill terá aparecido com ‘cara de caso’ no café e, calado, pôs o livro em cima da mesa: ‘passava-me a mecha, a ver o que sucederia. O que sucedeu foi o início de uma gritaria tal que ainda hoje se ouve’.”
O surrealismo português nasceu desta amizade entre O’Neill e Cesariny. Cesariny referiu que conheceu O’Neill em 1945, O’Neill disse ter sido em 1947 – mas, lá está, este nunca foi muito exato com datas, conta Maria Antónia Oliveira. Sucederam-se as tertúlias, os encontros em ateliês de amigos ou nos cafés, o fascínio com o automatismo da criação literária e plástica. Começa o uso da técnica do Cadáver Esquisito, fosse com uma sucessão aleatória – porque coletiva – de palavras, fosse com imagens, tudo fruto de colagens que desconheciam as que lhes precediam. “Este era um dos jogos favoritos dos surrealistas para produzir texto: o acaso é uma força com muito poder; a poesia, fruto do acaso, é feita coletivamente”, pode ler-se também nesta biografia da Assírio & Alvim. Esse ano de 1947 foi especialmente produtivo para O’Neill, com a publicação de duas obras suas, ambas intituladas Ocultação. Os surrealistas não suportavam os neorrealistas.
Já nos anos 60, integrou também um “grupo”, as pessoas que faziam a revista Almanaque (1959-1961). O chefe de redação era o escritor José Cardoso Pires. “O O’Neill andava lá pela redação, frequentava aquilo. Mas não demasiado”, contextualiza Maria Antónia Oliveira. “O João Cutileiro disse-me que ele não parava muito pela redação. Ia à noite, escrevia em casa, depois via lá alguns textos, a seguir iam para um café que havia ali no Largo de São Roque. A redação mudava-se toda para o Largo de São Roque, à noite.”
Era uma vida de boémia e de tertúlias. Aliás, poesia e vida eram indistitntas para O’Neill. O seu poema A Poesia É a Vida? reitera isso mesmo:
“Conforme a vida que se tem o verso vem
– e se a vida é vidinha, já não há poesia
que resista. O mais é literatura,
libertina, pegas no paleio”
O excesso, as mulheres, o desejo
Deve-se viver a vida de forma excessiva. Não deixar o desejo morrer. Alexandre O’Neill foi também assim com as mulheres. Mas não era, segundo a acepção dos amigos, um D.Juan. Não amava o ato de amar, amava intensamente. Casou duas vezes, teve um filho de cada casamento: primeiro com a realizadora Noémia Delgado, depois com a gestora cultural que veio a ser ministra do Ambiente e dos Negócios Estrangeiros, Teresa Gouveia. Mas houve mais nomes dignos de nota, dos quais o mais sonante foi o de Nora Mitrani.
Nora Mitrani era uma poeta parisiense de origem búlgara, partidária do movimento surrealista depois de conhecer Breton. Chegou a Lisboa em finais de 1949 e, em janeiro de 1950, deu uma conferência patrocinada pelo Grupo Surrealista de Lisboa e organizada pelo Jardim Universitário de Belas-Artes, na Casa das Beiras, intitulada La Raizon Ardente. O’Neill foi quem fez a tradução do texto da conferência para português. Apaixonou-se loucamente por ela.
Combinaram encontrar-se no ano seguinte em Paris, mas ele não obteve autorização por parte da PIDE para sair do país, que não lhe emitou passaporte. Diz-se que os pais tiveram mão nisso. É a Nora que O’Neill dedica o poema, um dos mais conhecidos, Um Adeus Português, título que João Botelho virá roubar para dar nome à sua segunda longa-metragem, estreada em 1985.
“Nos teus olhos altamente purificados
Vigora ainda o mais rigoroso amor
A luz dos ombros pura e a sombra
Duma angústia já purificada
Não tu não podias ficar presa comigo
À roda em que aprodeço
Apodrecemos”
Maria Antónia Oliveira tem uma opinião que relativiza o mito desse grande amor, interrompido, entre O’Neill e Mitrani. “Ele teve essa história com a Nora Mitrani, que foi, aliás, forte. Foi forte, entretanto descobri, entre uma edição e outra da biografia, uma carta muito curiosa dele ao Alexandre Pinheiro Torres. A carta é já dos anos 50 avançados”, conta a biógrafa. “Ele não fala da Nora Mitrani, mas é uma carta de dor. É uma carta muito estranha… de alguém que está ainda a sofrer bastante pela ausência da amada. Dizia que ia mas era casar-se com uma rapariga decente e compor a vidinha. Isto é uma coisa muito estranha, não é?” Mas depois, defende a biógrafa, não se percebe por que não foi para Paris nem que tivesse sido a salto. Quando se ama tanto, arranja-se sempre maneira de ir ao encontro de quem se ama.
Nora Mitrani viria a suicidar-se em 1961. A biografia transcreve também a perspectiva de Pinheiro Torres relativamente ao breve mas intenso encontro: “A paixão pela Nora era verdadeira. Mais do que isso: essa foi a verdadeira iniciação sexual do O’Neill. Ele com ela descobre o sexo, e fica doido. Nunca mais parou até morrer.”
Foi com a amante Pamela Ineichen – eram ambos casados (ela com um amigo dele, de quem tinha sido colega no colégio Valsassina) e com filhos – que visitou Paris, um ano depois da morte de Nora. Maria Antónia Oliveira compara-o a Charles Denner a interpretar o protagonista do filme de Truffaut O Homem que Gostava de Mulheres, de 1977. É do livro De Ombro na Ombreira o poema dedicado às mulheres, Hah!:
“Há a mulher que me ama e eu não amo.
Há as mulheres que me acamam e eu acamo.
Há a mulher que eu amo e não me ama nem acama.
Ah essa mulher!”
Foi por vezes difícil para Maria Antónia Oliveira lidar com Alexandre O’Neill. O feminismo dela choca com o machismo dele. No livro intitulado Uma Coisa em Forma de Assim, que reúne toda a prosa do poeta, que chegou a escrever também poemas para fados (recordemos o clássico Gaivota de Amália, por exemplo), há um texto em que faz uma ode ao sexo feminino, chamado Mulheres, mas depois era capaz de lhes fazer coisas cruéis, como ter acessos de fúria e de ciúmes.
O fim, como princípio
Maria Antónia Oliveira decidiu começar a biografia a descrever os eventos ligados à morte de Alexandre O’Neill. Diz que só assim – fechado o ciclo – se pode falar plenamente do que foi a vida, e a obra, de alguém. O autor desprendeu-se em definitivo do corpo físico do homem e libertou, assim, a sua obra.
O’Neill já tinha tido um AVC em 1983. O médico recomendara-lhe muita precaução. Era asmático desde sempre. Precisava de regrar-se em tudo, tomar a medicação, deixar de beber. “Foi uma chatice: comprimidos misturados com vinho…”, conta a biógrafa. “Não sei como é que terá sido. Sei que a última parte da vida dele foi muito dominada pela doença. Embora a cabeça estivesse boa.”
Nesse mesmo ano de 1983, foi-lhe atribuído o Prémio da Crítica do Centro Português da Associação Internacional de Críticos Literários pelo livro Poesias Completas, editado pela Imprensa Nacional no ano anterior. A reedição do livro torna-se, nas palavras de Oliveira, num “clássico popular”: esgotou em três meses. António Mega Ferreira entrevistou-o para o Jornal de Letras a esse propósito, em que lhe perguntou: “O que lhe diz a palavra instituição?”. O poeta respondeu: “Livra! Isso é que não. Não é o ato de publicar a obra completa que torna um poeta numa instituição”.
Mas os críticos da altura não perdoaram e escreveram textos a laudar a ironia de uma obra que se pautou por denegrir, ou pelo menos descuidar, a glória durante décadas e que era agora coroada com o prestígio daquela publicação. Um ano antes, tinha dado também uma entrevista, para o mesmo jornal, a Fernando Assis Pacheco, em que dizia: “Quando se está com uma panne cardíaca, o universo mingua e um sujeito desliga. Passa para a categoria do bom doente para salvar o canastro, mas não tem propriamente medo. Só tem medo que se enganem nos remédios e lhes enfiem os que são para algum vizinho… De resto, nada mais, a não ser que, quando se volta para casa, se sente tudo fora do sítio e não se acredita que o canastro volte à normalidade.” Deu a última entrevista em 1985, ao jornal Expresso, a Clara Ferreira Alves.
Exposição em Lisboa convida a uma viagem ao reino de Alexandre O’Neill nos 100 anos
“O excesso é uma coisa muito surrealista. O que O’Neill tinha a dizer mal, dizia sóbrio”, considera Maria Antónia Oliveira. “Ele reparava em tudo e cruzava tudo, não tinha sacralidade. Não conseguia deixar de cruzar as coisas de uma maneira tão corrosiva que os poderes públicos naquele tempo não gostavam, mas acho que não seria só naquele tempo”, defende Pinto do Amaral. “Mesmo agora, com este ambiente em que não se pode dizer nada, as pessoas estão todas a perscrutar-se umas às outras na Internet, tudo é viral. Uma pessoa diz qualquer coisa e ‘ai meu Deus, ele disse isto ou disse aquilo’, é logo cancelada. O O’Neill gozaria com isso, mas também seria cancelado e haveria de rir-se disso. Ele não se importava nada de brincar com tudo e de fazer humor com todas as coisas.”