O realizador Basil da Cunha tem filmado a Reboleira, na Amadora, movido pela vontade de “pôr na tela quem lá não estava”, mas nunca antes havia filmado a força das suas mulheres. É o que acontece em Manga d’Terra, terceira longa-metragem do realizador que se mostra este sábado, 25 de maio, no festival IndieLisboa, antes de chegar aos cinemas a 6 de junho.
A história é a de Rosinha, emigrante cabo-verdiana recém-chegada a um bairro periférico de Lisboa em que o assédio e a violência policial são quotidianos. A trabalhar num bar para enviar dinheiro para os filhos, encontra consolo na música e nas mulheres da comunidade.
Tal como a personagem que interpreta, também Eliana Rosa deixou Cabo Verde e se instalou na Reboleira. Deambulando pelas ruas, o seu magnetismo é tanto quanto o que imprime na tela do grande ecrã. Esta é a sua “rampa de lançamento”, atira o jovem do café do bairro, num misto de desejo e profecia.
“O filme está a sair, o meu EP está a sair, é por isso”, justifica Eliana quando se senta com o Observador, na sombra da esplanada. Manga d’Terra estreou-se mundialmente no verão passado, no Festival de Cinema de Locarno, mas é a estreia em Portugal que lhe causa nervosismo, admite. “Finalmente”, solta.
Nascida na ilha de Santo Antão, Cabo Verde, Eliana Rosa, 23 anos, começou cedo a descobrir a sua voz. “Em Cabo Verde temos muita influência brasileira, então cantávamos música de lá, das novelas principalmente. Cantava todas as publicidades da televisão”, recorda. Entre o tempo que viveu em Santiago e, mais tarde, em São Vicente, começou a cantar à noite e entrou até num grupo coral, mas olhar para a música além de um talento inato e uma possibilidade de um caminho profissional permanecia não mais do que um sonho longínquo.
Quando, finda a escola secundária, se mudou para Portugal, em 2019, e se instalou na Buraca, na Cova da Moura, onde os pais e a irmã já viviam, a intenção era fazer um curso numa escola de formação de atores, mas acabou por desistir no terceiro ano. Justifica: “Já não me identificava. Depois conheci o Basil e fizemos o filme.”
O quase-musical que é Manga D’Terra seria bem diferente não fosse a sua protagonista. “O Basil quando faz filmes tem um guião escrito, mas é escrito para a pessoa. Acho que a Rosinha também sou eu”, concede. “Não tenho filhos, mas vi a minha mãe. Fazendo esse filme, parece cliché, mas há uma força que vejo da minha mãe e que queria transmitir um bocadinho. Aquela resiliência. Se calhar não se vê… Se calhar vê-se muita vitimização, mas eu vejo outra coisa. Vejo aí uma vontade de persistir.”
[Já saiu o segundo episódio de “Matar o Papa”, o novo podcast Plus do Observador que recua a 1982 para contar a história da tentativa de assassinato de João Paulo II em Fátima por um padre conservador espanhol. Ouça aqui o primeiro episódio.]
Basil da Cunha tem assumido, nas diversas entrevistas de promoção de Manga D’Terra, como lamenta ter deixado de lado (por vezes até na fase de montagem) as mulheres nos filmes antecessores, todos rodados na Reboleira, subúrbio onde vive há quase duas décadas e no qual tem pousado o olhar também pela necessidade de preservar a memória coletiva do bairro que se está a transformar-se rapidamente.
As “mulheres do bairro, guerreiras”, que “existem e ainda não têm a luz que merecem”, como dizia o realizador em entrevista ao Observador em 2020, estão, finalmente, em grande plano. “As mulheres são fortes para caramba. É muito bom ter esse espaço para se ver também essas mulheres”, diz Eliana, para quem Rosinha personifica uma voz coletiva que urge escutar. “A Rosinha é uma menina-mulher que deixa dois filhos em Cabo Verde com a mãe, e vem para Portugal, como muitas mulheres fazem, para procurar uma vida melhor para os filhos, para ela. A personagem da Rosinha representa uma mulher muito forte, assim como muitas mulheres pretas que chegam numa sociedade de brancos, e num bairro onde há muito assédio sexual, muita violência policial. É aquela personagem que existe, mas que não se vê nos filmes. Nós sabemos que ela existe, mas nunca foi representada.”
Manga d’Terra encapsula mais do que um tempo de um bairro que vai desaparecendo — não é uma metáfora, as casas têm vindo, de facto, a ser demolidas. É também uma possibilidade de atentar para o fardo que carregam as mulheres, e que vai além dos múltiplos empregos. “Nem sempre é fácil ser mulher em qualquer sítio, mas no bairro é diferente porque vais sofrer por seres preta, por viveres no bairro, por não teres um salário com que consigas ter uma vida melhor. Quando dizes a um taxista, por exemplo, vou para a Cova, ouves ‘Ah não, aí eu não subo’. Magoa, dói. Quantas vezes eu, sendo Eliana, já briguei com taxistas? Viver no bairro não é fácil. Mas não é pelo bairro. É pelo que as outras pessoas vêem do bairro. Pelo que os brancos vêem do bairro.”
Manga D’Terra arranca com uma cena de rusga policial, ruas esventradas por uma força que ignora as complexidades e riquezas do ambiente que ali se vive. “Não estou no bairro, mas ouço muitas histórias de quando os policiais chegam já a arrebentar com tudo e é muito triste. É complexo falar sobre isso porque eu tenho o meu lado, os policiais têm os dele e não sei o que eu posso dizer sobre isso, sinceramente. As coisas podiam ser mais suaves. Os polícias mentem muito, vitimizam-se muito em relação a muita coisa.”
É um dos temas âncora do filme, a par do assédio, que “é posto como muito normal”, alerta Eliana. “No bairro, então, é tipo bola que segue”, comenta, assumindo que a cena em que passa por um episódio de abuso “foi a parte mais difícil de ter filmado”.
Tal como nas obras anteriores de Basil da Cunha (Até Ver a Luz, O Fim do Mundo, 2720), não há espetacularização da violência. A tragédia e a comédia andam a par e passo — a música dita a velocidade. “O filme também fala de um sonho que a Rosinha tem. Ela consegue encontrar uma força na música”. É a música que salva a personagem das adversidades. “É um respirar outra vez. O que caracteriza muito o filme é a música. O que o filme não diz, a música canta. A Rosinha canta.”
As canções que populam o filme — que pisca o olho ao género musical, com Basil da Cunha a assumir-se fã de Bob Fosse, realizador que filmou Cabaret (1972) e All That Jazz (1979) — servem como comentário à dureza do quotidiano e desempenham um papel crucial na história. É, aliás, o tema Manga d’Terra, dos Acácia Maior que dá título ao filme. Mas antes ainda se escuta Grandeza, também do coletivo composto por Henrique Silva e Luís Firmino. “É uma música fortíssima, lindíssima, que fala sobre: para quê? Para quê tratar mal as pessoas? Para quê achares que vais subir em cima de alguém? Não ganhas nada com isso. Olha as coisas tão bonitas que existem no mundo. Olha as crianças. Essa música é esperança. É sobre fazer o bem.”
As restantes faixas do filme são da autoria de Eliana, como Abernuncia, que compôs com Henrique Silva, e que acompanha as emoções de Rosinha. Há ainda Mornabeza, e Rebolice na Rebolêra. “Foram músicas que escrevemos mesmo para o filme. Para ajudar o filme também a ajudar a Rosinha.” As três canções vão constar no EP que a cantora prevê lançar “até ao final deste ano”.
Locarno? “Estou mais nervosa porque é em casa”
As orquídeas brancas que romperam pela porta falaram-lhe mais ao coração do que as palavras Festival de Locarno. “Estava sempre a reclamar que ele nunca me deu flores. E o Basil, do nada, chega a casa com flores e um sorriso daqui aqui [gesticula]. Fiquei mais contente com ele me ter dado flores do que com saber que íamos para Locarno (risos). Não tinha noção do que era Locarno”, conta Eliana Rosa, recordando a estreia mundial de Manga D’Terra, no Concurso Internacional do Festival de Cinema Locarno (onde a anterior longa-metragem do realizador luso-suíço, O Fim do Mundo, já tinha sido mostrada em 2019).
A poucos dias de Manga D’Terra se mostrar numa sala de cinema em Portugal — a estreia comercial acontece a 6 de junho — a jovem denuncia uma preocupação maior do que aquela que sentiu ao pisar um dos mais importantes festivais de cinema do mundo. “Estou mais nervosa porque é em casa”. “É povo difícil”, acaba por dizer. “O meu objetivo é que o meu povo, os cabo-verdianos, tenham orgulho em mim.”
A primeira projeção do filme no festival IndieLisboa, que acontece este sábado, 25 de maio, às 21h25, na Culturgest, em Lisboa, é seguida por um concerto no B.Leza, clube no Cais do Sodré, com músicas do filme. Apesar de estar a celebrar a sua estreia enquanto atriz de cinema, admite que é o palco que a faz tremer. “A música faz-me levantar da cama, é a minha vida. Cantar é que faz o meu coração bater forte mesmo. O meu coração bate mais forte quando canto. Fico muito nervosa quando vou subir a palco”.
Com um primeiro filme no currículo, olha para a profissão de atriz como “um complemento”. “Podemos dizer que sou uma cantora que representa”, diz sem descartar possibilidades. “Também quero seguir a minha vida neste rumo. Quero ser versátil, quero fazer tudo. E Porque não fazer tudo?”