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Uma busca com a palavra-chave “dinossauros” numa livraria online portuguesa gera mais de duas centenas de resultados, mas, com três excepções, todos se destinam a crianças. Das três excepções, uma não é sobre dinossauros (apenas os menciona no título), outra é Dinossauros de Portugal, de Silvério Figueiredo, outra é A ascensão e queda dos dinossauros: Uma nova história de um mundo perdido, de Steve Brusatte (n.1984), professor de paleontologia de vertebrados na Universidade de Edinburgh e uma das maiores autoridades em dinossauros do nosso tempo, que acaba de chegar às livrarias nacionais, com tradução de Rui Azeredo e edição da Contraponto.

A capa de “A Ascenção e Queda dos Dinossauros”, de Steve Brusatte (Contraponto)

A edição americana original, The rise and fall of the dinosaurs: A new history of a lost world, surgida em 2018, foi um bestseller do New York Times e foi cumulada de louvores pela crítica – o Washington Post classificou-o como “uma obra-prima da divulgação científica”, o Sunday Times afirmou que “era o melhor livro sobre o assunto desde a década de 1980” e elegeu-o Livro de Ciência do Ano, a Scientific American saudou-o como “a biografia definitiva dos dinossauros” e a New York Times Book Review proclamou que “Brusatte consegue, com maestria, ressuscitar ossos mortos de dinossauros”.

A edição portuguesa de obras de divulgação científica na área das ciências da terra e das ciências biológicas é tão rarefeita que qualquer leitor se alegraria, à partida, com o mais modesto livrito sobre paleontologia, mas, tratando-se de uma obra universalmente recebida com superlativos, haveria, em princípio, motivos redobrados para festejar.

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Steve Brusatte

Lagartos emplumados

A ascensão e queda dos dinossauros tem algumas qualidades, mas, infelizmente, concentram-se no capítulo “Os dinossauros levantam voo”, que explica de forma convincente como, entre os Paraves, um grupo de espécies de dinossauros “mais pequenas, mais ágeis e mais espertas, a maioria das quais do tamanho de humanos ou mais pequenas”, entre as quais estão o Deinonychus, o Velociraptor e o Zhenyuanlong, foram ocorrendo processos evolutivos que deram origem a um sub-grupo, os Avialae, de onde viriam a evoluir as 10.000 espécies de aves que hoje conhecemos.

Reconstituição Deinonychus antirrhopus

Embora a nomenclatura e o âmbito dos Paraves e dos Avialae, bem como a fronteira entre dinossauros e aves, sejam objecto de debate entre os especialistas, não há dúvida de que as aves são hoje os únicos sobreviventes do em tempos vastíssimo grupo dos dinossauros e Brusatte esboça uma sequência congruente de eventos evolutivos que conduziram à conjugação de características marcantes que separam as aves dos restantes animais modernos: “penas, asas, bicos sem dentes, fúrculas [osso resultante da fusão das clavículas esquerda e direita], cabeças grandes equilibradas sobre um pescoço em S, ossos ocos, patas tipo palito”, pés com três dedos, sangue quente, pulmões com capacidade de oxigenação reforçada (ditos “de fluxo interno”), deposição de ovos em ninhos com os juvenis a serem alvo de cuidado dos progenitores. Algumas destas características já estavam presentes nalgumas espécies de dinossauros há muito, mas seriam necessários 100 milhões de anos para que confluíssem e gerassem a primeira ave, o que terá ocorrido há cerca de 150 milhões de anos – o registo fóssil mais antigo que nos chegou de uma ave é o da Archeopteryx litographica.

Reconstituição de Archeopteryx litographica perseguindo um pequeno Compsognathus

Brusatte faz questão de realçar que “ao longo das dezenas de milhões de anos em que os dinossauros desenvolviam, uma a uma, as características típicas das aves, não houve […] um objectivo maior. Não houve qualquer força a guiar a evolução para tornar estes dinossauros ainda mais adaptados aos céus. A evolução trabalha apenas no momento, seleccionando de forma natural as características e os comportamentos que tornam um animal bem-sucedido num tempo e lugar particular”.

As penas, antes de se terem sofisticado e convertido em peças essenciais ao voo, eram estruturas bem mais rudimentares: uns simples filamentos, uma penugem desempenhando funções de “ostentação, material de isolamento, protecção a ovos e bebés”. Quanto às asas, desenvolveram-se inicialmente “em dinossauros demasiado grandes e incapazes de voar”, nos quais desempenhavam o papel de “estruturas de exibição” no acasalamento. Como escreve Brusatte, “voar foi algo que simplesmente aconteceu quando chegou a altura apropriada. Se a evolução fabrica um caçador pequeno, de braços compridos e cérebro grande, dotado de penas para se manter quente e asas para atrair parceiros, não leva muito tempo para que o animal comece a bater asas no ar”. Os primeiros voos terão sido certamente desajeitados, mas foram “um ponto de viragem na história da vida. Quando a evolução conseguiu por fim ‘montar’ um pequeno dinossauro alado voador, foi desbloqueado um grande potencial”, o que levou a que as “aves iniciais [começassem] a diversificar-se a um ritmo louco”, como atestam os registos fósseis.

Reconstituição de Eoconfuciusornis, que viveu no que é hoje a província de Heibei, na China, há cerca de 130 milhões de anos. Ao contrário do Archeopteryx, o Eoconfuciusornis já não possui dentes

A galeria de selfies de Brusatte

Já seria um desafio encaixar a longa e complexa história dos dinossauros em apenas 400 páginas, mas Brusatte decidiu entrelaçar no livro três narrativas diferentes: a história dos dinossauros, a história da paleontologia e da descoberta dos fósseis de dinossauros e a sua auto-biografia. Não há dúvida de que, apesar da relativa juventude, Brusatte já deu contributos inestimáveis para a paleontologia, mas os permanentes apartes sobre a sua vida pessoal e os seus sucessos científicos só servem para fragmentar e obscurecer a apreensão do que realmente interessa. Mas não se pense que o livro é uma colecção de selfies solitárias documentando a carreira de Brusatte – este tem carácter sociável e generoso e faz questão de retratar, com detalhes bizarros e pueris, os seus parceiros de escavações e descobertas, quer sejam profissionais ou amadores.

O Parque Estadual de Hell Creek (Montana, EUA) é um dos mais ricos repositórios de fósseis de dinossauros do Cretácico Superior e tem sido intensamente escavado e estudado por Brusatte e pelos seus colegas

Assim, ficamos a conhecer Grzegorz Niedżwiedzki, um jovem “com um cabelo à escovinha tipo militar, já a ficar com entradas, como eu. Tinha os olhos escuros, e estavam semi-cerrados. Uma leve camada de pelos da barba por fazer cobria-lhe o rosto, e parecia um pouco mais escuro do que a maioria dos polacos que eu conhecia. Quase bronzeado. Havia nele algo de vagamente sinistro […]”; Ricardo Martínez, que “era relativamente parecido com o Dude de O Grande Lebowski: cabelo emaranhado selvagem, barba espessa à volta da boca e um conceito interessante de moda”; “[Randy] Irmis é um introvertido de óculos, mas uma fera enquanto geólogo no terreno; [Sterling] Nesbitt é um especialista de anatomia fóssil que usa sempre um boné de basebol e cita séries de comédias televisivas; [Nate] Smith é um habitante de Chicago sempre bem vestido que gosta de aplicar a estatística para estudar a evolução do dinossauro; e [Alan] Turner, um especialista em construção de árvores genealógicas de grupos extintos, é chamado de Pequeno Jesus pelas suas madeixas onduladas, barba grande e estatura mediana”; “Mark Wilkinson, um geólogo endurecido pelas idas para o terreno, cujo rabo de cavalo e barba mal-arranjada lhe davam o aspecto de um hippie, e Tom Challands, um ruivo robusto”; “Hans-Dieter Sues, um paleontólogo nascido na Alemanha com um sorriso sempiterno e um riso contagioso”; Greg Erickson, que “fala com o ritmo de um atleta do ensino secundário, e muitas vezes é isso mesmo que ele parece, com um boné de basebol e uma cerveja na mão”; John Hutchinson, que “aparece com frequência como comentador em documentários televisivos, muitas vezes envergando a sua querida camisa roxa, que estranhamente não destrói câmaras com o seu brilho”; Thomas Carr possui “o sentido de moda de um pregador dos anos 1970 e tem alguns dos maneirismos de Sheldon Cooper de A Teoria do Big Bang […] Usa sempre fatos de veludo pretos, por norma com uma camisa preta ou vermelha por baixo. Tem patilhas compridas e farfalhudas, e cabelo fino tipo esfregona. Na mão usa um anel de prata com uma caveira. Adora este tipo de coisas e tem uma obsessão duradoura por absinto e pelos The Doors”; Mike Henderson, “um rapaz do norte do Illinois entroncado e de falinhas mansas” e o seu amigo de infância, “um exuberante e espalhafatoso rapaz muito sociável chamada Scott Williams”, que, “a par de livros de banda desenhada e filmes de super-heróis, em criança […] adorava dinossauros”, e tinha “barbicha, constituição entroncada e cerrado sotaque de Chicago”; Helmuth Redschlag, é “um tipo baixo e excêntrico” cujo nome “evocaria um imperioso general da Prússia, mas ele era do centro da América […] Todas as noites fazia uma festa até de manhã com os amigos – regalando-se com filet mignon e queijo italiano importado, bebendo cerveja belga frutada ao som de disco”.

Tipos de dinossauros cujos fósseis que têm sido descobertos na Formação de Hell Creek

Na Universidade Federal de Goiás, no Brasil, Brusatte encontrou “André, um comediante barrigudo e animado que regressara à escola depois de ter experimentado outras carreiras – produtor de papaias, taxista e, uns poucos anos antes, capataz num rancho incumbido de retalhar porcos machos à mão e inseminar artificialmente porcas numa daquelas grandes quintas da planície”; Camila, “uma rapariguinha cuja estatura não deixava entrever a sua energia e garra – e aliviava o stress praticando kickboxing nos tempos livres. E, depois, Ramon, um quebra-corações alto e bronzeado que, com as suas calças de ganga justas e cabelo puxado para um lado, poderia ter saltado directamente de um dos telediscos das boysband [sic] brasileiras que parecem estar sempre a passar nos televisores dos restaurantes”. Na Transilvânia, Brusatte junta forças com Mátyás Vremir, “alto e magro, com o cabelo comprido de uma estrela rock e o olhar penetrante de um lobo, [que] tem um forte código de honra pessoal e não aceita bem ser enganado – ou nem aceita sequer – mas se gostar de alguém e respeitar essa pessoa, acompanha-a até ao fim do mundo”.

Reconstituição do Balaur bondoc, um dos dinossauros do Cretácico Superior descobertos pelo paleontólogo Mátyás Vremir

Há ainda Mark Norell, “um surfista de cabelo comprido que adorava Jimmy Page”, que se veste “como uma versão hipster de Andy Warhol (outro dos seus heróis) [e] é dono de uma colecção de antiga arte budista que envergonha muitos museus e leva frigoríficos portáteis para o deserto para poder preparar sushi enquanto trabalha no terreno”; “Jakob Vinther [que] veio da Dinamarca e tem o físico de um viking para o provar; é alto, com cabelo louro arruivado, uma grande barba farfalhuda e uns intensos olhos nórdicos”; e Jingmai O’Connor, que “passa muito do seu tempo não dedicado à ciência a dar voltas pelos hutongs [bairros tradicionais de Pequim], em festas e por vezes a fazer de DJ nas discotecas da moda da subitamente moderna capital da China” e adoptou um “estilo fashionista de licras com estampados de leopardo, piercings e tatuagens, natural na discoteca, mas que se destaca (de uma forma positiva) entre a multidão em padrão escocês e de barba que domina a academia […] É um poço de energia – lançando bocas cáusticas num momento e conversando longa e eloquentemente sobre política no seguinte, para a seguir falar de música ou arte, ou da sua filosofia budista muito pessoal”.

Além destas considerações sobre os seus compinchas, Brusatte mantém-nos a par sobre a conversa fiada que mantém com eles. Por exemplo, eis Helmuth Redschlag explicando o que o faz levantar-se às seis da manhã, após uma farra pela madrugada dentro, para escavar fósseis em Hell Creek, numa região árida do Montana, no pino do Verão: “Faz com que me sinta vivo. O calor. O Sol a incidir, a queimar, a marcar-nos o pescoço e as costas, deixando-nos desejosos de sombra e água – disse-me Helmuth na calma de uma das manhãs, antes de partirmos para o inferno [ao longo do livro, Brusatte usa o trocadilho entre Hell Creek e “inferno” (hell) por três vezes]. ‘Uh huh, uh huh’, assenti, sem saber muito bem como lidar com ele”.

Mais um exemplo de paleo-paleio: “num pub irlandês em Nova Iorque, Nate Smith virou-se para mim, inclinou a cabeça para o tecto e disse-me com uma postura de ousado machismo: ‘A quantidade de pedra que removemos naquele Verão… sim, daria para encher este bar”.

Reconstituição do Metoposaurus, uma salamandra gigante do Triássico Superior. Brusatte, Octávio Mateus e Richard Butler identificaram em 2015, nos concelhos de Loulé e Silves, fósseis de uma espécie até então desconhecida desta salamandra, o Metoposaurus algarviensis

Não há transcrições das declarações dos participantes numa “conferência científica sobre rochas” em San Juan, na Argentina, em que Brusatte participou, mas são providenciados mais detalhes do que qualquer aficionado da paleontologia poderia desejar: “O jantar na última noite foi lendário, como uma daquelas festas caseiras hedonistas num videoclip de rap. Um político local enfeitado com uma faixa que abriu os procedimentos, conseguindo fazer uma observação sarcástica revoltante sobre os atributos físicos das mulheres estrangeiras presentes no público. O prato principal foi um pedaço de carne de vaca, alimentada a erva, do tamanho de uma lista telefónica, empurrado com grandes quantidades de vinho tinto. Depois do jantar, houve dança, ao longo de horas, alimentada com centenas de garrafas de vodka, uísque, brande e uma aguardente local cujo nome não recordo”. É uma pena que a marca da aguardente local não tenha sido retida, pois seria um elemento que iria enriquecer imenso o conhecimento dos leitores sobre dinossauros.

Reconstituição de um Sanjuansaurus, um dos dinossauros que foram encontrados na Formação de Ischigualasto, perto de San Juan, na Argentina. O Sanjuansaurus viveu em meados do Triássico, mas quem beber suficiente aguardente local poderá deparar-se com um a atravessar a estrada

Batman versus Joker

A quantidade de conversa fiada que enche este livro daria para encher vários bares e deixa, inevitavelmente, pouco espaço para informação útil sobre as muitas espécies de dinossauros, que, com excepção do Tyrannosaurus rex, que tem um capítulo só para si, são despachados numa frase (quase sempre mais bombástica do que informativa). Na verdade, ficamos a saber menos sobre a maior parte das espécies de dinossauros mencionadas do que sobre o cabelo, indumentária e outras idiossincrasias dos paleontólogos com que Brusatte se vai cruzando.

Não ajuda nada que Brusatte cultive um registo adolescente, coloquial, sobre-adjectivado e sensacionalista, semeado de piadas falhadas, trocadilhos pueris, piscadelas de olho à cultura popular norte-americana (sobretudo na vertente juvenil e televisiva) e comparações arbitrárias e improdutivas. Por exemplo, os dinossauros “no período que vai entre 230 e 250 milhões de anos no passado” são “uns campónios, enfiados sempre na mesma zona no sul do supercontinente [Pangeia], incapazes de se libertarem – um envelhecido herói do futebol americano do ensino secundário que poderia ter sido alguém se tivesse sido capaz de escapar da sua cidadezinha natal”. O Tyrannosaurus rex é apresentado como “o James Dean dos dinossauros: viveu depressa e morreu jovem”. E Brusatte encena uma confrontação (simplória e tola) entre o herbívoro Triceratops e o carnívoro Tyrannosaurus rex (“Trike versus Rex”) que faz equivaler a “Sherlock versus Moriarty, Batman versus Joker”.

Em Ascensão e queda dos dinossauros, no confronto entre o rigor das ideias e da linguagem e o “engraçadismo”, o segundo vence quase sempre. A abordagem terá sucesso em escolas secundárias e em vídeos curtos para o YouTube, mas quem compra um livro de 400 páginas sobre dinossauros espera muito mais.

Em resultado destas múltiplas distracções, fica muito por explicar: por exemplo, já o livro vai a 2/3 quando Brusatte justifica o que poderia parecer uma omissão gritante: a ausência de qualquer menção aos grandes répteis marinhos do Terciário. Acontece que “nenhum destes répteis eram dinossauros – apesar de muitas vezes confundidos com dinossauros em livros e filmes populares”. E, embora plesiossauros, ictiossauros, mosassauros, notossauros, placodontes, thalattosuchia e thalattosauria tenham sido a contrapartida aquática dos dinossauros e tenham desabrochado numa diversidade de espécies comparável, Brusatte despacha-os num único parágrafo. Sobre os pterossauros (répteis alados, que, tecnicamente, também não são dinossauros) também pouco é dito. A relação evolutiva entre estes diversos grupos de répteis poderia (e deveria) ser explanada num diagrama, mas os livros de divulgação científica parecem ter uma profunda aversão a qualquer tipo de infografia. Num livro de 400 páginas, há apenas uma árvore genealógica dos dinossauros (ultra-simplificada), uma tabela cronológica da era dos dinossauros (ultra-simplificada e com um erro na última coluna à direita) e três mapas (minúsculos) com a disposição das massas terrestres no Triássico, no Jurássico Superior e no Cretácico Superior. Mas entre as “mais de 70 fotografias e ilustrações originais” há várias fotos dos colegas e mentores de Brusatte.

Reconstituição de esqueleto de Dolychorhyncops, um plesiossauro de pescoço curto – uma das muitas espécies de répteis gigantes que dominaram os oceanos do Terciário

Erros, imprecisões, incongruências e tolices

Pg. 23: Descreve-se o esqueleto de um Zhenyuanlong suni como tendo “o tamanho aproximado de uma mula”, mas, quando este surge numa foto na página seguinte, percebe-se que não é maior do que um cão de tamanho médio.

Comparação das dimensões do Zhenyuanlong suni

Pg. 47:“Lucy, o famoso fóssil de África que pertencia a uma criatura tipo humana, que não era um verdadeiro humano, mas um membro da nossa espécie, Homo sapiens”. É um erro indesculpável num livro sobre paleontologia: Lucy era uma Australopithecus afarensis que terá vivido há 3.2 milhões de anos, enquanto o Homo sapiens terá surgido há 300.000 anos.

Pg. 65: Durante o período Triássico, “a região equatorial era extremamente quente e húmida, um inferno tropical que faria o Verão na actual Amazónia parecer uma visita à oficina do Pai Natal”.

Pg. 86: Informa-se que os fitossauros Machaeroprosopus “eram maiores do que uma lancha a motor”, ainda que uma lancha a motor tanto possa ter três metros como 20 metros de comprimento. Este tipo de ambiguidade é recorrente, pois Brusatte tem uma propensão irritante para fornecer as dimensões dos dinossauros sob a forma de comparações vagas (e pueris) com jipes, mini-vans, autocarros e outros veículos.

Pg. 86: Os crocodilomorfos do Triássico “tinham a constituição esguia de uma supermodelo e sprintavam como campeões”.

Reconstituição de Hesperosuchus agilis, um crocodilomorfo que viveu no Triássico Superior, aqui captado num momento de indecisão entre seguir carreira como modelo da Calvin Klein e tentar bater o recorde de Usain Bolt nos 100 metros

Pg. 146: “O alossauro era o Carniceiro do Jurássico, tanto em termos figurativos como literais”. Seria de esperar que um dinossauro “carniceiro” o fosse apenas no sentido figurativo e, afinal de contas, se alimentasse de estegossauros de soja?

Pg. 196: Tenta dar-se a ideia de que os Tyrannosaurus rex morriam todos relativamente jovens – “ainda não se encontrou um indivíduo com mais de 30 anos aquando da sua morte” – mas como ao longo do livro não são apresentadas estimativas da longevidade média de outras espécies, ficamos sem saber se 30 anos é muito ou pouco pelos padrões dos dinossauros.

Pg. 258 e 282: A forma como Brusatte menciona “todo um ecossistema de estranhos dinossauros” e “todo um ecossistema de dinossauros de penas” sugere que, no seu léxico, “todo um ecossistema” equivale a “bué”.

Pg. 291: Os “pulmões extremamente eficientes, de ‘fluxo interno’”, que alguns dinossauros partilham com as aves, “absorvem oxigénio tanto na inspiração como na expiração, uma característica preciosa das aves que providencia o combustível para manterem o seu modo de vida altamente enérgico”. Ora, o combustível das aves e dos restantes animais são os alimentos que ingerem, o oxigénio desempenha o papel de comburente. Isto não é paleontologia avançada, é química básica.

Comparação entre o sistema de sacos de ar proposto para o Majungasaurus e o das aves modernas

Nalguns casos, percebe-se que a tradução adicionou estática à prosa já de si pouco rigorosa de Brusatte:

Pg. 29: “[…] o calor rechaçava no solo da pedreira”. No original lê-se “the heat was bouncing off the quarry floor”, mas nem a frase faz sentido em português nem “rechaçar” equivale a “bouncing off”.

Pg. 45: Os grandes répteis “apartaram-se em duas grandes linhagens, que lutaram uma contra a outra numa corrida de braços evolutiva”. A “corrida de braços” será provavelmente uma “arms race”, isto é, uma “corrida ao armamento”, termo que é usado, em sentido figurado, para denotar a competição darwiniana entre espécies, com cada uma a “desenvolver”, ao longo das gerações, características físicas e comportamentais que lhe dão, momentaneamente, vantagem sobre as rivais, ao que estas “respondem” com novos “aperfeiçoamentos”, e assim sucessivamente.

Pg. 66: A descrição da pirâmide alimentar de Pangeia coloca no topo desta “os receosos dos arcossauros da linhagem dos crocodilos”. A frase não faz sentido e leva a suspeitar que no lugar de “receosos” esteja o adjectivo “fearfull”, que, quando precede um substantivo (neste caso “arcossauro”) não significa “receoso” mas o seu contrário: “assustador”, “temível” – e, com efeito, no Triássico, os arcossauros foram os predadores de topo, até que os dinossauros os suplantaram no Jurássico.

O Saurosuchus galilei, um dos arcossauros que ocupou o topo da cadeia alimentar no Triássico Superior, atingia os 6-9 metros de comprimento e tinha poucas razões para ter receio de outros animais

Pg. 193: O Cretácico Médio não foi um “período de há 25 milhões de anos”, foi um período (não reconhecido formalmente, já que o Cretácico se divide apenas em Inferior e Superior) de 25 milhões de anos de duração, com início há c.110 milhões de anos e término há c.85 milhões de anos.

Um nerd, escrevendo para nerds

A palavra inglesa “nerd”, que não tem tradução para português, designa alguém que devota uma atenção obsessiva, minuciosa e exclusiva a assuntos que geralmente não interessam a maioria das pessoas (podem ser séries de anime, kits à escala de aviões da Luftwaffe, bandas góticas estónias, modelos da Battlestar Galactica, a geografia da Terra Média). Claro que todo o trabalho e conhecimento altamente especializado, como seja a investigação científica, comporta algum grau de afunilamento, mas há uma distinção crucial entre a paixão e dedicação a um tema e, por outro lado, a “nerdiness”: o nerd é incapaz de compreender que as outras pessoas não partilham da sua monomania e que esta, quando se manifesta de forma exuberante, é maçadora ou até assustadora para os outros.

Steve Brusatte está convencido de que toda a gente é louca por dinossauros – “os tiranossauros passaram de pequeno actores para os famosos predadores de topo que todos adoramos” (pg. 187); “ao contrário da maioria das crianças ocidentais, Xu não nutria interesse por dinossauros quando era novo” (pg. 292) – e que os que ainda não o são, irão ser convertidos ao ler este seu empolgante manifesto.

T-Rex At Lost World Dinosaur Park

Parque de dinossauros Lost World, Santa Cruz, Califórnia, 1972

Como é usual nos nerds, o registo de Brusatte é histriónico, sensacionalista e hiperbólico (os dinossauros não são simplesmente herbívoros ou carnívoros, são “comilões de plantas” ou “devoradores de carne”), o que tem o efeito de cansar rapidamente o leitor (não-nerd) e de provocar um anti-clímax: quando, no final do livro, chega a altura de descrever o cataclismo planetário que marcou o final do Cretácico, já há muito que Brusatte gastou o fogo-de-artifício verbal de que dispunha.

Não é o único anti-clímax do livro, pois Brusatte recorre por mais de uma vez à indução de um crescendo de tensão em torno de um aspecto enigmático da história dos dinossauros que, em vez de se resolver na aguardada revelação, redunda na admissão por Brusatte de que a ciência ainda não tem resposta para o mistério. Num livro em permanente estado de sobre-excitação, até uma banal gaivota serve para criar tensão e temor: “o seu bico parece uma arma terrível capaz de causar muitos danos. Consciente de que estou entre paredes e a salvo de qualquer mal, dou um toquezinho no vidro”. É a versão nerd de The Birds, de Hitchcock…

Outra marca da “nerdiness” é atribuir aos objectos da sua obsessão características e sentimentos humanos: “A força do Rex assentava na sua cabeça. Era uma máquina assassina, uma câmara de tortura para a sua presa e, no geral, uma máscara de maldade […] Mais de 50 dentes afiados como facas formavam um sorriso sinistro”; “o pobre dinossauro com bico-de-pato foi maldosamente atacado por um tiranossauro”; o Balaur bondoc, um pequeno dinossauro carnívoro descoberto na Transilvânia, era “menos tirano do que assassino”. Se esta antropomorfização é desajustada quando aplicada a animais com os quais convivemos, é completamente absurda em criaturas das quais, nalguns casos, sobraram apenas uma dúzia de dentes, um fragmento de úmero e três vértebras.

A obsessão dos nerds com o seu tema faz com que percam contacto com a realidade exterior e acabem mergulhados na auto-referencialidade: após descrever ao longo de várias páginas a geografia, o clima, a flora e a fauna do Jurássico, Brusatte conclui “O planeta era abrasador e os dinossauros podiam mover-se por onde quisessem. Era o verdadeiro Parque Jurássico” (pg. 153). É um raciocínio com o rabo na boca, digno da idade mental de sete anos: o Parque Jurássico do filme homónimo foi assim baptizado por (pretender) ser uma recriação moderna do Jurássico, certo?

O primeiro “Parque Jurássico” da história, o Crystal Palace Dinosaurs, foi inaugurado em 1854 nos terrenos do Crystal Palace, em Londres. Ilustração por George Baxter, 1854

Na pg. 203, Brusatte volta a flutuar entre realidade e fantasia: “O T. rex é uma celebridade – o assombrador de sonhos – mas era também um animal real”. Qual é a necessidade de vincar que o Tyrannosaurus rex foi um animal real, para mais a quem já avançou (a custo) até meio de um livro sobre dinossauros? Todavia, também Peter Brannen, no igualmente pueril e farfalhudo Os fins do mundo: Apocalipses vulcânicos, oceanos letais e a nossa demanda para compreender as extinções em massa (ver Como o mundo esteve para acabar por cinco vezes), sentiu necessidade semelhante: “O Tyrannosaurus rex, e digo-o porque é fácil esquecermo-nos disto, foi um ser vivo real; um animal que vivia, respirava”. O Tyrannosaurus rex recebe uma atenção desproporcionada pela parte de Brusatte, que não só lhe consagra todo um capítulo como se refere a ele em termos que nada têm de objectivos ou científicos: os tiranossauros são “terrores transcendentes que incendeiam a nossa imaginação” e o T. rex é “o único e genuíno rei” (os fãs de Elvis Presley vão pedir recontagem de votos).

“Em breve tudo iria correr terrivelmente mal”

No prefácio da edição portuguesa de A ascensão e queda dos dinossauros, o paleontólogo Octávio Mateus, da Universidade Nova de Lisboa (parceiro de Brusatte na descoberta da salamandra Metoposaurus algarviensis), defende que “o genial estilo de escrita [de Brusatte] combina a história da ciência e a ciência com histórias numa fluidez que nos prende como se de um romance ou uma história de aventuras se tratasse”.

O livro de divulgação que se “lê como um romance” é um dos clichés da indústria livreira e, neste caso, tem um fundo de verdade, pois A ascensão e queda dos dinossauros inclui dois trechos que se lêem como um mau romance. A primeira incursão num registo “literário” ocorre no início do capítulo “O rei dos dinossauros” e assume o ponto de vista de um Triceratops que assiste, do outro lado do rio, a um ataque de um T. rex a um grupo de Edmontosaurus: “A cabeça disparou primeiro. Dentes contra carne. Ossos estilhaçaram [sic] conforme o pescoço do herbívoro foi rasgado, com sangue a jorrar para a água […], os dentes partidos do predador a chover do céu ao atingir a sua vítima […] O Triceratops observou com espanto quando quatro outro brutos de cabeça grande e dentes afiados […] saltaram para a margem do rio. Formavam um bando; o atacante era o líder, e agora os subordinados iam partilhar da sua vitória. As cinco criaturas esfaimadas resfolegaram e rosnaram, bicando-se e mordendo os rostos uns dos outros enquanto disputavam os melhores nacos de carne”. É de presumir que era nesta cena em que a revista Nature estava a pensar quando elogiou A ascensão e queda dos dinossauros como “narrativa científica da mais visceral”.

Depois deste florilégio, é fácil prever que Brusatte não resistirá a voltar a ser “literário” na descrição no Grande Cataclismo – a colisão com a Terra do asteróide que gerou a cratera de Chicxulub. E, com efeito, na pg. 301: “Quando um bando de Rexes [sic] despertou naquela manhã há milhões de anos, naquele que viria a ser o derradeiro dia do período Cretácico, tudo parecia normal […] Os chilreios e piados [das aves] eram belos, uma sinfonia do alvorecer que podia ser escutada por todas as outras criaturas da floresta e das várzeas: anquilossauros couraçados e paquicéfalos de cabeça abobadada a esconder-se nas árvores, legiões de dinossauros tipo bico-de-pato a iniciar o seu pequeno-almoço de flores e folhas […] Tantas espécies [de dinossauros] a viver em harmonia, sem uma ideia de que em breve tudo iria correr terrivelmente mal”.

A reconstrução de um esqueleto de T.rex no museu de História Natural Carnegie, em Pittsburgh

A descrição da véspera do “dia fatídico” por Peter Brennan em Os fins do mundo encaixa-se aqui na perfeição: “Ao cair da noite nas últimas semanas do Cretácico, os hadrossauros que se preparavam para um sono intermitente terão olhado nervosamente para esta nova estrela esquisita, que projectava sombras de noite cerrada no chão da floresta. Tinham atrás de si centenas de milhões de anos de vidas de dinossauros e, não obstante, restavam-lhes apenas algumas horas preciosas”.

Após pintar com desvelo um panorama idílico – uma pérola do “dinosaur kitsch” – Brusatte engrena no gore apocalíptico e brinda-nos com Tyrannosaurus a voar como “bolas de flippers de sete toneladas” e “carnificina por todo o lado”; há um momento de aparente acalmia, mas de repente “as nuvens começaram a uivar. A fuligem na atmosfera começou a rodopiar em tornados, e então – vush – o vento fustigou as planícies” e o leitor tem de aturar mais duas páginas de doom metal com o volume no máximo.

A ascensão e queda dos dinossauros em nada contribui para colmatar a gritante falta de livros sobre dinossauros para leitores adultos no panorama português, mas irá certamente encontrar eco junto dos “dinosaur nerds”, quer os de grau 1, que usam t-shirts e canecas com dinossauros, quer os de grau 2, que também têm rolos de massa com motivos “dinossáuricos”, pimenteiros e saleiros em forma de Triceratops e velas aromáticas com a forma de um ovo de dinossauro recém-eclodido.