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A noite dos Óscares é uma liga de campeões

O melhor filme de Hollywood decide-se numa final a oito que fica para a história. Não há clássico como este e Rui Miguel Tovar atribui um craque a cada fita nomeada.

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“Brooklyn” — Futre

David Cannon/Allsport

Nem é preciso ler mais de duas linhas. Nick Hornby é o mais fervoroso adepto do Arsenal dos nossos tempos. Ponto. Quem folheia Fever Pitch sabe do que estamos a falar. É o que dá, a bola nos livros. Já Colm Tóibín é quem escreve Brooklyn, agora na tela com a realização de John Crowley. Neste livro não há bola? Bom, vejamos. É a história de Eilis Lacey (Saoirse Ronan), nascida e criada na minúscula cidade irlandesa Enniscorthy. Para sair daquele ram-ram, Eilis faz-se à vida e emigra. Em Brooklyn (EUA), encontra uma comunidade irlandesa à sua medida. Tudo corre às mil maravilhas até que uma trágica notícia a faz voltar para casa. Lá, tem dificuldade em ajustar-se. Culpa de uma mentalidade mais tacanha, própria de uma comunidade conservadora. Com estes ingredientes, Eilis emigra de novo. E, agora, é de vez. Como Futre.

“Quando fui do Montijo para o Sporting, só tinha 11 anos e ia todos os dias de barco. Demorava uma hora para ir e outra para voltar. Com 14 anos, passei um ano inteiro no centro de estágio, em Lisboa. Numa noite em Agosto de 1983, o Venglos lançou-me e entrei na segunda parte [5-1 ao Penafiel]. Difícil imaginar um palco mais emblemático e perfeito que Alvalade para me estrear pelo Sporting. E também pela selecção nacional. Ganhava 70 contos [350 euros] por mês no Sporting e o FC Porto ofereceu-me 27 mil contos em três anos [134 mil euros] mais carro e casa. Falei com o Sporting e pedi-lhes 18 mil contos em três anos, 6 mil por ano. Eles disseram-me que estava louco e eu fui para o FC Porto, alegando falta de condições psicológicas.”

É campeão europeu e emigra para o Atlético Madrid, onde se faz mais jogador ainda, líder de balneário e capitão de equipa. Em 1992, levanta a Taça do Rei (2-0 ao Real Madrid, em pleno Santiago Bernabéu). No ano seguinte, Futre volta para casa. “Os problemas económicos do Atlético Madrid eram imensos e a ideia era sair para Portugal, devido ao limite de estrangeiros em Espanha. Apareceu o Sporting e chegámos a acordo, mas o Sousa Cintra [presidente] não apareceu com o dinheiro. Então concretizou-se o negócio com o Benfica. Mas aquele balneário, uuui, era muito complicado. Cheio de grupinhos e muito tenso, devido aos quatro meses de salário.” Meio ano é o suficiente. Futre decide o dérbi (1-0), faz um dos jogos da sua vida (5-2 ao Boavista no Jamor) e volta a emigrar. De vez.

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[leia aqui a crítica a “Brooklyn”]

“Ponte dos Espiões” — Sparwasser

AFP/Getty Images

O homem é o maior. É Big. Tom Hanks, claro. Larga a bola Wilson, sai da ilha e faz-se à vida fora da FedEx. Agora é um advogado de seguros chamado James B. Donovan e defende Rudolf Abel (Mark Rylance), um espião da URSS capturado nos EUA. Quase ao mesmo tempo, o piloto Francis Gary Powers (Austin Stowell) é retido pelos soviéticos. Uyyyy, isto é jogo para empate. Ou não. Chamem o homem. O maior. O Big. E lá vai ele a Berlim fazer um acordo para a troca de Abel por Francis, no meio da turbulência provocada pelo levantamento do muro.

De um lado, a RFA. Do outro, a RDA. No meio, Jürgen Sparwasser (que literalmente significa poupança de água), autor do histórico 1-0 no Mundial 74. A partir do momento em que bate Maier para o 1-0 da RDA sobre a RFA, em Hamburgo, a sua vida muda. “Depois desse golo, fui assobiado nos estádios da RDA. Depois desse golo, fui utilizado como bandeira do regime comunista e impediu-me, por exemplo, de aceitar uma proposta do Bayern Munique. Depois desse golo, fui a cara da RDA, como filho de uma família trabalhadora com a obrigação de desprezar o luxo e o dinheiro. Depois desse golo, usaram-me como pessoa. Eu era professor na Universidade Pedagógica de Magdeburgo e queria fazer a tese de doutoramento. No final dos anos 80, a contestação estava cada vez mais forte e eles [do regime] ofereceram-me o cargo de treinador do Magdeburgo [com fortes conotações políticas]. Recusei e eles impediram-me de fazer a tese. Eles nunca se importaram com o nosso querer, desejo ou pensamento. E eu só queria reconhecer-me todas as manhãs ao espelho. A situação estava insustentável.”

[leia aqui a crítica a “Ponte dos Espiões”]

“Perdido em Marte” — Ronaldo Fenómeno

Ronaldo no mundial de 98

AFP/Getty Images

Cabuuuuum, lá vem tempestade. Das grandes. Até a barraca abana. Todos se salvam, menos um: Mark Watney (Matt Damon). Está desaparecido e não dá sinais de vida. E agora? Estamos em Marte. Numa missão xpto. E agora?, insistimos. A tripulção do Ares III tem de voltar à Terra e o pobre do Matt Damon é deixado ali ao abandono. É como dado morto. Um pouco à imagem de Ronaldo. Quem?

Dez golos em 24 jogos. Estamos a falar de Ronaldo fenómeno. E estamos a falar do balanço de três épocas: 1999-2000, 2000-01 e 2001-02. O avançado lesiona-se duas vezes nesse período e passa mais de ano e meio deitado numa cama ou dentro de clínicas de recuperação. Será ele um dos convocados para o Mundial? Quer dizer, a concorrência é feroz para o ataque: temos Jardel mais Romário, a figura do povo e até do presidente Fernando Henrique Cardoso. O primeiro é Bota de Ouro (prémio para o mais eficaz na Europa) ao serviço do Sporting, o segundo é o melhor marcador do campeonato brasileiro 2001.

A expectativa é imensa no dia em que Luiz Felipe Scolari entra na sala da CBF e divulga os 23 convocados. Saem os guarda-redes, depois os laterais, a seguir os centrais, os médios e finalmente os avançados: Ronaldo, Edilson e Luizão. O mundo desaba e os críticos atacam sem dó nem piedade Felipão. Acusam-no de tudo e mais alguma coisa. Lembram a medíocre Copa América-2011 (“podem colocar-me no Guiness Book”, desabafa Scolari depois de eliminado nos quartos-de-final pelas Honduras) e ainda a fraca campanha na qualificação (o Brasil só se apura na última jornada, com o 3-0 sobre a Venezuela).

Contestado, Scolari não pestaneja. “Esta é a minha família e é bom que todos nós puxemos para o mesmo lado com o objetivo de chegarmos ao penta”, reage. Firme seguidor do princípio dos três “erres” (Rivaldo, Ronaldinho e Ronaldo), nem se deixa abalar pela lesão do capitão Emerson na véspera do arranque do primeiro Mundial disputado na Ásia e a dois (Coreia do Sul/Japão). A braçadeira salta para Cafu e vai ser o lateral a levantar a taça. Isso mesmo, o Brasil é penta com uma campanha sem qualquer deslize: sete vitórias em sete jogos.

Scolari sabe-a toda. Ronaldo também, com oito em seis jogos, com direito a bis na final contra a Alemanha, com ajuda de Kahn no 1-0. Terminado o jogo, Ronaldo não esquece o guarda-redes e vai confortá-lo. Campeão moral e não só. Afinal, Ronaldo fatura o título de melhor marcador do torneio. E ultrapassa aquela barreira dos seis golos, inquebrável desde 1974 (Lato-7).

[leia aqui a crítica a “Perdido em Marte”]

“A Queda de Wall Sreet” — Cruijff

O patrão, em qualquer terreno, aqui no Ajax

COR MULDER/AFP/Getty Images

Que cambalacho. É só dinheiro para aqui, ações para ali, aforros para acolá etc e tal, entre Michael Burry (Christian Bale), Jared Vennett (Ryan Gosling) e Mark Baum (Steve Carell). Às tantas, lá aparece Ben Rickert (Brad Pitt), uma espécie de guru em Wall Street. Ora bem, a palavra chave é guru. Intimimamente ligada a Johan Cruijff. Esse mesmo, o revolucionário.

E não, não é porque nasce a 25 de Abril (de 1947). Ajax, Barça e Holanda: onde quer que vá, Cruijff é um mestre na arte do ofício. Domina a bola como poucos, é elástico como ninguém (aquele gesto de bailarino, com a perna esticada, a encostar a bola para o golo num Atlético Madrid-Barça é divinal) e é influente sem igual. Qualquer que seja o ranking, o avançado é invariavelmente eleito um dos cinco melhores de sempre, ao lado de Pelé, Maradona e Di Stéfano.

Recomecemos: Cruijff é um revolucionário. Prova-o cada momento em que passa dentro de campo, com a classe dos predestinados. Inventa até uma finta, a de driblar o adversário com o calcanhar ao mesmo tempo que gira sobre si mesmo. É infalível, todos caem, tropeçam ou perdem terreno. No quadradinho seguinte, é vê-lo (a ele, Cruijff) a avançar para o seu meio-campo, a cumprimentar os colegas, como se nada fosse. Por muito genial que fosse o golo, Cruijff não se deixa ficar por aquele momento. Quer sempre mais, ambiciona a perfeição. É um fenómeno, sem igual. Daí as três Bolas de Ouro, como Platini e Van Basten. Como homem do futebol, estende a sua relação com a bola para o banco, como treinador do Ajax (vencedor da Taça das Taças-87) e Barcelona (campeão europeu com o Dream Team em 1992).

Ainda hoje, é a referência de qualquer Barcelona. Seja o de Rijkaard, o de Guardiola ou de Luis Enrique. Todos, todos, mas todos mesmo sem excepção, têm a marca do guru Cruijff. Porquê? É ele quem institui o sistema táctico 4-3-3 para todas as camadas jovens. Do início dos anos 90 até hoje, o Barça é a equipa mais dominadora do planeta, com cinco Ligas dos Campeões (mais uma que o Milan).

[leia aqui a crítica a “A Queda de Wall Sreet”]

“Mad Max” — Maradona

Bola sobre pibe, pibe com bola; ou então são apenas um

JORGE DURAN/AFP/Getty Images

A sinopse é bem simples, não tem nada que saber: Max Rockatansky (Tom Hardy) é perseguido continuamente pelo seu passado e só depende de si mesmo para sobreviver. Uau, isto é tão Diego Maradona 1986. Quer dizer, aquela Argentina é assim pró fraquinha. Valdano tem nome mas é assim-assim. Tal como Burruchaga. Brown. Pumpido. Giusti, Olarticoechea. Enrique. Batista. Em vez de estarmos aqui a falar disto e daquilo, vamos directos ao assunto. Maradona leva a Argentina às costas. E tudo começa naquele inesquecível 2-0 à Inglaterra. É o golo do século XX. O primeiro é Peter Beardsley. “O primeiro toque dele é sublime porque nos deixa, a mim e ao Peter [Reid], sem reacção. O que ele fez com aquele jogo de pés naquela fracção de segundo arrumou-nos, sem misericórdia. Foi um toque de classe como nunca vi até então, e só voltei a ver com Zidane. A roleta. O Diego é que a inventou, naquele instante. O Zidane aperfeiçoou-a, dou isso de barato, mas o inventor foi Maradona. E à minha frente.”

Peter Reid tenta apanhar Maradona mas… “Os jogos desse Mundial eram a horas tremendas. À hora de almoço, no pico do calor. Esse não fugiu à regra. Aquele estádio estava um forno e eu não me lembro de correr tanto atrás de alguém como naqueles segundos. Nunca o apanhei. Às tantas desisti. E o Diego com a bola controlada!”

Terry Butcher é driblado por dentro. “Quando o vi arrancar, pensei para mim ‘alguém o vai parar, não vai?’ Depois aproxima-se de mim e eu penso ‘eu vou pará-lo, não vou?’, mas ele dá-me a volta com um jogo de cintura e a bola colada ao pé. Parecia um ioiô, que lhe obedecia. Ainda pensei ‘agora o Fenwick’, que era um defesa forte na marcação que raramente se deixava enganar, ‘vai pará-lo, não vai?’ e não é que Diego passa por ele como se nada fosse? No fim ainda fui de carrinho a tentar impedir o golo, mas ele foi mais rápido que eu. Again!”

Terry Fenwick estica o braço mas no way. “Nunca pensei que alguém com a bola controlada conseguisse correr mais que os outros. Ele passou por mim como se nada fosse e o incrível desse lance é que ficou na cabeça de toda a gente. Em 2006, estou eu tranquilo da vida, na Jamaica, de férias, quando o dono do hotel reconhece o meu nome a fazer-me o check-in. Pergunta-me se sou quem ele julga que sou, digo-lhe que sim, ele chama os amigos e começamos ali a falar de todos os pormenores do golo. Só consegui ir para o quarto duas horas depois!”

Peter Shilton é o último a ser fintado. “Durante anos, anos e anos, não consegui rever esse jogo. Por causa da mão de Deus, desse golo irregular que o árbitro [tunisiano Ali Bennaceur] não viu, nem o fiscal-de-linha. Mas claro que aplaudo o 2-0. Uma obra de arte. Dizem que o Messi marcou um igual, mas não podemos comparar o golo. Nem o momento. Nem o adversário. Nem os intervenientes. É tudo diferente, com vitória de Diego. Quando eu lhe saí aos pés ele fez-me uma coisa impossível: fintou-me com a anca. Em corrida! Com a bola controlada! Come on!”

Furiosa (Charlize Theron) bate palmas, Immortan Joe (Hugh Keays-Byrne) nem por isso. A estrada para o título de campeão mundial está estendida. À conta de Maradona, autor dos dois golos à Bélgica nas meias (2-0) e da deliciosa assistência para o decisivo 3-2 da final com a RFA.

[leia aqui a crítica a “Mad Max”]

“Quarto” — Eusébio

Eusébio em 66, contra todos, mesmo sozinho

Getty Images

Dos zero aos cinco. Cinco anos. C-i-n-c-o. Jack (Jacob Tremblay) vive há cinco anos no mesmo cubículo. Quando acorda, dá os bons dias ao lavatório, ao lava-loiça, à banheira, ao frigorífico. A sua realidade é aquela. O seu mundo é aquele. Desconhece outro. Aquele real. O nosso, vá. Sem esta carga dramática, a verdade é que Eusébio não sai de Portugal durante 15 anos. Dos 18 aos 33. Quinze anos. Q-u-i-n-z-e-. O auge da carreira, por assim dizer.

Nesse período, é avançado do Benfica, onde ganha 11 campeonatos, seis Taças de Portugal e uma Taça dos Campeões (5-3 ao Real Madrid). Quando acorda, dá os bons dias a Coluna, Simões, Torres, José Augusto, Costa Pereira, Ângelo, Mário João. A sua realidade é aquela. O seu mundo é aquele. Desconhece outro. O exterior, vá. Onde, por exemplo? Itália. No início dos anos 60, já Eusébio é Eusébio (e não Pelé branco) à conta dos dois golos na tal final europeia com o Real Madrid, a Juventus quer contratá-lo. Há dinheiro e mais dinheiro. Para todos os interessados. Eusébio e Benfica.

Mas não, Salazar bloqueia-o. Conta Eusébio: “Justificou-me o não com o título de Património Nacional e então respondi-lhe desta forma: ‘se sou Património Nacional, porque é que pago imposto, porque é que pago a renda da minha casa?’” Em 1966, Eusébio é o rei do golo no Mundial de Inglaterra, com nove (quatro de penálti) em cinco jogos. Agora é que não dá mesmo para segurar a pantera em Portugal. O Inter de Angelo Moratti contrata-o. Através do Benfica, claro. Eusébio, bom rapaz, sai da sua zona de conforto e visita Milão para escolher uma casa, ali bem perto do estádio.

De repente, a Itália é eliminada pela Coreia do Norte (1-0), na fase de grupos desse Mundial. Os adeptos italianos recebem a selecção com tomates, nabos, alfaces e outros que tais. O descontentamento é total. E estende-se à federação italiana. Fecha-se a fronteira, não há cá estrangeiros em Itália. E Eusébio continua no Benfica. A ganhar qualquer coisa como 50 libras, numa primeira fase. “Cinquenta libras? Eu fazia greve”, diz Johnny Haynes, capitão da selecção inglesa.

[leia aqui a crítica a “Quarto”]

“O Caso Spotlight” — Paolo Rossi

Em 82, Rossi contra o Brasil

Até estala. O caso Spotlight. Primeiro na redacção do The Boston Globe, depois no mundo inteiro. Baseado em factos reais e vencedor de um Prémio Pulitzer, o caso conta a investigação de um grupo de jornalistas sobre os infindáveis casos de abuso sexual de crianças por parte de padres católicos, com a conivência dos superiores. Casos, o futebol é pródigo – que não estes, desta natureza. Um há que muda a história do futebol à escala planetária.

Roberto Pruzzo é o melhor marcador do campeonato italiano em 1980-81. E em 1981-82. Será o avançado ideal para a selecção no Mundial-82? Assim de repente, sim. Acontece que Enzo Bearzot tem outras ideias. Para ele, o futebol é para a frente e bastante simples, com dois alas, um avançado e um médio criativo. “Escolhia os jogadores e deixava que eles jogassem sem impor esquemas tácticos. Ninguém chega ao pé do Maradona e lhe diz ‘joga assim’.” Pronto, lá está: um avançado. Insistimos, não será Pruzzo? Nãããããããã, é Paolo Rossi. Esse mesmo, a figura do campeonato 1979-80.

Dezembro de 1979, dia de Avellino-Perugia num duelo entre o 10.º e o 12.º classificado.

Considerado the next big thing do futebol italiano, Paolo Rossi abre e fecha o marcador mas o Perugia só empata 2-2. Uma semana depois, já em 1980, o Milan recebe a Lazio e ganha 2-1. Até aqui tudo bem. Acontece que Alvaro Trinca e Massimo Cruciano, dois comerciantes de Roma, queixam-se à polícia de resultados combinados. Ou mal combinados. Porque eles (Trinca, gerente do restaurante Le Lampare; Cruciano, vendedor de legumes no principal mercado da capital) apostam noutros resultados num totobola do mercado negro (eis o porquê da definição de Totonero), previamente acertados entre máfia, jogadores e dirigentes. A queixa sai cá para fora no dia 23 de Março de 1980 e é um sarilho dos grandes.

Ainda hoje Paolo Rossi é a cara do Totonero. Então com 23 anos, o avançado italiano é suspenso por 23 meses pela justiça desportiva mas sempre reclama inocência, apoiada nos dois golos marcados em Avellino. É absolvido mais cedo que o previsto, mas não foi a tempo do Euro-80. A sua pena acaba a 30 de Abril de 1982. O que não é pena nenhuma. Rossi ainda faz um golo em três jogos pela Juventus, que o contratara antes do Totonero explodir, e é convocado pelo seleccionador Enzo Bearzot para o Mundial-82, em Espanha, onde passa os primeiros 360 minutos sem um golo para amostra.

Alguns avançados controlam jogos, outros impõem-se pelo físico e ainda há os que são habilidosos. “Pablito” não é nenhum desses. É simplesmente um goleador. Sem se mexer por aí além, não convence imprensa e adeptos, ambos já desesperados. Como é que um jogador que está dois anos suspenso por manipular resultados de jogos da sua equipa (Perugia) e de outras na 1.ª divisão pode regressar a dois meses do Mundial, ser convocado e jogar sempre? A pergunta até é pertinente. E merece o reparo do contestado: hat-trick ao Brasil (última jornada da fase de grupos), bis à Polónia (meias-finais) e um golo à RFA (final). É o melhor marcador da competição, com seis golos. Pruzzo vê-os todos em casa, pela televisão.

[leia aqui a crítica a “O Caso Spotlight”]

“The Revenant: O Renascido” — Bosman

Bosman, primeiro nome Jean-Marc

Fala-se de Tom Hardy, em “Mad Max”. Queremos dizer, fala-se das suas falas. Escassas mas poderosas. Leonardo DiCaprio também é quase monossilábico. E menos intenso. A sua personagem é pouco densa. Atenção, pouco densa para quem apanha de tudo um pouco e de qualquer lado, desde o ataque de um urso ao peso incomportável da morte do seu filho. É muuuuito. Hugh Glass, o personagem mal explorado por DiCaprio, é um explorador e comerciante de peles no meio do território inexplorado do Dakota, em 1823 – o tempo dos índios e suas flechas. Por falar nisso, DiCaprio apanha com uma antes de atravessar de sobrevivência de 320 quilómetros só para vingar a morte do filho. Chi-ça, é muuuuito. Apanha de todo o lado. Mesmo. Um pouco à imagem de Jean-Marc Bosman, o homem mais explorado de sempre do futebol.

Na renovação do contrato pelo RFC Liège, este médio belga de 26 anos recusa assinar, de olho no convite do Dunquerque. Os índios do RFC Liège não vão de modas e reduzem-lhe o ordenado para metade. Ato contínuo, Bosman vai para os tribunais. Primeiro com o Liège. Depois com a federação belga, a UEFA e a FIFA. Cinco anos depois, a 15 de Dezembro de 1995, a Justiça dá-lhe razão e acaba-se a história do passe. A partir daí, todos os jogadores da União Europeia podem transferir-se livremente no final dos respectivos contratos. Uns anos depois, numa acção de charme, Bosman aterra em Portugal e até treina com o Benfica. Bons tempos. A que se seguem outros maus e muuuuuito maus.

“Devo ser o futebolista belga mais famoso do mundo e ninguém me conhece.” Encalhado numa notoriedade sem palmarés, o apelido Bosman vale-lhe 752 euros/mês de rendimento de inserção social por parte do Estado. Vive sozinho nos arredores de Liège. A casa é o único bem material da vitória legal e da carreira perdida. A nova companheira e os dois filhos – Martim de 11 anos, Samuel de cinco – moram num bairro social. Só assim é que a família continua a beneficiar da ajuda do Estado. Como se isso não bastasse, agarra-se ao álcool. É uma travessia no deserto. Mais uma. Que vida. Que viagem.

[leia aqui a crítica a “O Renascido”]

Rui Miguel Tovar é jornalista. “Dicionário Sentimental do Futebol” é o seu mais recente livro. Participa semanalmente no programa Grandiosa Enciclopédia do Ludopédio, na RTP3

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