“O Caso Spotlight”, de Tom McCarthy, nomeado para seis Óscares, aterra nos cinemas numa altura em que cada vez se fala mais dos jornais usando expressões como “produtores de conteúdos” ou “plataformas de informação interactivas”. E vem recordar aos mais esquecidos ou aos que nunca deram por isso que os jornais são um negócio, sim, e muito sui generis, mas também, e acima de tudo, um serviço público. E McCarthy e Josh Singer, seu parceiro de argumento, fazem esse lembrete com uma fita de jornalismo “à antiga”, onde o trabalho é quase todo feito levantando os rabos da cadeira e indo para o terreno falar com pessoas, escavar arquivos, sarrazinar fontes, em vez de ficar na secretária a consultar a Internet, que aqui quase nem é referida, mesmo que a acção se passe no início deste século. O filme é tão “velha escola” que até mostra as rotativas a imprimir o jornal e jornalistas a esquadrinhar anuários e directórios de nomes, munidos de réguas e canetas.

[Veja o trailer de “O Caso Spotlight”]

Em 2001, o diário de referência Boston Globe, publicado na cidade homónima, estava com problemas financeiros. Foi vendido ao The New York Times e ganhou um novo director, Marty Baron, vindo de fora . Baron pegou na notícia dada por uma cronista do jornal, sobre um padre local acusado de molestar sexualmente crianças, e entregou-a à unidade de investigação do jornal, criada nos anos 70 e baptizada Spotlight, para que os seus membros vissem se se tratava apenas de um caso isolado, ou se havia algo mais por trás da notícia. E havia mesmo.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Os jornalistas da Spotlight foram descobrindo que ao longo de décadas, a hierarquia católica de Boston, as autoridades policiais e judiciais e vários políticos tinham encoberto dezenas de sacerdotes envolvidos em assédio sexual a menores e adolescentes. Após meses de investigação, o caso fez manchete no jornal, acabando por causar a resignação do Arcebispo de Boston, o Cardeal Law, em final de 2002, e valer ao “Boston Globe” um Prémio Pulitzer de Serviço Público.

[Entrevista com o realizador, Tom McCarthy]

“O Caso Spotlight” está a ser comparado com “Os Homens do Presidente”, de Alan J. Pakula (1976), sobre o caso Watergate, que terá estabelecido a fasquia de referência para os filmes de jornalismo. Mas a comparação não colhe. “O Caso Spotlight” não tem, nem por sombras, o suspense palpável, a vibraçãozinha paranóica, a atmosfera de thriller nem a sofisticação visual da fita de Pakula. O filme de McCarthy é, pelo contrário, bastante raso do ponto de vista cinematográfico, parecendo mais um daqueles telefilmes acima da média. O realizador quis que ele fosse assim mesmo, anti-bombástico, recatado e serviçal da história, para puxar pela autenticidade da recriação do trabalho jornalístico, pelo ambiente que se vive numa redacção de um grande jornal, pelas relações entre os jornalistas, e entre estes e os vários poderes com que convivem e que enfrentam – e que até podem ter a forma de amigos de longa data –, em vez de se entregar a acrobacias de enredo ou ginásticas visuais.

[Entrevista com Michael Keaton]

Esta abordagem prosaica e pragmática é uma espada de dois gumes, no entanto. Estamos a dar a todo o pé de passada com situações feitas e personagens-tipo do filme de jornalismo de investigação. Ele são as portas fechadas com estrondo na cara dos repórteres por potenciais testemunhas; as cenas passadas em ambientes privilegiados do poder da cidade, onde alguns dos seus representantes, ou paus-mandados, tentam persuadir os jornalistas a abandonar a investigação; ou os excêntricos outsiders que investem sozinhos contra o sistema (o advogado interpretado por Stanley Tucci). Não tinha ficado mal a Tom McCarthy se tivesse acelerado aqui e ali o pulso do filme para o sacudir desta familiaridade eficaz mas monótona, que contagia os actores que fazem de jornalistas, todos inegavelmente estimáveis – Michael Keaton, Liev Schreiber, Rachel McAdams e Mark Ruffalo (a personagem deste, Mike Rezendes, é um luso-descendente) à cabeça – mas com pouca carne dramática para mastigar nos seus papéis.

[Entrevista com Mark Ruffalo]

Se “O Caso Spotlight” sublinha como o enorme peso cultural, social e político da Igreja em Boston, a cidade com mais católicos dos EUA, condicionou e dificultou a investigação do Boston Globe, levada a bom fim mesmo apesar de mais de metade dos seus leitores serem daquela confissão, também não se esquece de recordar que ela também se deveu ao facto de o novo director não ser nascido e criado em Boston, nem ser católico, e por isso não ter nada que o pudesse eventualmente constranger; nem de mostrar que a história dos abusos sexuais cometidos pelos sacerdotes já estava, em potência, nos arquivos do Boston Globe há alguns anos, sob a forma de uma lista de nomes enviada ao jornal por um advogado do Ministério Público, que foi ignorada e arquivada pelo editor da secção Local de então, mais tarde promovido a editor da unidade de investigação Spotlight, Walter Robinson (Michael Keaton). E só fica bem ao filme não o omitir e mostrar como os jornais também borram a pintura.

[Entrevista com o jornalista Michael Resendes, da equipa Spotlight]

A fita termina mostrando uma longa lista de cidades dos Estados Unidos e de outros países onde casos semelhantes aos denunciados no filme terão acontecido. E que nos deixa a pensar que há também filmes para fazer sobre dois temas associados a este. Um, é o da indústria de falsos testemunhos inventados para extorquir dinheiro a uma Igreja Católica (bem como outras instituições) em pânico com escândalos desta natureza; o outro, é o da implantação em crianças e jovens de falsas memórias de violência sexual, por ultra-zelosos psicoterapeutas, psiquiatras ou polícias. Este último deu um excelente telefilme produzido por Oliver Stone e realizado por Mick Jackson em 1995, “O Silêncio dos Acusados”, sobre um caso que, à altura, apenas um solitário jornalista do Los Angeles Times, David Shaw, denunciou, indo mesmo contra a deficiente cobertura feita pelo seu jornal, acabando por receber um Pulitzer. A batalha de Shaw (entretanto já falecido) pelo rigor jornalístico, pela verdade e contra a histeria colectiva, daria um filme tão relevante e actual como “O Caso Spotlight”.

[volte ao início aqui]