“É muito ridículo!”. Eram 00h32 de dia 7 de maio e Paulo Rangel estava a dar uma gargalhada dentro do seu carro. O Audi A4 preto seguia a grande velocidade para Lisboa quando, ao quilómetro 207 da A1, Gonçalo Villas-Bôas, assessor do cabeça de lista da coligação PSD/CDS às eleições europeias, pegou no iPhone e lhe mostrou a primeira página do Público que chegaria às bancas daí a algumas horas.
Na foto de capa, via-se António José Seguro, Francisco Assis, António Costa e Martin Schulz a tirarem uma selfie no Chiado – o líder do PS tinha a boca aberta, o candidato a eurodeputado estava com um sorriso amarelo e o presidente da Câmara de Lisboa aparecia sentado de forma estranha, como se fosse um lutador de sumo. No banco de trás do automóvel, o social-democrata deu outra gargalhada: “Parece um quadro da Paula Rego!”
Rangel estava bem-disposto. Aquele tinha sido o melhor dia da campanha até ao momento. O PSD acabara de comemorar o seu 40.º aniversário numa cerimónia na Alfândega do Porto e Rangel tivera a confirmação de que o partido realmente o apoiava. Ele só precisava de um sinal, mas teve três.
Rangel estava bem-disposto. Aquele tinha sido o melhor dia da campanha até ao momento. O PSD acabara de comemorar o seu 40.º aniversário numa cerimónia na Alfândega do Porto e Rangel tivera a confirmação de que o partido realmente o apoiava.
Um: ficou sentado na primeira fila, que estava reservada aos notáveis e aos incontestáveis. Dois: o vídeo em que aparecia a falar sobre as eleições foi recebido com aplausos (parece evidente, mas não é: as fotografias de Cavaco Silva e Durão Barroso, por exemplo, provocaram um penoso silêncio). Três: quando, no final, Pedro Passos Coelho chamou ao palco os antigos líderes do partido, somou Rangel ao grupo e colocou-o ao seu lado esquerdo, tendo à direita Francisco Pinto Balsemão.
O candidato da Aliança Portugal sabia que aquele era um momento importante. Logo que chegou ao automóvel, pediu que pusessem mais alto o som do rádio, que estava sintonizado na TSF, para “ouvir o que dizem disto”. Tinha sido um dia longo e a viagem não ia ser curta. Às 2h09, no quilómetro 17 da A1, acendeu-se uma luz no painel de controlo do carro com um aviso: “Recomendação de pausa”. Para Paulo Rangel, a advertência não era necessária: já tinha adormecido.
Entre o melhor dia da campanha e o pior dia da campanha tinham passado apenas 24 horas. A 4 de maio, tudo correra mal. Logo de manhã, à saída do hotel em Montechoro, um atraso dos “jotas” do CDS deixou a caravana enervada. Um assessor de Paulo Rangel queixou-se a Nuno Melo: “Tens que comprar um relógio ao teu pessoal…” O candidato centrista resolveu o assunto deixando para trás os que tinham adormecido: “Vamos embora, eles vão lá ter!”
À tarde, na Associação de Beneficiários do Caia, no Alentejo, uma reunião pacífica com agricultores transformou-se num embaraço. No final da sessão, quando os dois candidatos se estavam a levantar para sair, um homem que Paulo Rangel tomou por votante do CDS começou a falar alto contra os políticos e a queixar-se de vários roubos recentes em zonas agrícolas. Rangel saiu da sala a fumegar. Quando passou por Pedro Salgueiro, assessor de imprensa do CDS, disse, sem abrandar: “Vocês têm que ver as pessoas do CDS! Estão aos saltos!”. Já lá fora, protestou contra a “excitação” e os “berros”: “Eu nem sabia que havia roubos! Isso é com a PSP!”
A paragem seguinte também não correu bem. Quando a comitiva chegou a Portalegre, perto das 19h, os “jotas” tinham desaparecido e, com eles, todo o material de campanha. Paulo Rangel estava no meio da rua e não tinha jornais nem canetas para dar aos eleitores. A candidata do distrito, Sandra Capitão, agarrou-se ao telemóvel e descobriu os retardatários: “Acelera! Acelera! Acelera!”.
Ao começo da noite, tudo piorou. Faltavam poucos minutos para Pedro Passos Coelho fazer um dos discursos mais importantes da sua vida. Às 20h04, o primeiro-ministro anunciaria que o país ia ter uma saída limpa do memorando assinado com a troika. Antes que isso acontecesse, Paulo Rangel ainda tinha que falar para algumas dezenas de apoiantes num hotel da cidade. Estava planeado que ele iria ver a comunicação de Passos Coelho com o seu staff, mas tudo se tinha atrasado. Às 19h51, quando o candidato ainda parecia longe de terminar, Gonçalo Villas-Bôas desistiu de esperar. Pegou no iPhone, pôs os auriculares nos ouvidos e disse: “Não vai dar para ver na televisão, vou ouvir na TSF”.
Estava a ser precipitado. Rangel acabou o discurso mesmo a tempo. Durante os doze minutos em que o primeiro-ministro esteve a falar, ouviu-o atentamente. Comeu uma empada e alguns pedaços de fruta e pediu uma Água das Pedras. Virou-se para um dos seus assessores e disse: “Muito bem, é um bom discurso”. Depois, aproximou-se de outro: “O discurso está bem feito.” Nessa noite, enviaria um SMS a Passos Coelho, dando-lhe os parabéns. “É assim que nós falamos. Quando ele puder, liga de volta. Responde sempre.”
Durante os doze minutos em que o primeiro-ministro esteve a falar, ouviu-o atentamente. Comeu uma empada e alguns pedaços de fruta e pediu uma Água das Pedras. Virou-se para um dos seus assessores e disse: “Muito bem, é um bom discurso”.
Durante o discurso, Nuno Melo não estava ao lado de Paulo Rangel. O candidato do CDS tinha-se refugiado no primeiro andar com um papel e uma caneta. Era ele quem ia reagir pelos centristas ao anúncio da saída limpa. Tomou nota de alguns tópicos e, quando a RTP, a SIC e a TVI ficaram prontas, discursou como se estivesse num grande pavilhão, com uma multidão à frente. Na realidade, estava numa sala acanhada do hotel e tinha como público apenas três jornalistas, três câmaras, um assessor de imprensa e dois elementos do seu staff.
A meio do pequeno discurso, reparou que tinha cometido um erro. Ao preparar a intervenção, estava tão preocupado em passar uma mensagem positiva que acabou por escrever duas vezes a mesma ideia. Em directo, teve que fazer uma pirueta retórica para não se repetir.
Ninguém percebeu, mas mesmo que tivesse percebido também não seria especialmente grave. O importante era que o candidato do CDS tinha aparecido a falar de uma boa notícia. Numa altura em que as televisões estavam ainda a ignorar as eleições europeias, ele tinha entrado no horário nobre. Ao apontar Nuno Melo para falar, o CDS tinha usado de forma perfeita a saída limpa para chamar a atenção para uma campanha que se temia que fosse praticamente clandestina.
No andar de baixo, o staff de Paulo Rangel viu Nuno Melo a aparecer nas televisões. A pergunta era evidente: se ele tinha sido escolhido para responder pelo CDS, porque é que Rangel não fora escolhido pelo PSD? Ninguém sabia responder – e os que julgavam que sabiam não gostavam da resposta.
Com tudo isto, um mau dia estava prestes a tornar-se num dia péssimo. Em vez de ir imediatamente descansar, Paulo Rangel ainda teve que cumprir um programa absurdo que o obrigou a ir jantar a um hotel a vários quilómetros de distância, num destino tão remoto que a fase final da viagem teve que ser feita numa estrada de terra. Quando chegou, estava furioso. Saiu do carro a falar alto: “Isto é inaceitável! Fazer tantos quilómetros para vir jantar aqui!”.
Em condições normais, não seria fácil andar pelo país a pedir votos para os partidos do governo. Neste caso, era mais difícil ainda. É que era preciso ter em conta um pequeno detalhe: Paulo Rangel já se tinha convencido que ia perder.
Um dos seus assessores tentou acalmá-lo. O dono do hotel, que tinha vindo recebê-lo à entrada, estava sem saber o que fazer. Rangel insistiu: “Peço desculpa, mas isto é inaceitável. O meu staff já sabe que não pode fazer isto!”.
Não era uma reacção típica dele. Mas a verdade é que a campanha oficial ainda nem tinha começado e já percorrera muitos quilómetros. Estava cansado. Em condições normais, não seria fácil andar pelo país a pedir votos para os partidos do governo. Neste caso, era mais difícil ainda. É que era preciso ter em conta um pequeno detalhe: Paulo Rangel já se tinha convencido que ia perder.
Não era o único. Aliás, essa tinha sido a primeira decisão dos seus assessores, dois meses antes: convencerem-se a si próprios, e convencerem o candidato, de que iam perder. Ou melhor: não apenas perder, mas perder por muitos. No começo da campanha, apostavam que a diferença entre o PS e a coligação chegaria aos dez pontos percentuais. Na sua cabeça, menos do que isso já seria uma espectacular vitória.
Havia razões para este pessimismo, e nem era preciso falar sobre os três anos de austeridade. De facto, tudo começara terrivelmente mal. A coligação não era a união de duas forças, mas de duas fraquezas. Antes da demissão “irrevogável” de Paulo Portas, PSD e CDS estavam decididos a avançar sozinhos para as europeias. Depois da crise do Verão, essa possibilidade tornou-se impensável. Para que o governo sobrevivesse, os dois partidos tinham que ficar mais colados do que gémeos siameses. Do lado do CDS, isso quis dizer que Nuno Melo deixou de ser o número um de uma lista sua e passou a ser o número quatro de uma lista de outros; do lado do PSD, quis dizer que tiveram que ceder o oitavo lugar da lista ao CDS, quando a aritmética pura lhe daria apenas o nono. Ninguém ficava totalmente contente.
No início, o nome também tinha sido um problema. Se os dois partidos iam formar uma coligação, precisavam de descobrir uma designação que funcionasse. Surgiram várias hipóteses ao longo de inúmeras trocas de emails e de SMS e de diversas reuniões da Comissão Política da campanha. As primeiras hipóteses mostravam falta de criatividade: alguém propôs “Aliança Democrática”, mas a designação tinha sido usada por Sá Carneiro em 1980; outra pessoa sugeriu “Europa sim, Portugal sempre”, uma cópia directa do slogan do PSD nas Europeias de 1994; e ainda houve quem avançasse com “Dar Força a Portugal”, um mero remake do “Força Portugal” utilizado em 2004. A seguir, vieram as propostas mais ousadas: “Resgatar Portugal” ou “Libertar Portugal”. Eram hipóteses sedutoras, mas uma prudente busca no Google alertou os responsáveis da coligação para alguns perigos.
A célebre reunião promovida por Mário Soares na Aula Magna tinha tido como slogan “Libertar Portugal da austeridade” e, em 2013, o PCP lançara uma campanha para “resgatar” Portugal. Era melhor não arriscar ficar em companhias comprometedoras.
Foi Gonçalo Villas-Bôas quem acabou com o impasse. Numa das reuniões, o assessor de Paulo Rangel sugeriu que, simplesmente, juntassem as duas ideias. De um lado, “Aliança”; do outro, “Portugal”. E assim surgiu a Aliança Portugal. Nos focus groups que realizaram depois da escolha do nome, os responsáveis do PSD e do CDS ficaram surpreendidos com a sua eficácia. Várias pessoas reunidas para dar a sua opinião, mesmo de outros partidos, disseram: “É isso mesmo! É disso que Portugal precisa, de uma aliança para Portugal”.
Melhor ainda: de acordo com os resultados dos focus groups, os candidatos principais, Paulo Rangel e Nuno Melo, tinham grande notoriedade e, detalhe importante, não eram vistos como dois inimigos que se uniam de forma cínica com o único objectivo de disputar uma eleição. A dupla funcionava. Por isso, foi tomada a decisão de juntar as suas fotografias na capa do jornal de campanha, que seria distribuído em todo o país.
A coligação já tinha um nome, já tinha dois rostos e já tinha um adversário. Faltava-lhe ter uma cor. Para os assessores de Paulo Rangel, não havia dúvidas: tinha que ser o azul, a cor da Europa. Mas isso apresentava um problema. É que o azul não era apenas a cor da Europa – era também a cor do CDS
Outras conclusões dos focus groups ajudaram a preparar a artilharia que serviria como argumento de combate. Os discursos excessivamente elaborados dos candidatos foram criticados por quase todos os participantes nesses inquéritos de opinião – nas semanas seguintes, Paulo Rangel atacaria inúmeras vezes o estilo “gongórico” de Francisco Assis. E várias respostas indicaram que o candidato do PS era considerado um “fala-barato” – na campanha que se seguiu, Rangel acusou-o repetidamente de usar “palavras, palavras, palavras” e de fazer “promessas, promessas, promessas” em vez de apresentar propostas concretas.
A coligação já tinha um nome, já tinha dois rostos e já tinha um adversário. Faltava-lhe ter uma cor. Para os assessores de Paulo Rangel, não havia dúvidas: tinha que ser o azul, a cor da Europa. Mas isso apresentava um problema. É que o azul não era apenas a cor da Europa – era também a cor do CDS. Alguns dirigentes do PSD argumentavam que os social-democratas aceitavam pôr o laranja na gaveta nas semanas seguintes, mas que os centristas teriam que fazer o mesmo com o azul. Depois de algumas discussões, os responsáveis pela campanha acabaram por vencer: a principal cor da Aliança Portugal seria mesmo o azul. Mas aquele foi apenas o primeiro indício de que não ia ser fácil manter as tréguas entre o PSD e o CDS.
O calendário não ajudou. A campanha das europeias teve de ser feita pouco depois das eleições autárquicas – ou seja, pouco depois de, em muitas localidades, PSD e CDS se terem combatido com a ferocidade de dois zombies pós-apocalípticos. Numa cidade do interior, um dirigente local do CDS fazia questão de explicar aos jornalistas que era contra toda e qualquer coligação com os social-democratas e que, na verdade, apenas se tinha dado ao trabalho de aparecer na campanha “pelo Nuno”. Dias depois, o presidente de uma estrutura local do PSD só no limite das suas forças permitiu que o seu homólogo centrista discursasse durante um almoço de campanha. Muitas vezes, bastava um detalhe para provocar um problema. Noutro almoço, os guardanapos eram cor de laranja, o que, para alguns elementos do CDS local, indiciava uma conspiração política de proporções cósmicas com o objectivo de menorizar o seu partido.
Os dois principais assessores de Paulo Rangel tinham que espreitar por debaixo de cada pedra para evitar conflitos. Pedro Esteves, de 32 anos, responsável pela volta ao país, estava de manhã à noite com o telemóvel colado ao ouvido, em contacto com as máquinas dos dois partidos. O actual chefe de gabinete da representação do PSD em Bruxelas é militante há apenas cinco anos, mas já tinha participado em duas outras campanhas – nas europeias anteriores e nas directas que Rangel disputou com Passos Coelho. Gonçalo Villas-Bôas, de 42 anos, estava sempre perto do candidato social-democrata. Antigo jornalista, é familiar afastado do treinador André Villas-Boas, trabalha com Rangel desde 2008 e não é militante do PSD. Quando havia problemas, eles eram os primeiros a saber.
Um dia, a caminho de um almoço com apoiantes, Pedro Esteves recebeu um telefonema de um elemento do CDS a avisar que o restaurante estava cheio de bandeiras do PSD. Era uma violação flagrante do primeiro mandamento da campanha: durante aquelas semanas, não se deveriam ver bandeiras de nenhum dos partidos, apenas as da Aliança Portugal. Pedro Esteves desligou imediatamente o telefone, marcou outro número e deu uma ordem clara: as bandeiras do PSD tinham que desaparecer – e já. Se, quando chegassem, houvesse uma única no restaurante, nenhum dos candidatos passaria sequer da porta.
Um assessor baixou o vidro do carro e chamou um dos manifestantes. Em poucos segundos, ele afastou-se e, obediente, começou a recolher todas as bandeiras. A partir dali, o laranja desapareceu e só se viu o azul.
No mesmo almoço, já à mesa, um militante do CDS passou intermináveis minutos a queixar-se de todas as supostas malfeitorias do PSD. Com infinita paciência, um assessor de Nuno Melo explicou-lhe: “Agora, temos que esquecer essas coisas todas”.
As bandeiras surgiam quando menos se estava à espera. A 13 de Maio, à chegada à Marinha Grande, a caravana foi recebida por um pequeno grupo que agitava várias do PSD. Não era uma demonstração de afronta, era uma prova de orgulho – mas, mesmo assim, não podia ser. O carro de Paulo Rangel, que seguia imediatamente à frente do de Nuno Melo, abrandou e parou. Um assessor baixou o vidro do Audi e chamou um dos manifestantes. Em poucos segundos, ele afastou-se e, obediente, começou a recolher todas as bandeiras. A partir dali, o laranja desapareceu e só se viu o azul.
Para que estes pequenos conflitos não se transformassem em grandes conflitos, era fundamental que Paulo Rangel e Nuno Melo se dessem bem. Quando, nas duas últimas semanas, os jornalistas chegaram à campanha, alguns assessores acharam que eles vinham com “um preconceito”: queriam descobrir desentendimentos entre os dois candidatos. De facto, logo que perceberam que a matrícula do carro de Nuno Melo tinha as letras “ON”, alguns jornalistas olharam para o Audi de Paulo Rangel para ver se, numa extraordinária coincidência simbólica, a sua matrícula teria as letras “OF” – não tinha.
Não era só uma questão de matrículas, os dois davam-se efectivamente bem. A convivência ajudava. Rangel e Melo trabalham juntos em Bruxelas há cinco anos, pertencem ao mesmo grupo político e, portanto, falam regularmente um com o outro.
Durante a campanha, Paulo Rangel explicou aos alunos de uma escola de turismo que uma das vantagens da União Europeia era evitar a guerra entre os diferentes países e, falando das grandes potências, usou uma frase que poderia ser aplicada ao PSD e ao CDS: “Quando tomamos o pequeno-almoço juntos, temos menos vontade de nos matarmos”.
Os dois candidatos procuravam mostrar aos jornalistas que funcionavam mesmo bem em conjunto. Não bastava que isso fosse verdade: os eleitores tinham de ver que era verdade. Durante um jantar, um dirigente local do CDS entusiasmou-se e descreveu a relação entre Rangel e Melo numa frase: “É um casamento!” A rir-se, o social-democrata corrigiu-o: “É um preciosismo de jurista, mas talvez a ideia de casamento seja precipitada. É mais uma união de facto…”
Francisco Assis tinha estado nesse mesmo dia a visitar as caves da Raposeira e aparecia, bem-comportado, a beber espumante por um copo. Nuno Melo não deixou escapar a oportunidade: “Nós é pela garrafa, pá! Eles são socialistas, mas nós é pela garrafa, pá!”
Nas uniões de facto, partilha-se tudo. E a imagem perfeita para ilustrar até que ponto ia a sua vontade de partilhar surgiu a 12 de Maio, numa visita às caves Murganheira. Rodeado de jornalistas, Nuno Melo pegou numa garrafa de espumante acabada de abrir, deu um gole e estendeu-a a Paulo Rangel: “Se não tiveres nojo, podes beber!”. Sem hesitações, ele aceitou o desafio: “Isto é uma coligação!”.
À noite, num restaurante de Lamego, os dois viram as imagens nas televisões. A cena mostrava descontracção e harmonia. Além disso, havia um contraste: Francisco Assis tinha estado nesse mesmo dia a visitar as caves da Raposeira e aparecia, bem-comportado, a beber espumante por um copo. Nuno Melo não deixou escapar a oportunidade: “Nós é pela garrafa, pá! Eles são socialistas, mas nós é pela garrafa, pá!”
Rangel brincou: “Se fosse ao contrário ele não bebia, ele acha que eu estou cheio de micróbios”. Nuno Melo confirmou: se tivesse sido Rangel o primeiro dar um gole e se a seguir lhe tivesse passado a garrafa, ele nunca na vida lhe seguiria o exemplo.
De facto, eles tinham bebido pela garrafa e isso, simbolicamente, demonstrara a solidez da coligação – aos jornalistas, os dois explicaram que “aquilo” era “genuíno” e que “não tinha havido encenação”. Mas, se a ordem tivesse sido a inversa, haveria um problema. Dias depois, durante uma paragem na campanha, Rangel brincou: “Se fosse ao contrário ele não bebia, ele acha que eu estou cheio de micróbios”. Nuno Melo confirmou: se tivesse sido Rangel o primeiro dar um gole e se a seguir lhe tivesse passado a garrafa, ele nunca na vida lhe seguiria o exemplo. Naquela noite, a imagem nos telejornais teria sido bem diferente.
Havia uma razão para isto – e não tinha nada a ver com política. Nuno Melo é um incorrigível hipocondríaco. Já Paulo Rangel gosta de repetir uma frase que o define: “Eu não estou constipado, eu sou constipado”. De resto, logo no começo da pré-campanha, ficou abalado por uma rinite alérgica que quase fez com que perdesse a voz.
Os dois candidatos não eram diferentes apenas na forma como encaravam a saúde e a doença. Paulo Rangel, por exemplo, preferia arriscar-se a perder um eleitor em vez de perder um compromisso: esforçava-se por sair rapidamente das acções de campanha para chegar a horas à seguinte. Já Nuno Melo era o contrário: ficava a tirar fotos e a dar beijos e abraços, o que provocava um atraso crónico no programa.
Para os socialistas, selfie foi uma das palavras da campanha: Seguro tirou uma selfie com Martin Schulz no Chiado e o principal cartaz de Francisco Assis era uma selfie falsa com os seus companheiros de lista. Paulo Rangel e Nuno Melo evitaram aparecer em selfies, mas os “jotas” não resistiram à moda. Em quase todas as feiras e mercados, juntavam-se para tirar uma com vendedores e clientes. Numa madrugada, em Coimbra, o alvo foi outro. Paulo Portas estava à porta do hotel, com a gravata desapertada, a falar com Nuno Melo quando foi rodeado pelos “jotas”. A imagem ficou assim.
Além disso, havia a introversão do social-democrata e a extroversão do centrista. Nas ruas e nas feiras, o grande desbloqueador de conversas com os eleitores era uma caneta da coligação. Rangel oferecia-a com a constatação de um facto: “Uma caneta dá sempre jeito”. Já Nuno Melo socorria-se de uma promessa embrulhada num exagero: “Escreve toda a vida!”. Na realidade, o candidato do CDS perceberia pouco depois que a caneta que estavam a distribuir perdia peças a uma velocidade perturbadora.
Por vezes, o humor ajudava o social-democrata. Quando se cruzou com uma eleitora que estava a experimentar um sapato, Rangel sorriu: “Uma canetinha para a Cinderela…”. Mas era incapaz de manter os pequenos segredos de campanha. Explicou a um feirante como era feita a sua articulação com os “jotas”: “Eles vão à frente e dão primeiro o jornal de campanha para eu dar depois a caneta. É uma táctica”.
Nuno Melo esquecia as tácticas. Parava para falar com toda a gente e deixava-se ficar para trás. Depois de uma conversa durante a qual ouviu as queixas intermináveis de uma potencial eleitora, prosseguiu com um sorriso e disse em voz alta, numa demonstração de genuíno prazer por estar ali: “Espectáculo!”.
O “espectáculo” teria de ser muito diferente quando chegassem os jornalistas. Um dia, depois de alguns carros se terem perdido da caravana, Pedro Esteves avisou: “Esta semana é para cometer erros, mas a partir de sábado não há erros!”. No sábado, haveria pela primeira vez televisões, rádios e jornais.
A volta pelo país começou uma semana antes de os jornalistas se juntarem à campanha e esse período foi utilizado para criar o “espírito de equipa” que deveria ser a imagem da coligação. Paulo Rangel demora mais a criar empatia com as pessoas e, por isso, precisava de tempo para se preparar. Só ao fim de uns dias se dirigiu a um grupo de “jotas” para se meter com eles. Enquanto simulava o gesto de levantar as bandeiras, disse: “Bom dia, meus amigos, estão animados?”
Aliás, os próprios “jotas” não se conheciam, uma vez que uns eram da JSD e outros da JP. Até à chegada dos jornalistas, mantiveram-se em relativo silêncio. A partir do momento em que viram câmaras, não pararam de saltar, de dançar e de cantar, de preferência atrás dos candidatos, para aparecerem nas fotografias e nas imagens.
A preocupação com os jornalistas (que muitos na coligação achavam que estavam “contra nós”) tinha começado muito antes. A 1 de Maio, a caminho de uma entrevista na Antena Um, Paulo Rangel comentou com Gonçalo Villas-Bôas que não era fácil enfrentar Maria Flor Pedroso: “É uma pessoa muito envolvente e de repente…”
Ainda a tentar recuperar da sua rinite, foi todo o caminho a chupar rebuçados para a garganta. Quando o carro chegou à sede da RDP e da RTP, não encontrou apenas uma cancela para baixo, mas também um portão fechado. “Se calhar, alguém aqui está à espera de um golpe de Estado. Quando há um golpe de Estado, as televisões são sempre os primeiros alvos a ocupar…”.
Afinal, a única coisa de que estavam à espera era da sua chegada. Na mão, Gonçalo Villas-Bôas levava um CD. Todas as entrevistas de Maria Flor Pedroso começam com uma música escolhida pelo convidado e Paulo Rangel levou uma versão do Hino da Alegria tocado com guitarra portuguesa, que se ouviria em todos os seus comícios.
Nem tudo tinha corrido bem na entrevista. Logo que entraram no Audi A4, Gonçalo Villas-Bôas comentou que tinha havido “um ou dois deslizes” e que Rangel poderia ter sido mais “incisivo” em relação ao PS.
Era uma escolha inofensiva – ao contrário da que seria feita por Francisco Assis. No final dos 23 minutos do programa, Maria Flor Pedroso comentou de forma casual que o candidato socialista, que seria entrevistado nessa mesma tarde, tinha optado pela música Le Rêve Impossible. Gonçalo Villas-Bôas viu ali uma oportunidade e aproveitou-a imediatamente. “O Sonho Impossível? Isso é da opereta do D. Quixote!” A mensagem subliminar era a de que Assis seria um D. Quixote com o sonho impossível de vencer as europeias. Ao entrar no elevador, Paulo Rangel lembrou que também ele, numa entrevista anterior com Maria Flor Pedroso, tinha escolhido essa música, mas numa versão de Maria Bethânia e não de Jacques Brel. Para o social-democrata, era mais uma demonstração de que o candidato socialista estava permanentemente a copiar as suas ideias.
Nem tudo tinha corrido bem na entrevista. Logo que entraram no Audi A4, Gonçalo Villas-Bôas comentou que tinha havido “um ou dois deslizes” e que Rangel poderia ter sido mais “incisivo” em relação ao PS. O candidato, que gosta de ouvir o seu assessor a fazer-lhe sugestões e críticas, concordou. Por um lado, como tinham previsto, Maria Flor Pedroso não lhe facilitara a vida, interrompendo-o com interjeições como “isso já disse” ou “isso já ouvimos”; por outro, havia os efeitos da rinite: “Eu hoje estou um pouco zen. Como se estivesse com os vapores de incenso…”
A 6 de Maio, os “vapores de incenso” tinham desaparecido – e Paulo Rangel estava tudo menos zen. Logo de manhã, tinha uma entrevista na sede do Jornal de Notícias, no Porto. Estava preparado para um combate. Na véspera, o JN publicara um artigo de opinião de Rafael Barbosa, editor-executivo do jornal e um dos dois entrevistadores, juntamente com Helena Teixeira da Silva. Gonçalo Villas-Bôas leu-o com atenção, especialmente os parágrafos em que o jornalista escrevia que “Paulo Rangel já sabe que vai perder” e que a coligação era um “casamento de conveniência que junta PSD e CDS”. Depois de ver o artigo, enquanto segurava um tabuleiro na cantina do Hospital do Fundão, o assessor comentou: “Vai ser uma entrevista interessante”.
Ainda antes das 8h30, Gonçalo Villas-Bôas enviou um email a Paulo Rangel com duas indicações importantes. Uma: o Diário de Notícias desse dia publicava uma entrevista a Assis onde o candidato socialista entrava em contradição com António José Seguro na questão da mutualização do subsídio de desemprego. Outra: também no DN, Mário Soares escrevia um artigo onde elogiava Jean-Claude Juncker, o candidato a presidente da Comissão Europeia que PSD e CDS apoiavam.
Às 9h, como é normal em todos os matutinos, a redacção do JN estava praticamente vazia. Os dois entrevistadores levaram Paulo Rangel a um pequeno estúdio. Antes de se pôr à frente de 12 projectores e três câmaras, o candidato falou uma última vez com Gonçalo Villas-Bôas, que lhe recordou novamente as declarações de Assis e de Soares. Rangel sentou-se, testou o som (“1, 2, 3, estou a fazer o teste, 4, 5, 6”) e a entrevista começou. Foi interrompida pouco depois. Um técnico pediu-lhe que não se mexesse muito na cadeira. O candidato justificou-se:
– Era para ir falando com os dois entrevistadores.
– Mas…
– Mas fico a oscilar, já percebi.
Logo que a entrevista recomeçou, Rangel falou das declarações de Assis ao DN. Minutos depois, referiu o artigo de Mário Soares. Para o candidato, foi bom arrumar logo esses assuntos. Até ao final, iria ficar crescentemente irritado com as perguntas e as réplicas dos jornalistas. Não foi uma entrevista suave. Quando acabou a gravação, a conversa continuou junto aos elevadores. Com as vozes cada vez mais altas, Rangel chegou a desesperar na troca de argumentos: “Oh, meu Deus!”.
Ao falarem sobre a entrevista, a sua maior preocupação era tentar perceber que títulos sairiam dali. Havia uma hipótese mais positiva e outra mais negativa. Dias depois viram o JN no iPhone e perceberam que tinham acertado ao milímetro na previsão de quais seriam as frases escolhidas.
No carro, Gonçalo Villas-Bôas alertou: “A entrevista só acaba quando se fecha a porta”. As conversas que se têm com os jornalistas no fim das gravações acabam sempre por influenciar, de forma consciente ou inconsciente, a edição das matérias. Por isso, era melhor evitar confrontos desnecessários. Paulo Rangel concordou, mas ainda disse: “Só faltou baterem-me…”.
Ao falarem sobre a entrevista, a sua maior preocupação era tentar perceber que títulos sairiam dali. Para eles, havia uma hipótese mais positiva e outra mais negativa. Dias depois, durante uma das longas viagens da campanha, viram o JN no iPhone e perceberam que tinham acertado ao milímetro na previsão de quais seriam as frases escolhidas. A mais positiva saiu na capa: “Não podemos voltar ao despesismo socialista”. A mais negativa, no interior: “Portugal empobreceu com as medidas da troika”. Ficaram satisfeitos: se fosse ao contrário, teria sido pior.
A preparação do candidato para uma entrevista é meticulosa – mas não é comparável com aquilo que é necessário para um debate. Paulo Rangel conhecia bem as capacidades do seu opositor socialista: os dois participaram durante muito tempo num programa de comentário político na TVI24. Mesmo assim, os seus assessores reviram as gravações das prestações de Francisco Assis e releram várias entrevistas recentes.
O primeiro debate a dois seria na Faculdade de Direito de Lisboa, a 7 de Maio. Durante cerca de cinco dias, Gonçalo Villas-Bôas aproveitou todas as pausas para escrever, no seu computador portátil, um guião do debate, quase minuto a minuto. Ao longo de seis páginas, tentou antecipar todos os argumentos, todos os ataques e todas as frases que seriam utilizadas por Rangel e por Assis. Além disso, preparou uma análise SWOT dos dois candidatos. Este instrumento, muito usado na gestão, é uma sigla em inglês para Forças (Strengths), Fraquezas (Weaknesses), Oportunidades (Opportunities) e Ameaças (Threats). Seria a grelha fundamental para perceber tudo o que se ia passar na Faculdade de Direito.
A principal força de Francisco Assis era a capacidade de criar empatia e de envolver o adversário, anulando as diferenças e fazendo suas as posições do outro. A sua principal fraqueza era a de não conseguir concretizar os argumentos, ficando sempre na retórica pura. Já a principal força de Paulo Rangel era a assertividade. E a sua principal fraqueza era a tendência para se deixar levar pelas discussões, assumindo o papel de um analista que tenta explicar intelectualmente os assuntos.
Para combater aquela que era a força de Assis e a fraqueza de Rangel, Villas-Bôas tentou que o social-democrata esquecesse os anos de ameno debate com o socialista em programas de televisão. Durante uma viagem de carro, na madrugada do encontro na faculdade, recomendou-lhe, provocando risos: “Tem de imaginar que é outra pessoa que está ali”. Já para atacar a principal fraqueza de Assis, Rangel levava uma frase preparada: “Eu sei que não gosta de números”.
Às 17h13, Rangel fez pontaria à jugular, expondo a principal fraqueza de Assis: “Faça propostas concretas!”. Minutos depois, atirou a frase que trazia no bolso: “Já sei que não gosta de números…”
O encontro começou às 17h e Rangel usou imediatamente a sua “assertividade”: acusou o adversário de andar há várias semanas a fugir aos debates. Assis respondeu com a sua “empatia”: disse que não queria cultivar o “antagonismo” e que estava à procura de “construir pontes”. Depois, tal como previsto, usou os argumentos de Rangel a seu favor e tornou-os seus ao dizer que pretendia um “compromisso” nas finanças públicas.
Às 17h13, Rangel fez pontaria à jugular, expondo a principal fraqueza de Assis: “Faça propostas concretas!”. Minutos depois, atirou a frase que trazia no bolso: “Já sei que não gosta de números…” O socialista percebeu a estratégia do adversário e reagiu. Mas, ao dizer que “a questão não é de números, é conceptual”, acabou por cair na armadilha de Rangel, que queria apresentá-lo como um teórico. O social-democrata insistiu tanto nos “números” que eles acabaram por dominar toda a primeira parte do debate.
A dada altura, Rangel lembrou que existia uma contradição entre o PS, que defendia a mutualização da dívida, e Martin Schulz, que achava que ela não estava na agenda da União Europeia. Para vincar o ponto, lembrou um debate recente entre os diferentes candidatos a presidente da Comissão e precisou:
– Vá ver o minuto 30 do debate!
– Minuto 30! Você gosta mesmo de números!
– Eu disse, você não acreditou…
A vontade de criar empatia fazia com que Assis nunca conseguisse ser agressivo, mesmo quando começava por atacar o adversário. A dada altura, o socialista recomendou a Rangel: “Tenha calma!”. Quando ele respondeu “Eu estou calmo”, Assis aceitou: “Eu sei que está…”
A segunda parte correu pior ao social-democrata, que se deixou envolver num debate teórico e morno sobre o futuro da União Europeia. Mas no fim as coisas voltaram a aquecer. Quando chegou o momento das perguntas, levantou-se na primeira fila Marinho e Pinto. O candidato pelo MPT, que ninguém tinha convidado a aparecer, lembrou que Jorge Coelho saiu da política para uma empresa de construção civil e acusou Paulo Rangel de acumular a advocacia num grande escritório com o cargo de eurodeputado.
Villas-Bôas tinha passado todo o debate em pé, num corredor lateral, na diagonal de Rangel. Por mais de uma vez, enviou mensagens do seu telemóvel. No palco, Paulo Rangel olhava discretamente para o seu Blackberry, pousado em cima da mesa.
Cada um dos candidatos reagiu de forma típica. Assis fez questão de dizer, sobre Marinho e Pinto, que “são mais as coisas que nos aproximam do que as que nos afastam”. Já Rangel, passou para o ataque: lembrou que, durante muitos anos, o candidato do MPT também tinha acumulado as funções de advogado e de jornalista.
Ao ouvir isto, Gonçalo Villas-Bôas e Pedro Esteves começaram a bater palmas com força, arrastando a sala atrás de si. Villas-Bôas tinha passado todo o debate em pé, num corredor lateral, na diagonal de Rangel. Por mais de uma vez, enviou mensagens do seu telemóvel. O destinatário estava perto: no palco, Paulo Rangel olhava discretamente para o seu Blackberry, que estava pousado em cima da mesa.
Era mais difícil controlar um debate a quatro. A 13 de Maio, quando Paulo Rangel, Francisco Assis, João Ferreira e Marisa Matias se encontraram nos estúdios da Económico TV, em Lisboa, o social-democrata tinha um objectivo principal: estimular a discussão à esquerda e deixar que a CDU e o BE atacassem o candidato socialista. Se tudo corresse bem, ele seria um simples espectador.
Às 9h56, Paulo Rangel chegou à redacção do Diário Económico. Logo a seguir, entrou Assis. Só ao fim de alguns minutos de conversa entre os dois é que Rangel percebeu que atrás de si, sentado num sofá, estava João Ferreira. Pediu desculpa por não o ter cumprimentado e brincou: “Está aí tão discreto, o PCP não costuma estar tão discreto… Está a preparar alguma!”.
Àquela hora, o social-democrata já tinha tomado dois cafés: um logo ao acordar, na máquina Nespresso que tinha no quarto de hotel, e outro ao pequeno-almoço. Começava a sentir os efeitos da cafeína e sentia-se preparado. Quando saiu da sala de maquilhagem, disse: “Alea jacta est”.
Os dados estavam lançados, mas não inteiramente a seu favor. No debate não aconteceu aquilo que tinha esperado: em vez de criticarem Assis, os candidatos da CDU e do Bloco juntaram-se ao socialista para isolarem Rangel. Perante isso, repetiu a estratégia usada na Faculdade de Direito. Ao ouvir Assis, mostrou cansaço com as propostas supostamente “utópicas” do socialista e atirou: “Palavras…”.
Os debates não foram suficientes para provocar entusiasmo no país. Além dos da Faculdade de Direito e da Económico TV, houve um no Observador e outro na Antena Um. Mas as televisões, com medo das multas da Comissão Nacional de Eleições, não se mexeram. E, assim, aumentou o medo da abstenção. Ao longo da campanha, Paulo Rangel temeu sempre que ela chegasse aos 70%.
Perante isso, a melhor forma de garantir um bom resultado era mobilizando “os nossos”. Em condições normais, a soma dos militantes e dos simpatizantes de um partido não é suficiente para vencer. Mas quando só 30% do eleitorado vai votar, esse grupo assume uma importância desproporcional. Por isso, logo no começo da campanha, Rangel escreveu uma carta pessoal às 60 mil pessoas que tinham sido candidatas pelo PSD nas últimas autárquicas, apelando a que se mobilizassem. E, depois, foi para a estrada.
Durante um mês e meio, percorreu 25.700 quilómetros. Nos seus discursos, apelou a que todos se lançassem numa campanha “casa a casa” e “porta a porta”. Na Sertã, foi mais longe: pediu que o fizessem “aperto de mão a aperto de mão, beijinho a beijinho”. Cada eleitor era fundamental.
Dias depois, uma reunião com empresários em Estarreja que obrigou a uma viagem de vários quilómetros acabou numa sala com 77 cadeiras e apenas 23 pessoas, das quais duas eram jornalistas – mesmo assim, os candidatos esforçaram-se por ser persuasivos
Ele próprio e Nuno Melo deram o exemplo. A 10 de Maio, enquanto percorriam uma rua deserta de Terras de Bouro, Miguel Pires da Silva, líder da JP e também candidato, viu um homem sozinho do outro lado da estrada, à porta de uma loja, e sugeriu que o fossem cumprimentar – foram. Dias depois, uma reunião com empresários em Estarreja que obrigou a uma viagem de vários quilómetros acabou numa sala com 77 cadeiras e apenas 23 pessoas, das quais duas eram jornalistas – mesmo assim, os candidatos esforçaram-se por ser persuasivos. Em Lamego, Rangel gabou-se num discurso de nessa tarde ter andado “pelos locais mais remotos”, onde “não há jornais, nem rádios, nem televisões” – restou apenas acrescentar que também havia poucos eleitores.
Esta vontade de encontrar o “povo” (e de mostrar que os candidatos dos partidos do governo “não tinham medo” da rua) levou Rangel e Nuno Melo a participarem em três arruadas sem gente em apenas dois dias. A 21 de Maio, quando a chuva impediu um passeio pelas ruas de Peniche, o candidato centrista ironizou: “Oh, que pena, não vai haver arruada…”.
Como o PSD é um partido enorme e profundamente descentralizado, as acções de campanha em cada dia eram decididas pelas estruturas locais. Os assessores de Paulo Rangel acreditavam que eram elas quem estava em melhor posição para decidir o que era importante em cada distrito. Como resultado, os candidatos passaram horas intermináveis a visitar fábricas, quartéis de bombeiros, lares de idosos e edifícios da Santa Casa. Na prática, o aparelho do partido estava a visitar o aparelho do partido, num circuito fechado que deixava o staff do CDS perplexo (para eles, uma acção de campanha só se justificava se houvesse muita gente ou um bom “boneco” para mostrar aos jornalistas) – mas a verdade é que o objectivo era, precisamente, levar esse aparelho do partido a votar no dia 25 de Maio.
Uma guerra civil dentro do principal partido da oposição era a melhor coisa que lhes podia acontecer, mesmo que tivesse como consequência uma vitória interna de António Costa.
Outra forma de mobilizar o “povo” laranja era mostrando-lhe os seus líderes. Além do incentivo aos militantes, havia outro motivo para Passos Coelho e Paulo Portas aparecerem. A dada altura, perceberam que a imprensa começava a olhar para Seguro como o próximo primeiro-ministro – era fundamental que uma eventual vitória do PS fosse fraca. Uma guerra civil dentro do principal partido da oposição era a melhor coisa que lhes podia acontecer, mesmo que tivesse como consequência uma vitória interna de António Costa.
A campanha também precisava de mostrar que os “notáveis” estavam unidos. Rui Rio cumpriu a sua missão: quando recebeu o telefonema de Paulo Rangel, preferiu não participar num comício, mas apareceu a dar o seu apoio numa visita a uma fábrica. Manuela Ferreira Leite surgiu no penúltimo dia de campanha: Rangel foi buscá-la a casa para tomarem o pequeno-almoço num hotel de Lisboa.
Já Marcelo Rebelo de Sousa provocou um estrondo. Quando começou a discursar num jantar em Coimbra, a temperatura na sala desceu para graus negativos. Fez um elogio de circunstância aos candidatos do PSD e do CDS e explicou que a principal razão para votar na coligação era a possibilidade de eleger Jean-Claude Juncker como presidente da Comissão Europeia. Depois de se sentar na mesa, entre Rangel e Nuno Melo, explicou que o seu objectivo tinha sido afastar a campanha do governo.
A imprensa não fez uma análise tão fina. O artigo que o Expresso colocou no seu site ao fim de alguns minutos, por exemplo, tinha o título “Marcelo faz uma ‘marcelice’… e apela ao voto em Juncker”. Quando o antigo líder do PSD quis falar com os jornalistas para clarificar o que tinha acabado de dizer, nenhum o ouviu. Durante essa noite e na manhã seguinte, os assessores e dirigentes do PSD e do CDS quiseram conter os danos, tentando convencer os jornalistas que o discurso não tinha sido tão mau como parecia. A dada altura, Hugo Soares, líder da JSD, riu-se para Zeca Mendonça, assessor de imprensa social-democrata: “Tentei tudo, não consigo mais!”. Na sequência da polémica, Paulo Rangel desabafou: “Não entendo nem nunca vou entender os jornalistas”.
Os jornalistas também estavam a ter dificuldade em entender Paulo Rangel. A dada altura, sentiam que as únicas duas palavras que saíam da sua boca eram “despesismo” e “Sócrates”. Em certo sentido, tinham razão. O social-democrata decidira há muito tempo que o ex-primeiro-ministro socialista seria um dos seus principais argumentos eleitorais, mas esperou pela última semana para actuar. Quando percebeu que o próprio PS estava dividido quanto às vantagens de ter Sócrates ao seu lado, ligou o turbo. Até ao último dia, usou em todos os discursos alguma variação da frase mais emblemática da campanha: “No seu exílio em Paris, Sócrates enunciou o princípio filosófico de que a dívida não é para se pagar, a dívida é para se gerir. Pois bem: ele geriu a dívida, e nós, os portugueses, é que tivemos que a pagar!”
A poucos dias das eleições, mesmo sabendo que isso era virtualmente impossível, houve um momento em que Rangel chegou a pensar que ia ganhar: “Eu hoje estou eufórico. Isto é de uma inconsciência atroz…!”
A reacção foi fortíssima. O staff recebeu sugestões insistentes para que o candidato diminuísse a intensidade dos ataques. E, em alguns momentos, até Paulo Rangel receou que este discurso fosse visto pelo eleitorado como um remake da teoria da “asfixia democrática”, que tinha sido um fracasso na campanha de Manuela Ferreira Leite. Mas houve duas razões para que ele prosseguisse. A primeira era prática: já era demasiado tarde para voltar atrás. A segunda era matemática: os números das sondagens mostravam que a Aliança Portugal estava cada vez mais próxima do PS.
No começo, a distância entre eles tinha sido de cerca de dez pontos percentuais; depois, passara para sete; agora, estava consistentemente abaixo dos quatro. A poucos dias das eleições, mesmo sabendo que isso era virtualmente impossível, houve um momento em que Rangel chegou a pensar que ia ganhar: “Eu hoje estou eufórico. Isto é de uma inconsciência atroz…!”
Para dar ainda mais força ao ataque ao despesismo, surgiu o manifesto “Nunca Mais”, um documento contra o regresso das políticas “do passado”. Paulo Rangel falou várias vezes do manifesto como sendo “um sinal de que a sociedade civil se mobiliza”. Na realidade, a mobilização inicial fora das máquinas partidárias. A ideia original surgiu durante um encontro de dois dias na Curia que juntou todos os candidatos da Aliança Portugal e o objectivo era que fosse apresentado num comício da coligação. Mas, depois, decidiu-se transformá-lo num movimento que aparecesse de forma autónoma. Era mais uma forma de pressão sobre o PS.
A dada altura, a pressão foi tão grande que os socialistas cometeram um erro. Depois de Paulo Rangel se referir em vários discursos ao “vírus do despesismo”, Manuel Alegre explodiu: “Há umas dezenas de anos, na Europa, houve um partido que disse que os judeus eram um vírus que era preciso exterminar. O PS não é um vírus, é um grande partido da democracia e da tolerância”.
Quando Assis respondeu com um simples “Tenha juízo”, Rangel ponderou duas hipóteses: no comício da noite, ou encerrava a polémica ou aumentava o grau de radicalização. Enquanto se deslocava de carro para Coimbra, optou por uma mistura das duas.
Ao ler isto, a primeira preocupação de Rangel foi dar visibilidade ao deslize do socialista. Na manhã seguinte, aproveitou a primeira oportunidade para juntar os jornalistas e proclamar: “Isto ultrapassa todos os limites!” Lançou um ultimato: António José Seguro e Francisco Assis tinham até ao fim do dia para se distanciarem de Manuel Alegre. Era uma táctica que ele usava desde que, no congresso do PSD, desafiou Seguro a apresentar o seu candidato – os ultimatos e os desafios eram a melhor maneira de “marcar a agenda” e deixar o adversário sem fôlego, incapaz de impor uma estratégia própria.
Quando Assis respondeu com um simples “Tenha juízo”, Rangel ponderou duas hipóteses: no comício da noite, ou encerrava a polémica ou aumentava o grau de radicalização. Enquanto se deslocava de carro para Coimbra, optou por uma mistura das duas. No seu discurso, explicou, “com pena e gravidade”, que tinha acabado de enviar um email a Martin Schulz e ao presidente do grupo parlamentar dos socialistas europeus a queixar-se das acusações de Alegre. Depois, anunciou: “Não vamos fazer disto um caso de campanha. Fica hoje encerrado. Aliás, ficou encerrado há minutos”. A palavra “vírus” não voltaria a ser pronunciada por Rangel.
Ao falar sobre o candidato social-democrata, Manuel Alegre tinha dito: “Quanto mais magro, mais agressivo”. De facto, Rangel, de 46 anos, estava mais magro. Nos últimos seis meses, tinha perdido 30 quilos. A decisão de fazer dieta – a que se somou uma passagem diária pelo ginásio – tinha sido provocada pela vontade de evitar os problemas de saúde que são comuns na família.
Toda a gente reparou. Nos mercados, nas feiras e nas ruas havia sempre alguém que lhe dizia: “O senhor assim não parece o mesmo, tem que ficar mais gordo”. Para Rangel, havia uma vantagem nestas observações: “É bom sinal, é sinal de que me reconhecem”. No início, havia dúvidas de que isso acontecesse. Até porque, além de ter perdido peso, o candidato ganhara uma barba. Depois das anteriores eleições europeias e das directas para a liderança do PSD, Rangel era reconhecido em todo o lado, mesmo no estrangeiro. A dada altura, decidiu deixar crescer a barba, para passar despercebido, e nunca mais a cortou.
Para um político que pretendia voltar a disputar eleições, foi uma decisão arriscada. Mas Rangel gosta de se ver a si próprio como um político incomum. Até os nomes dos cães que teve até hoje têm uma explicação surpreendente, por ser puramente intelectual: Montty era uma homenagem a Montesquieu, Locky a Locke e Tocquy a Tocqueville. No fim de um dos comícios da campanha, quando toda a gente à sua volta estava mergulhada em adrenalina política, passou toda a viagem de regresso a casa a falar sobre S. Paulo, sobre a Idade Média, sobre o Ancien Régime e sobre as revoluções francesa e inglesa.
Os nomes dos cães que teve até hoje têm uma explicação surpreendente, por ser puramente intelectual: Montty era uma homenagem a Montesquieu, Locky a Locke e Tocquy a Tocqueville
A dada altura, parou por uns breves momentos para ouvir António José Seguro a prometer na rádio acabar com a TSU dos pensionistas sem aumentar impostos e comentou: “Isto não é eleitoralismo?”. Depois, ouviu-se a si próprio na TSF e brincou: “Estou aos berros…” Mas voltou rapidamente ao século XVIII, com um casual “Mas então…”
No dia de reflexão, um sábado, passou duas horas na Universidade Católica do Porto a falar sobre Teoria da Constituição, uma cadeira de mestrado de que é professor. Nessa manhã, fez apenas uma concessão à cultura popular, ao explicar, com graça, que “o tempo de Richelieu foi o tempo dos Três Mosqueteiros, ou, para aqueles que não têm referências tão livrescas, do Dartacão…”. Durante o resto da aula, discorreu longamente sobre Georg Jellinek, sobre Carl Schmitt e sobre Edmund Burke.
No final, recebeu desejos de boa sorte de alunos e de colegas, mas preferiu não falar muito sobre a eleição do dia seguinte: “Meu Deus, nem quero pensar nisso! Tudo é possível: um resultado surpreendente ou um débâcle”. Incrivelmente, aconteceram as duas coisas. Por um lado, o PSD e o CDS tiveram uma das suas piores votações de sempre, com 27,71%. Por outro, a escassa diferença de 3,75 pontos percentuais em relação ao PS provocou um ataque à liderança socialista. Ao mesmo tempo que perdeu as eleições, Paulo Rangel deu uma ajuda decisiva para fragilizar António José Seguro.
O homem que esteve à frente da Aliança Portugal já se candidatou uma vez à liderança do PSD e, se eventualmente daqui a um ano Passos Coelho perder as legislativas, poderá surgir uma nova oportunidade. Nessa altura, o que acontecerá a Paulo Rangel? Ele usa o facto de ser um intelectual para escapar à pergunta, como se a erudição fosse incompatível com a política: “Daqui a um ano? Não acontece nada. Um homem que fala sobre Burke…”
O VÍDEO PIRATA
Este vídeo, com o título “J’peux pas travailler Assis”, mostra uma montagem de imagens cómicas de Francisco Assis. Nele, afirma-se que, na sua primeira passagem pelo Parlamento Europeu, o candidato socialista foi o deputado com mais faltas – e insinua-se que agora repetirá esse comportamento. Apareceu no YouTube nos últimos dias da campanha e foi muito visto pelo staff da Aliança Popular. Quem o fez e quem o colocou na Internet? Uma pista: não foi o PS.