A editora Lucerna publicou, neste mês de julho, uma nova edição comentada pelos professores da Ècole de Guerre francesa de O Pensamento e a Guerra, Jean Guitton. A obra clássica do filósofo francês sobre a guerra é composta por uma série de conferências, proferidas sobretudo a partir de 1952, na Ècole Supérieure de Guerre. Nestes textos, Guitton propõe um método de pensamento sintético para compreender o fenómeno da guerra.
“Esta obra, que se tornou um clássico para os militares, mantém ainda hoje toda a sua pertinência”, referiu a editora. “Na verdade, ainda que o contexto tenha mudado nalguns aspetos, os elementos fundamentais da reflexão de Guitton ainda se aplicam ao nosso tempo, designadamente no que diz respeito aos alertas que faz contra as consequências do niilismo, cujos efeitos são hoje evidentes.”
A propósito desta edição, o Observador publica o prefácio de Guitton, escrito em 1969.
Liddell Hart considera que, entre todas as formas de ação concebíveis, a mais eficaz no longo prazo, a que mais segura e definitivamente pode vencer é o ato do homem que diz sem contemplações toda a verdade; e chama a esse homem um profeta.
Sem dúvida a ação do profeta, diz ele, subordina-se à do chefe, e o chefe deve ser simultaneamente estratega e filósofo; isso equivale a dizer que um responsável deve mostrar a sua preocupação de encarnar o que o profeta disse ser verdade, de o proporcionar nas circunstâncias, de se resignar ao mal inevitável. Mas a prudência do chefe não deve sacrificar o que é verdadeiro ao expediente. Mais vale, diz ainda Liddell Hart, que o chefe seja, tal como o profeta, lapidado; porque, «quem quer que se habitue a escamotear a verdade com o interesse da ação imediata vê que se altera o rigor do seu pensamento».
Liddell Hart exprime com vigor o que todos pensamos (mas baixinho), a saber: que a ciência, a técnica e, por consequência, a política, a estratégia, são apenas meios para aproximar o homem do seu fim último, que é a posse da verdade e da felicidade, aquilo a que os antigos chamavam sabedoria. Desde sempre a ciência foi distinguida da sabedoria; a ciência limita-se a saber, isto é, a ver de uma maneira transparente; a sabedoria é a arte da felicidade, mas da felicidade completa, soberana apesar das tristezas, calma nas derrotas. Entre a ciência e a sabedoria situa-se a arte, que é uma composição de ciência e sabedoria, uma vez que é uma prática baseada no saber.
A arte de fazer a guerra é uma técnica que, apesar do mal da morte com que lida, visa um bem: preservar uma nação da derrota radical que seria a perda da sua independência. Outrora, as derrotas significavam a escravatura de todo um povo, destinado a tornar-se uma máquina viva para o vencedor num tempo em que não havia máquinas mortas. Isso não mudou no essencial: uma derrota ainda significa uma amputação dos recursos dum país, uma diminuição da liberdade e, nos nossos dias, uma aniquilação. Foi por isso que as nações tanto honraram os vencedores das guerras.
A guerra implicou sempre combinações, manobras, cálculo anterior à ação e mesmo durante a ação. Não honramos o triunfador apenas pela sua sorte, nem sequer pela sua coragem, mas também pela sua astúcia. Ou seja, pelo conjunto da sua arte de vencer e convencer. E isso supõe, ainda que ele pareça agir por instinto, uma grande dose de reflexão. Em César ou em Napoleão, aquilo que definitivamente admiramos mais é o poder antecedente do pensamento.
Foi preciso muito tempo para que o povo honrasse o pensador no qual, antes, só via um mágico. Foi preciso que o povo compreendesse por fim que o saber serve para a felicidade ou para a infelicidade. E chegou o tempo em que o sábio passou a beneficiar do prestígio de que antes gozava o homem de guerra, fundador das dinastias, as antigas «potências».
No século XVIII, a guerra com estrategas como Guibert passou por fim a ser encarada como pensamento – ao mesmo tempo que a política, ou mesmo a estética, a legislação, a economia, a educação. Ainda somos filhos desse século raciocinador, razoável, muitas vezes destruidor, porque não há pensamento sem um desmoronamento das bases. Mas (coisa curiosa) houve tantas guerras nos séculos XIX e XX que a ação precedeu e por vezes chegou mesmo a sobrepor-se ao pensamento sobre a guerra. O logos sobre a guerra chamado «estratégia» foi empurrado e quase alucinado pelo problema urgente, inteiramente prático, de extrair um ensinamento da «última guerra» para preparar uma nova. Aqueles que procuraram elevar-se acima de um tal objetivo (o maior dos quais foi Clausewitz, depois de Jomini) não tiveram a receção que mereciam entre os filósofos. Os filósofos do século XX, que se ocuparam das ciências, das religiões, das estéticas, para se revitalizarem em experiências e elevarem a sua visão, quase nunca se ocuparam da estratégia.
Mas, no momento presente, parece que as coisas já não podem ser assim. E a mudança da estratégia operada pelo surgimento da dissuasão atómica tem como causa e consequência o facto de obrigar o estratega a colocar sob o seu olhar um campo bastante mais amplo do que o das armas e da sua logística, ou mesmo do que o das indústrias necessárias à guerra, mais amplo ainda do que a política – ao mesmo tempo que o político, o economista (e mesmo o filósofo), o homem simplesmente homem sentem que lhes diz respeito uma eventual guerra e, portanto, se interessam pela estratégia.
É esta relação que se estabelece num tempo atómico entre o pensamento e a estratégia que me encoraja a colocar esta pedra minúscula no edifício que se está a construir graças ao esforço convergente de todos os espíritos, tendo em vista o futuro da espécie humana.
Que ideia resulta destas reflexões?
Antes de mais, a de que a função do pensamento cresce no próprio exercício da violência, e de que está em marcha uma revolução; de que, para aprofundar o sentido do que se passa sob os nossos olhos, é preciso ultrapassar as especialidades da guerra, da política, do direito e da moral, e procurar ver as interligações destas diversas formas da ação-pensamento, ver tudo, com um só olhar e com o olhar mais simples.
Como se pode caracterizar a fase presente dos conflitos armados?
Dizendo que vemos coincidir o mito e a realidade, ou seja: por um lado, temos uma forma nova da guerra, que é uma estratégia de tipo psíquico e que se propõe agir sobre o inconsciente humano por meio de mitos; e, por outro lado, temos uma forma inédita de arma, baseada nos poderes de composição e libertação da matéria, que difere toto coelo de tudo aquilo a que chamávamos arma desde o sílex, o ferro e o fogo. É esta coincidência que é improvável e assinalável e que constitui o ACONTECIMENTO do século!
Para grande felicidade da espécie pensante e dos amigos da razão, Lenine e Hitler, que levaram à perfeição a estratégia dos mitos, as técnicas de ação sobre o inconsciente das massas, só dispunham de armas clássicas. E, se Hitler suspeitou da arma atómica, afastando da Alemanha os sábios israelitas, salvou (sem o saber) o mundo: o ódio nunca foi bom conselheiro. O que teria acontecido se Hitler possuísse a bomba de Hiroxima em 1944? Talvez o aspeto das coisas tivesse mudado. Nós beneficiámos de um afastamento mínimo, de uma incidência improvável, de uma suspensão que pode ser definida do seguinte modo: a ausência de coincidência entre o mito e o átomo, entre o máximo psíquico e o máximo físico.
Mas essa coincidência passou a existir sempre desde então, e tornou-se o dado permanente, o perigo essencial. É por isso que a estratégia está a entrar numa fase completamente nova. A estratégia contemporânea é diferente não apenas no grau: difere também na natureza em relação às fases antecedentes. Chamo a esta fase mito-nuclear. Ela traduz-se por uma expressão compósita, simultaneamente psíquica e física: estratégia da dissuasão.
Estas palavras ainda são equívocas, porque dão a entender que a estratégia continua a ser matéria de guerra, enquanto ela se tornou simultaneamente guerreira e revolucionária. Doravante, qualquer situação de guerra possível coincide com uma situação de revolução possível. A técnica da guerra, que implica uma ameaça para os corpos por meio de golpes mortais, alia-se a uma técnica de revolução ou de revolta que implica uma influência nos espíritos para operar mudanças de mentalidade e conversões. Aqui, o receio cujo objeto é a vitória. Ali, a subversão cujo objeto é a conversão.
É certo que os dois tipos de guerra se misturam; agem um sobre o outro; têm ligações. Desde o início, como se vê nas Cruzadas, houve na guerra uma propaganda de ideias, um apelo místico ao juízo dos deuses, de Deus. Mas, nos nossos dias (como se a humanidade se preparasse para um confronto último e lúcido), os meios de destruição e a sua complexa aliança tornaram-se objetos de pensamento e, no limite, técnicas que relevam de um cálculo e quase de uma matemática.
Muitos trabalhos sábios, públicos ou secretos, vão ser propostos aos homens sobre este tema acutilante, inevitável. Este é apenas um ensaio que propõe um método de pensamento sintético.
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Na medida em que intervém nos processos de violência a que chamamos revoluções e guerras, é por inteiro que o Pensamento deve intervir neles.
E como o Pensamento, encarado na sua plenitude, não considera apenas as causas, mas também os fins, não apenas o meio pelo qual se fazem guerras e revoltas, mas também a razão pela qual se fazem guerras e revoltas, seria pensar muito mal estas coisas pôr entre parênteses os problemas últimos, que são os problemas dos fins.
É evidente que as guerras e as revoluções derivam em última instância daquilo que os beligerantes ou os revoltados pensam sobre o significado último do homem, da vida, da morte, do que vem depois da morte, de Deus. Um povo impregnado de pensamento judaico, islâmico ou cristão não reage como um povo sem crença, um povo ateu, ocupado unicamente com a organização da terra. Definitivamente, a distinção dos meios admissíveis e dos meios interditos na guerra, o recurso à surpresa, à mentira, à violação da palavra dada, tudo isso supõe uma metafísica. Sacrificar ou não sacrificar as vidas de centenas de milhões de homens é um problema que resulta da conceção que se tem da vida humana e da sua finalidade. Pascal dizia: «A alma ser mortal ou imortal faz uma grande diferença na moral».
Bem sei que os estrategas se calam em domínios que consideram subjetivos, secretos ou privados e que não interessam às armas. E assim também aqueles que fazem as revoluções ou aqueles que se lhes opõem se submetem a essa lei de silêncio. Mas a nossa época lúcida (sobretudo depois do movimento de maio) já não suporta as ambiguidades, os mitos sagrados de outrora. E os sentimentos mais respeitáveis e que eram até agora intocáveis sem sacrilégio já não bastam para unir as consciências. Os jovens, imagem do mundo que há de vir, já não toleram as hipocrisias úteis, os santos fingimentos. O que não quer dizer que tenha diminuído o amor à pátria; quer dizer que ele precisa de ser motivado, convencido, pessoal e lúcido. Doravante, já não nos podemos calar durante muito tempo sobre o essencial, nem velar pudicamente, nem subtrair à contestação os princípios últimos em que baseamos a nossa conduta. E, se o ateísmo é uma questão que é colocada com toda a clareza inclusive pelas Igrejas, não é só porque os ateus são mais numerosos e mais poderosos do que antigamente – é porque cada homem está mais consciente do problema supremo e não quer resolvê-lo por costume ou por receio.
Por isso não calei, neste ensaio sobre a estratégia, as questões últimas, na medida em que nos nossos dias elas regem os comportamentos de paz, de ameaça e de guerra. Penso, tal como Albert Camus, que o problema do suicídio é o problema mais grave que se coloca ao homem. O suicídio, um ato humano que o animal não conhece, é um ato metafísico, «metantrópico», uma espécie de resposta irónica e desesperada à ausência divina, solução negra e simples para o problema da existência. Ora, na nossa época – como direi no fim desta obra – o problema do suicídio passa do plano individual para o plano coletivo e, pela primeira vez na história, a espécie humana no seu conjunto é livremente capaz de um suicídio recíproco. Assim sendo, a sua sobrevivência não tem que ver apenas com um querer-viver instintivo ou político, com um instinto de vida (aqui, o instinto já não basta para viver), mas com um ato de razão recíproco, com uma persuasão profunda de que a vida é boa para a espécie, de que o desespero de um não pode nem deve implicar a morte de todos. Este ato de razão livre, de confiança no homem e na existência, do qual está suspensa num futuro próximo a continuação da nossa espécie, é no fundo um ato de pensamento, e de pensamento respeitante às questões últimas; digamos a palavra: um ato metafísico. Por isso julguei dever criar uma palavra nova – metaestratégica – para designar o facto de o ato estratégico se tornar também um ato filosófico. É isso que permite desculpar a audácia deste livro escrito por um civil.
E agora devo dizer como foi composto este livro.
A bem dizer, não se trata de um livro, mas de uma coletânea de conferências proferidas em momentos diversos, separados por longos intervalos de tempo. Pensei em reformulá-lo, em uniformizar o estilo, em extrair a aparência da oralidade. Mas isso não teria tornado a obra menos imperfeita. E já não estamos na altura dos tempos livres e das realizações. Mantive a ordem cronológica.
Esta recolha reflete a história da minha geração, a que não participou na guerra de 1914 apesar de ter tomado consciência de si própria no tempo de Marne e Verdum, da Batalha da França; a que foi lançada na estranha guerra de 1940, que assinalou o advento de um novo tipo de guerra; a que viu aparecer novas formas de confronto em que o mais poderoso é derrotado pelo menos poderoso, guerras paradoxais que os poderosos designam por «subversivas»; a que ligou, mais do que qualquer outra, a guerra nacional à guerra social, e talvez à guerra civil; a que (sobretudo) viu a intervenção da arma absoluta, capaz de suprimir a guerra mas também a humanidade. Pergunto-me se terá havido uma geração à qual se tenha apresentado mais matéria, mais ocasiões, para discernir no fenómeno «guerra e paz» o que é essencial e o que é acessório e, consequentemente, para enfrentar os eventuais conflitos com mais flexibilidade, mais coragem lúcida. Que estranho período foi o de 1940-1970!
E eis a ordem que segue esta coletânea.
Em primeiro lugar, figura uma conferência que encontrei por acaso há dias e que deixei ficar tal qual estava por causa da data em que foi proferida. Corria o mês de maio de 1940. O tema era Hitler. Foi precisa alguma candura ou audácia para falar do homem então vivo e tão ameaçador de uma forma que queria que fosse justa, serena, razoável. E, contudo, este tema foi possível por causa dos documentos, como o estranho livro de Hermann Rauschning Hitler m’a dit, que veio a lume em Paris em 1939. Por lirismo ou calculismo, Hitler não dissimulava os seus projetos insensatos, os seus novos métodos, o seu profetismo monstruoso.
Em maio de 1940, estava bem colocado para os descrever. Acreditava mesmo que era um dever não só pensar em Hitler, como fazia a maior parte dos franceses, mas também pensar Hitler.
E, relendo este texto 30 anos depois, não o considerei assim tão cego; mantive-o na abertura desta obra porque ele faz ver a entrada na guerra na fase inédita em que se aplica ao conflito das nações os métodos das revoluções, em que a ação sobre o inconsciente das massas prepara a ação das novas armas e, no limite, as torna inúteis.
E já se vê a ideia que será o leitmotiv desse pensamento: a de que a arte da guerra consiste em evitar a guerra, agindo sobre a psique pela psique, pelo medo, pela paralisia e pela dissuasão. O que implica que se riposte com outros tipos de coragem para além da coragem guerreira. «Ele só era corajoso na guerra», diz Stendhal sobre um dos seus heróis.
Seguem-se duas conferências que resumem uma lição dada durante uma dúzia de anos na École de Guerre a convite do general de la Chapelle em 1952. Foi ele quem escolheu os temas. E disse-me: «É preciso que extraia uma espécie de lógica do ato de guerra, como fez num dos seus livros que me serviu em 1941-1942 para meditação: Le nouvel art de penser. Foi para obedecer a esta sugestão que preparei a conferência «A arte de pensar e a condução da guerra».
Depois (creio que foi no ano seguinte), o general de la Chapelle mandou-me chamar para me dizer: «Agora, vou pedir-lhe outro trabalho. A bem dizer, qualquer estratégia pressupõe uma filosofia latente. Clausewitz refletiu sobre as campanhas de Napoleão, tal como Jomini; mas foi mais longe do que Jomini (que admirava Sainte-Beuve). Porquê? Porque Clausewitz se tinha deixado penetrar pela metafísica: leu Kant, e leu sobretudo Hegel. Sem ter uma consciência clara disso, creio que é possível encontrar na formação e na inspiração de Foch a filosofia francesa tal como se manifesta em Descartes, Pascal, ou mesmo Bergson. Isto para lhe indicar o que lhe vou pedir: não podemos conhecer o nosso eventual adversário. Mas tudo leva a crer (e não digo isto para o desprezar, longe disso!) que esse adversário se inspirará em Karl Marx, que por sua vez se inspirou em Hegel. Ora, portanto, você vai refletir intensamente sobre esta questão que lhe coloco. Sendo um historiador da filosofia, já deve ter dissecado Hegel. Conhece o tipo de pensamento dele, os seus postulados, os seus métodos. Peço-lhe então que nos diga de que modo esse pensamento hegeliano e marxista influencia os princípios e os métodos da guerra moderna. Não seja muito técnico: tenha dó dos guerreiros! É importante para os alunos da École de Guerre e para os adidos militares dos exércitos estrangeiros que o vão ouvir e entre os quais vão estar – não esqueça – americanos e russos».
Eis o mote que me levou a refletir sobre Hegel e a guerra. E a fonte da segunda conferência.
Outra conferência dizia respeito, de uma maneira mais geral, às relações entre o ato de ver (o pensamento) e o ato de querer (a ação). A sua substância pode ser encontrada no meu livro Invitation à la pensée et à la vie. Não a reproduzi aqui.
Em contrapartida, acrescentei um quarto capítulo sobre a «dissuasão» que é uma reflexão sobre as novas conceções (probabilísticas) da estratégia. Nele procuro enfrentar o problema do futuro humano, considerado na sua maior generalidade.
Permitam-me que dedique este livro aos meus camaradas do Exército com quem tanto aprendi no domínio do pensamento. E também que inclua o nome do meu mestre mais próximo, o general Weygand, que durante os 30 anos em que privei com ele me levou a penetrar no cérebro daquele a quem ele chamava «o meu comandante» e que era um dos mais puros génios estratégicos desse tempo.
2 de fevereiro de 1969