A formalidade que faltava para dissolver o Parlamento teve um momento de rara informalidade. Ao contrário do que é habitual na era Marcelo houve um “lanchinho” e os conselheiros puderam acercar-se de salgadinhos e sandes de queijo e fiambre antes da mãe de todas as reuniões políticas. Passados esses raros 20 minutos de conversa, onde aproveitaram para trocar impressões sobre o momento que o país atravessa, começou o Conselho de Estado sobre a dissolução da Assembleia da República com o Presidente da República a ter o conforto que queria: todos os conselheiros se pronunciaram a favor da dissolução, à exceção de Domingos Abrantes e Francisco Louçã, indicados pelos parceiros da geringonça que se recusaram a viabilizar o Orçamento do Estado, PCP e BE.
Os conselheiros sabiam que estavam perante um momento que ficava na história da democracia e muitos deles fizeram por marcar a sua posição. Nem todos falaram sobre a data das eleições, mas — entre os que se pronunciaram sobre questões de calendário — a maioria defendeu eleições mais tarde do que meados de janeiro. De Marcelo, não ouviram uma única data.
Cavaco Silva mais próximo das datas propostas por Rangel
A ordem de intervenções ia seguindo o protocolo de Estado: Ferro Rodrigues, António Costa, João Pedro Caupers (presidente do Tribunal Constitucional), Maria Lúcia Amaral (Provedora de Justiça), Miguel Albuquerque, José Manuel Bolieiro e Ramalho Eanes. Nenhuma destas personalidades mencionou um calendário para a realização de eleições. Até que chegou a vez de Aníbal Cavaco Silva.
O ex-Presidente da República tomou da palavra e começou por defender a dissolução da Assembleia da República, sem se pronunciar sobre datas em concreto. Ainda assim, e de acordo com relatos feitos ao Observador por fontes que estiveram na reunião, Cavaco Silva acabou a defender um calendário mais largo e que as eleições não acontecessem “nunca antes de março“, dando como argumento a necessidade de se fazer “debate público alargado”.
Ora, este calendário está mais em linha com o que Paulo Rangel tem defendido (o eurodeputado e candidato à liderança do PSD já defendeu publicamente eleições no final de fevereiro ou mesmo no início de março) do que com o que Rui Rio tem proposto — na audiência com o Presidente da República, o líder do PSD defendeu a realização de eleições legislativas a 16 de janeiro.
Politicamente, este facto tem relevância: depois de ter mantido uma relação distante com Rui Rio nos últimos anos, Cavaco Silva parece ter rompido de vez com o líder do PSD ao ponto de ter acusado o líder do seu partido de fazer uma oposição débil ao Governo socialista.
O também antigo primeiro-ministro lembrou o exemplo dele próprio quando chegou a primeiro-ministro em 1985. Recordou que tinha sido eleito no Congresso da Figueira da Foz em maio desse ano, a Assembleia da República tinha sido dissolvida em junho, mas o Presidente Ramalho Eanes tinha marcado eleições apenas para novembro, dando tempo a todos os partidos para se organizarem para eleições.
Rio aproveita argumento de Cavaco e atira eleições para abril
Rui Rio foi quem, a par do conselheiro Domingos Abrantes, defendeu de forma mais veemente que as eleições deviam ser quanto antes. Segundo fontes que estiveram na reunião, Rio terá mantido uma postura institucionalista, não se mostrando agastado com Marcelo Rebelo de Sousa, nem qualquer outro estado de alma. O presidente do PSD fez a sua exposição perante os conselheiros, mantendo o princípio orientador: as eleições devem acontecer o mais rápido possível.
Rio terá dito ainda que o primeiro-ministro fez bem em não ceder ao PCP e ao Bloco de Esquerda e que classificou o orçamento chumbado como um “orçamento mau“. O líder do PSD rebateu os argumentos que defendem que eleições em janeiro atiraria o período de pré-campanha para a quadra festiva do Natal e Ano Novo e lembrou que as presidenciais realizaram-se sempre em janeiro e que isso nunca constituiu um problema de falta de debate nessas eleições.
Ainda assim, Rio acabou por tirar outro coelho da cartola: pegando nas palavras de Cavaco Silva, o líder social-democrata defendeu junto dos conselheiros que, se a grande preocupação de todos for, de facto, dar tempo ao maior partido de oposição para se preparar para ir a votos, então que se desse mesmo mais tempo e que se marque as legislativas para abril.
Rio pôs-se, de resto, nos sapatos de Cavaco Silva em 1985. Nessa altura, o então líder do PSD teve quase cinco meses para se preparar para ir a votos e não ia sequer a votos contra um primeiro-ministro em funções, como será o caso de Rio ou de Rangel — Mário Soares tinha caído nesse ano e era Almeida Santos o cabeça de lista do PS.
Além disso João Caupers, presidente do Tribunal Constitucional, levantou a questão do risco de ingovernabilidade que se coloca nas próximas eleições e o que acontecerá se não houver uma maioria clara. Ora, perante este argumento, Rio aproveitou para ir mais longe no raciocínio: se houvesse de facto a preocupação em entregar condições de igualdade ao maior partido de oposição para disputar legislativas, então as eleições não seriam nem em meados nem no final de janeiro, nem em fevereiro, nem em março. Mas em abril.
Houve outros conselheiros de Estado que, tal como Cavaco Silva, também defenderam eleições antecipadas como o foi o caso de Marques Mendes, que terá fundamentado com dados objetivos a sua posição, Francisco Louçã, António Lobo Xavier, Leonor Beleza. A escritora Lídia Jorge — que ao contrário de todos os restantes que se pronunciaram sobre o assunto, nunca exerceu funções governativas ou partidárias — não deixou de se pronunciar sobre a situação política e a posição que tinha sobre a data das eleições. Olhando ao histórico das reuniões do Conselho de Estado, os conselheiros indicados do setor das artes e cultura ou ciência, optam por ficar à margem de questões especificamente relacionadas com o combate político ou que motivam disputas partidárias. Lídia Jorge, que é a mais recente conselheira de Estado, não teve qualquer problema em deixar clara a sua posição sobre o assunto.
Costa diz que eleições antecipadas são “mal menor”
Se Francisco Louçã e Domingos Abrantes (foi o mais duro de todos os conselheiros, dizendo que o Presidente não podia estar preocupado com a vida interna dos partidos) fizeram críticas claras ao Presidente e às eleições antecipadas, António Costa — que sempre disse que respeitava a decisão presidencial — deu força à decisão do chefe de Estado em dissolver a Assembleia da República.
O primeiro-ministro tinha vindo a dizer, antes e depois do chumbo, que estava “preparado para tudo”, que não se demitia e que governaria em duodécimos se fosse preciso. Houve até fontes no PS a apontar a Marcelo por não dar a possibilidade de o Governo apresentar um novo orçamento.
Mas no Conselho de Estado, segundo fontes presentes na reunião, Costa quis deixar tudo claro. O primeiro-ministro disse que não faria sentido aprovar um “segundo orçamento”, já que os problemas levantados pela esquerda eram todos sobre questões extra-orçamento, o que significa que um novo documento não resolveria o problema. Explicou depois, ponto por ponto, as razões pelas quais não podia ceder à esquerda em questões como o salário mínimo, a exclusividade dos médicos ou a legislação laboral.
O primeiro-ministro diria mesmo que consegue governar em duodécimos, mas por 5 ou 6 meses, daí que concorde com a marcação de novas eleições, a que se referiu como um “mal menor”, já que concordou que o país não poderia estar em duodécimos até 2023.
Marcelo agradeceu, vai refletir, mas quem decide é ele
Após ouvir todos os conselheiros, o Presidente da República fez questão de fazer uma intervenção. Agradeceu as opiniões dos conselheiros, admitiu refletir sobre elas, mas também lembrou que a marcação da data das eleições é uma prerrogativa da exclusiva responsabilidade do Presidente. Não do Conselho de Estado.
Nessa mesma intervenção, Marcelo Rebelo de Sousa explicou o porquê de ter avisado, logo antes do chumbo do Orçamento, que iria marcar eleições antecipadas se o documento não fosse aprovado.
No fim da reunião, que durou cerca de três horas ficou uma história bem mais sucinta, com um comunicado tão curto como o habitual:
O Conselho de Estado, reunido sob a presidência de Sua Excelência o Presidente da República, hoje, dia 3 de novembro de 2021, no Palácio da Cidadela de Cascais, nos termos e para efeitos da alínea e) do artigo 133.º e da alínea a) do artigo 145.º da Constituição, deu parecer favorável, por maioria, à proposta de Sua Excelência o Presidente da República de dissolução da Assembleia da República.”
Marcelo anunciaria pouco depois que irá comunicar a sua decisão esta quinta-feira 4 de novembro, às 20h00. Sabe-se que não irá dissolver de imediato a AR porque há trabalhos parlamentares agendados, pelo menos, até sexta-feira. Embora o Presidente da República não se tenha referido especificamente a nenhuma data, vários conselheiros — pelas conversas paralelas que vão tendo com o Presidente, inclusive na parte do inovador “lanchinho” — ficaram com a sensação que o dia mais provável será dia 30 de janeiro. Isto se não houver acidentes de percurso. O Presidente teve um, no sentido literal: ao sair do Palácio da Cidadela: bateu com a traseira do carro num pilar. Foi só chapa e o Chefe de Estado seguiu caminho ao volante. Amanhã há mais.
*Artigo atualizado com a contextualização da intervenção da conselheira de Estado e escritora Lídia Jorge