De dedo espetado e num tom crispado, António Costa surgiu no debate pós-autárquicas com várias contas políticas para ajustar que foi somando em campanha. Mas a oposição — e sobretudo o PSD — também vinha com a arma carregada com as mesmas munições que já estavam a encher o depósito do primeiro-ministro. Foi um verdadeiro barril de pólvora que resultou, inevitavelmente, em várias explosões do primeiro-ministro.
Até Catarina Martins acabou por intervir nessa troca de tiros entre a bancada do PSD e António Costa para lhe chamar “uma espécie de debate eleitoral” entre a direita e o secretário-geral do PS quando ela estava ali para “debater com o primeiro-ministro”. Uma ajuda bloquista a Costa que ficou por isto mesmo — o primeiro-ministro socialista está a negociar, neste momento mais tenso, o próximo Orçamento do Estado com o Bloco e o PCP e, nesse capítulo, há muitas dessintonias com Catarina Martins.
Com o PCP, as negociações não parecem melhores, embora Costa tenha investido tudo aqui na esperança de um acordo final que procurou logo depois do debate em reuniões com os parceiros de outros tempos que quer que se mantenham parceiros.
O pedido de desculpa pendurado
Três letras apenas, mas toda uma bazuca de problemas políticos quando o dinheiro ainda nem chegou ao país. O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) trará dinheiro a fundo perdido para as empresas e Costa tentou focar-se nessa parte, mas a direita passou grande parte do debate a apontar para outro dado: a acusar Costa de ter passado a campanha a fazer aproveitamento político e em como o plano lhe terá saído furado.
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Até foi o CDS a pegar logo no tema referindo-se à “transformação do PRR num livro de cheques socialista”. O PSD veio de seguida e não largou o mesmo argumento, com Rio a referi-lo e todos os deputados da bancada daí para a frente a seguirem-lhe o exemplo até à irritação sonora de Costa (ver abaixo).
A dada altura, foi o adjunto de Costa no PS, José Luís Carneiro, que veio em auxílio do primeiro-ministro, reclamando a vitória eleitoral autárquica e lamentando que “depois de uma campanha em que [a oposição] gastou o tempo a atacar o secretário-geral por fazer campanha e falar dos seus compromissos para o país”, não tenha “aproveitado esta oportunidade” para colocar dúvidas.
Costa aproveitou a deixa para introduzir no debate as queixas da oposição à Comissão Nacional de Eleições sobre as violações da lei eleitoral e o recurso a medidas e instrumentos do Governo em campanha, e como elas não tiveram seguimento. E desabafou que esperava “um pedido de desculpas”. Não chegou.
As maiores irritações de Costa
O clima pós autárquicas fez-se sentir neste primeiro confronto depois dessa batalha eleitoral. No PSD pelas referências várias ao que António Costa fez em campanha, mas também no lado socialista, com o primeiro-ministro a não conseguir evitar provocações, como mostrou logo na sua primeira intervenção no debate quando felicitou, com ironia, o CDS por “ter sido o único partido a não perder uma única câmara” (só tem seis) e por ter “contribuído generosamente” para que o PSD aumentasse o número de câmaras.
Costa não chegou mesmo a evitar uma referência à vida interna do CDS, ao pedir a Cecília Meireles (crítica de Francisco Rodrigues dos Santos e dona do lugar que impede a entrada do líder democrata-cristão no Parlamento) para que entregasse os parabéns ao presidente do partido — ainda na semana passada, as dificuldades de comunicação entre direção do partido e grupo parlamentar voltaram a fazer correr muita tinta.
Certo é que o inicial tom jocoso depressa mudou para uma irritação bem mais vocal. Com Rui Rio a questionar a estratégia do Governo para a TAP e a perguntar se não era mais avisado que a empresa fosse privada, Costa espetou o dedo para garantir que “ninguém, ninguém, ninguém, nem vossa excelência, previu que isto pudesse acontecer”, referindo-se à pandemia e ao impacto na aviação civil.
Perante a insistência de Rio, Costa voltou no mesmo registo: “Não sabe que, sendo pública ou privada, a pandemia paralisou à escala global toda a aviação civil? Acha que nas companhias que eram privadas o Estado não injetou dinheiro?”.
Depois, com Filipa Roseta, já na segunda ronda de perguntas, e quando a deputada do PSD falou nos problemas na Habitação e no que não foi feito, recuperando os tempos de Sócrates, questões como a “corrupção” e a ligação a “construtores”, Costa disparou logo com um “ainda bem que vossa excelência percebeu tudo, mas isso é mais grave, porque omitiu o que percebeu”, justificando o atraso na estratégia nacional de habitação com a pandemia.
E foi por ali mesmo, pelo lado do PSD, que aconteceu o momento mais exaltado, quando o deputado e vice do partido André Coelho Lima tocou na ferida “autárquicas” e falou no “roadshow” que o PSD acusa Costa de ter feito na campanha com o PRR na mãos. “Correu-lhe mal, porque em todos estes municípios [onde deixou promessas] perdeu as eleições”, atacou para logo depois concluir que “com esta tentativa de viciar o voto do eleitor, desprestigiou a democracia”.
Costa endireitou o casaco pela gola antes de se levantar para a resposta e quando tomou a palavra disparou logo um redutor “Coelho Lima, não é?”. A partir daí foi sempre a subir no tom com vários momentos de pateada no plenário — a bancada do PSD protestava contra Costa com o barulho que conseguia produzir enquanto o primeiro-ministro descarregava uma bazuca de considerandos sobre o deputado para, no final decretar que o PSD não conhece os dossiês, nem o PRR nem o da descentralização de competências para os municípios. Pelo meio ficou a frase do dia:
“O senhor não me conhece de parte nenhuma por isso não autorizo qualquer juízo moral sobre o meu comportamento como eu não faço sobre o seu”. António Costa a não conseguir conter algum agastamento que vinha em crescendo.
O parceiro preferido (e preocupado)
O tempo é de pressão. A apenas quatro dias da entrega do Orçamento do Estado, e tendo o PCP hipótese de ser o parceiro com maior vantagem negocial — sobretudo se voltar a ficar sozinho em jogo, como aconteceu no ano passado –, os comunistas quiseram subir o tom e Jerónimo dedicou-se a enumerar todas as pastas em que PS e PCP não estão de acordo. O partido tem, aliás, feito questão de marcar essas diferenças, tendo ainda na semana passada levado, mais uma vez, a votos no Parlamento mais uma proposta para aumentar o salário mínimo… mais uma vez, chumbada com a ajuda do PS.
Desta vez, Jerónimo recapitulou essas discordâncias e desabafou para Costa: “Com franqueza, são esses os sinais que quer dar?”. O primeiro-ministro vinha preparado: assim que ouviu as queixas do parceiro preferido, tirou uma folha dos seus apontamentos e disparou a lista de medidas dos comunistas que adotou no último Orçamento, do pagamento dos salários em lay-off ao alargamento das creches gratuitas — passos que o PCP quer consolidar este ano.
Por isso, se Jerónimo se confessou “preocupado”, Costa tratou de tranquilizar o partido vizinho, exercendo também a sua própria pressão: “Tenho a certeza de que o PCP não falhará ao compromisso perante o país” (e perante o PS, faltou acrescentar).
Antes disso, já tinha elogiado os comunistas por se terem “mantido na luta” mesmo nos difíceis tempos de pandemia, ou seja, continuado a viabilizar Orçamentos sem abandonar o barco, numa tentativa de colar a responsabilidade pela estabilidade política ao PCP.
Os “b’s”. De Bloco e de bloqueio
A história do diálogo entre Bloco de Esquerda e Governo neste debate foi, sobretudo, uma sucessão de bloqueios. O tom de Costa foi sempre cordial, mas a certa altura lá espetou a farpa, enquanto respondia a Jerónimo de Sousa: se o PCP se “manteve na luta” e ficou ao lado do Governo no ano passado, houve quem se “afastasse” (leia-se o Bloco).
A desconfiança ficou e os bloquistas não pareceram satisfeitos com as respostas que trouxeram do debate com o primeiro-ministro. Problema número um: a necessidade de fixar profissionais no SNS, um dos temas que levaram ao impasse do Orçamento anterior. Catarina Martins pediu atrativos para que estes trabalhadores não fujam para o setor privado, Costa respondeu com o número de contratações no SNS, e a conversa acabou sem solução, mas com uma promessa: “nas próximas horas”, disse Costa, teriam oportunidade de falar sobre o assunto — provavelmente em reuniões orçamentais ao mais alto nível.
Outro dos pontos em que o Bloco está a apostar na negociação é o das pensões, com foco no fim do fator de sustentabilidade, que ainda representa um corte de 15,5% para alguns pensionistas com décadas de descontos. Sem sucesso: Costa recusou acabar com esta fonte de receita porque, garantiu, assim estaria a pôr em risco a sustentabilidade do sistema e as reformas das próximas gerações.
Por fim, outro tema em que as conversas não têm evoluído, já desde o ano passado: a pasta dos direitos laborais, com o BE a insistir em revogar as normas do tempo da troika. Também aqui não pareceu haver grande margem: o Governo já apresentou a sua “agenda do trabalho digno” e é para aí que remete; o Bloco acha as medidas insuficientes e pede mudanças como o aumento das indemnizações por despedimento (“esse não é o problema central”, replicou prontamente Costa).
O bate boca acabou com Catarina a garantir que, por este caminho, o país ficará “condenado aos baixos salários”. E a esquerda condenada a entendimentos, no mínimo, difíceis.
A “revolta geral” sobre Rendeiro e offshores
O mix das notícias da fuga de João Rendeiro com as notícias sobre os Pandora Papers, que vieram revelar as ligações de dezenas de figuras mundiais a offshores, tornaram o tema da evasão fiscal um dossiê incontornável neste debate. Costa aproveitou até para reagir ao caso do antigo banqueiro português e mostrar a sua “perplexidade” sobre o assunto: “Todos partilhamos a revolta geral e perplexidade com que tal foi possível”.
A culpa não foi, ainda assim, da lei nem num caso nem outro, assegurou Costa: por um lado, questionado sobre o deputado do Chega, Diogo Pacheco Amorim, sobre medidas para evitar o caso Rendeiro, Costa disse-se “surpreendido” pela pergunta”, por considerar que não houve qualquer lacuna na lei, mas antes na sua aplicação. E foi mais longe, sem resistir a deixar uma farpa ao Chega: “Se tem alguma medida concreta a propor para prevenir situações como estas, estamos disponíveis para apreciar. Tal como apreciámos negativamente medidas como a castração química e outras, temos sempre a esperança que um dia o Chega apresente uma proposta relevante concreta e útil” (Pacheco Amorim anunciaria, efetivamente, a proposta já no final do debate).
Quanto às offshores, as perguntas sucederam-se em várias bancadas (BE, PAN, PEV) que pediram ao Governo medidas mais restritivas, com Costa sempre a recordar que no último Orçamento foram adotadas duas normas nesse sentido: a proibição de apoios públicos a entidade sediadas em offshore e o agravamento de taxas de IMI e IMT na aquisição de imóveis por parte dessas entidades. Tudo, garantiu, provas do empenho do Executivo em “combater essa chaga dos paraísos fiscais”.
Aqueles dois “irritantes” da semana passada que não faltaram
A semana negra de António Costa não foi aproveitada pela oposição neste debate e só em dois momentos totalmente isolados e sem contaminação para o restante debate surgiram duas das questões mais controversas dos últimos dias. A primeira chegou pelos Verdes, quando falou na “debandada” por “constrangimentos financeiros” nas direções de serviços públicos — uma referência à saída do presidente da CP contestada pelo ministro Pedro Nuno Santos que aproveitou para atirar ao ministro João Leão. Costa garantiu não haver “debandada geral. Estamos aqui todos, aqui todos firmes”, disse tentando afastar a ideia de “remodelações”.
A semana negra de Costa em três actos (que ainda termina com negociações à esquerda)
O outro tema quente era o dos “equívocos” na substituição — entretanto travada na praça pública pelo Presidente da República — do Chefe do Estado Maior da Armada. No CDS, Pedro Morais Soares a classificar de “lamentável” o episódio que envolveu ministro da Defesa, primeiro-ministro, Presidente da República, chefe da Armada e o vice-almirante da vacinação, Gouveia e Melo. Costa foi tão lacónico como o comunicado do Presidente na noite em que o primeiro-ministro foi a Belém: “Houve de facto alguns equívocos e estão todos sanados”.