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O dia em que o modernista Raul Leal vestiu um pijama de seda, atuou num salão de variedades e acabou detido em Madrid

Há 106 anos, Raul Leal estreou-se num palco madrileno como "Abdali", vestido com um pijama de seda. Com recurso a documentos inéditos, o Observador reconta o caricato episódio do modernismo português.

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Raul Leal é provavelmente o mais singular dos modernistas portugueses. Nascido em 1886, em Lisboa, cidade onde também morreu, em 1964, ficou conhecido pela participação no número 2 da revista Orpheu e noutras revistas associadas ao primeiro modernismo português, como a Portugal Futurista e a Athena, onde apresentou textos de caráter teórico estético-filosófico. Escritor e filósofo, levou uma vida turbulenta, marcada por alguns famosos escândalos, como a publicação de “O Bando Sinistro” (1915), em que criticou abertamente o governo de Afonso Costa, e Sodoma Divinizada (1923), no âmbito da polémica da chamada “Literatura de Sodoma”, desencadeada pela Liga de Ação de Estudantes de Lisboa contra livros considerados “imorais”. Menos conhecido é o caso, igualmente escandaloso, que levou à sua detenção em Madrid, a 23 de abril de 1916. O episódio envolve uma conhecida sala de espetáculos madrilena, uma audiência muito descontente, um pijama oriental de seda e um pseudónimo exótico.

Em 1915, Raul Leal, que tinha passado uma temporada em Paris no ano anterior, decidiu partir para Espanha, onde procurou estabelecer-se enquanto artista. Pouco se sabe acerca do seu périplo espanhol além do que foi relatado pelo próprio nas cartas enviadas para Portugal, para amigos como Fernando Pessoa, e por Aníbal Fernandes, responsável pela edição de Sodoma Divinizada lançada em 2010 pela Guimarães. De acordo com Fernandes, durante a passagem de Leal por Madrid, o artista viu-se envolvido num incidente que culminou com a sua detenção pela polícia espanhola: vestido com um pijama de seda oriental, comprado a “peso de ouro” na capital francesa, Leal teve de ser levado pelas autoridades depois de ter respondido com um manguito ao desagrado do público que assistiu à sua performance, a que deu o nome “Abdali, Príncipe de la Muerte”.

O episódio, que até recentemente só se conhecia na versão de Fernandes, foi recuperado no ano passado por Ricardo Vasconcelos, que encontrou evidências documentais da sua ocorrência. No número de dezembro de 2021 da revista Pessoa Plural, o investigador e professor universitário divulgou um conjunto de notícias publicadas nos jornais de Madrid em abril de 1916 que confirmam o incidente relatado por Aníbal Fernandes, que o terá ouvido do próprio Raul Leal. Recorrendo ao trabalho pioneiro de Vasconcelos, e com acesso a materiais até agora inéditos, o Observador reconta a aventura espanhola de Leal e como o artista português acabou detido depois de ter subido ao palco de uma famosa sala de espetáculos madrilena.

Documentação inédita: assento de batismo (Paróquia de São José, Lv B31 - Cx 10) e óbito de Raul Leal (8ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa, liv. de óbitos, Vol. 8 de 1964, u.i. 1619)

Imagens cedidas pelo ANTT

“Mas que vai ele fazer a Sevilha?”: a partida de Raul Leal para Espanha

Não é possível saber quando Raul Leal decidiu partir para Espanha, mas a decisão já estaria tomada no final de novembro de 1915, quando Mário de Sá-Carneiro pediu a Fernando Pessoa que o avisasse quando o “Dr. Leal” partisse para Sevilha. Alguns autores, como Aníbal Fernandes e Enrico Martines, sugeriram que o artista se “autoexilou” para fugir ao escândalo que a publicação de “O Bando Sinistro” teria provocado. Ricardo Vasconcelos não subscreve esta tese. Na opinião do investigador, Leal deixou Portugal “com a ideia das artes”. Em entrevista ao Observador, o investigador lembrou que, por aquela altura, o próprio Pessoa estava a publicar textos muito mais violentos contra o poder estabelecido. Também nos jornais da época, como O Thalassa, é possível encontrar sátiras “brutais” contra a República.

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“Não me parece que seja assim tão óbvio que Leal se sentisse na obrigação de fugir. Podemos dizer que houve uma desilusão com Orpheu? Talvez. Com o meio cultural lisboeta? Talvez. Mas a própria designação de ‘autoexílio’, utilizada por Enrico Martinez, tem alguma ambiguidade. Pode ser muita coisa — um ‘autoexílio’ pode acontecer por razões políticas ou porque simplesmente se quer experimentar outras coisas”, apontou Ricardo Vasconcelos. “No caso de Raul Leal, acho que foi uma mistura de coisas. Não me parece que seja muito óbvio que tenha sido por causa de uma perseguição política ou que o clima fosse assim tão inóspito que o obrigasse a fugir.” Lembrando o caso de Sá-Carneiro, que dois anos antes tinha regressado a Lisboa fugindo da guerra, acabando depois por regressar a Paris, o investigador sugeriu que talvez Leal tivesse escolhido “uma opção idêntica”, procurando em Espanha uma carreira artística internacional e “o diálogo com as vanguardas, com o Futurismo e Marinetti”, que não lhe era possível manter em Lisboa.

A viagem de Raul Leal, cujo propósito Mário de Sá-Carneiro parecia não conhecer (“Mas que vai ele fazer a Sevilha? Você sabe?”, questionou) estaria dependente de questões monetárias, uma vez que o poeta de Indícios de Oiro perguntou a Pessoa se lhe parecia que Leal sempre tinha arranjado “dinheiro”. A referência sugere que os problemas financeiros do artista português, referidos de forma recorrente nas suas cartas para os amigos em Portugal, eram anteriores à sua partida de Lisboa.

Nem sempre tinha sido assim. Filho de uma importante figura do mundo das finanças portuguesas, Alfredo de Oliveira Sousa Leal, rico e inteligente homem de negócios, e de uma sobrinha do diretor da Biblioteca do Vaticano durante o pontificado de Pio IX, Adelaide Cristina Lambruschini Repeto Dindi de Sousa Leal, natural do Rio de Janeiro, Raul Leal cresceu rodeado de todas as comodidades. Em 1913, três anos após ter assumido o cargo de subdelegado do Ministério Público em Lisboa, recebeu uma avultada herança que lhe permitiu deixar o emprego e dedicar-se exclusivamente às artes. Em pouco mais de dois anos, gastou todo o dinheiro, esbanjando-o em França, para onde viajou no final de 1913 com o intuito de assistir à estreia de Parsifal, de Richard Wagner, na Ópera de Paris. Terá sido nessa altura que, segundo o próprio, terá conhecido o fundador do movimento futurista, Filippo Marinetti. Quando regressou a Portugal, a tempo de participar nas reuniões de preparação da revista Orpheu, na Cervejaria Jansen, pouco ou nada sobrava do dinheiro que tinha recebido.

“Imagine você que nos fins de março, estando ainda em Sevilha, pensei tão profundamente no suicídio que até à minha mãe escrevi uma carta tristíssima expondo, por meias palavras, a minha resolução.”
Raul Leal em carta a Fernando Pessoa (7 de maio de 1916)

Leal voltou a ser tema de conversa entre Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa em dezembro de 1915. Numa carta escrita no dia 24 desse mês, Sá-Carneiro referiu que o artista, com quem então se correspondia regularmente, tinha mostrado interesse em regressar a Paris. O poeta tentou dissuadi-lo, “pintando-lhe em negras cores a vida dos artistas franceses e dizendo-lhe que achava da mais grave imprudência a sua vinda (…) em mira de arranjar contrato para mímicas ou cinematógrafos”. A referência a “mímicas ou cinematógrafos” é, na opinião de Ricardo Vasconcelos, um indício “claro” de que Raul Leal, já em 1915, teria o desejo de fazer algum tipo de performance, talvez semelhante à que apresentou no Salón Madrid, um ano depois. Sá-Carneiro voltou a falar em mímicas em janeiro de 1916, referindo-se em tom de gozo ao “Dr. Leal mímico”. “Ao menos não sou só eu que estou doido”, disse a Pessoa.

Raul Leal terá partido para Espanha no final de 1915 ou na primeira metade de janeiro de 1916, porque, no final desse mês, encontrava-se em Sevilha. A nova morada é confirmada por uma carta escrita entre 27 e 30 de janeiro a Mário de Sá-Carneiro, que a remeteu posteriormente a Pessoa a 8 de fevereiro. Nessa carta “extraordinária”, Leal deu a entender que teria perdido a vontade de sair de Portugal quando chegou a Espanha: “Quer você saber a ânsia aflitiva que eu tive? De me apear numa aldeia estupidíssima do Alentejo e de ali passar o tempo que queria passar em Sevilha…”. “Felizmente”, conteve-se, lembrando-se que depois não teria como sair dali e que acabaria por se “despedaçar num deserto”. A missiva, que está no espólio de Fernando Pessoa na Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), em Lisboa, foi escrita em papel timbrado do Café de La Perla, que ficava entre o número 6 da Calle Granada e o número 41 da Calle Tetuan. Fundado em 1870, o Perla era um dos estabelecimentos mais elegantes da cidade. A esquina onde ficava era conhecida como esquina de La Perla.

Leal ficou em Sevilha pelo menos até ao final de março de 1916, quando sofreu uma depressão profunda que o levou a ponderar o suicídio. A ideia de se matar, que lhe passaria pelo menos uma outra vez pela cabeça durante a temporada em Espanha, estaria relacionada com os problemas financeiros que nunca conseguiu ultrapassar durante a sua estadia por terras espanholas. Numa carta enviada a Pessoa no final de março, confessou ter pensado “tão profundamente” na própria morte que escreveu à mãe “uma carta tristíssima expondo, por meias palavras” a sua “resolução”. Assustada, esta apelou ao seu outro filho que “descobrisse maneira de mudar” as suas “circunstâncias” em Espanha. Carlos, dois anos mais velho do que o irmão (nasceu a 21 de março de 1884), ter-lhe-á enviado algum dinheiro, que possibilitou a Leal sair de Sevilha e mudar-se para Madrid, porém, “em condições” que considerava “pouco favoráveis”. “Enfim, ele fez o que pôde”, lamentou-se o escritor. O pai de ambos tinha morrido há quatro anos.

As primeiras quatro páginas da longa carta de Raul Leal a Mário de Sá-Carneiro, hoje no espólio Fernando Pessoa na Biblioteca Nacional de Portugal

BNP/Espólio 3

Em Madrid

Raul Leal abandonou Sevilha no final de março de 1916. Desconhecem-se os seus passos até 23 de abril, quando se apresentou no Salón Madrid. Criado em 1907, ficava no número 7 da Calle Cedaceros, perto da Porta do Sol, num edifício que ainda hoje existe e que é conhecido pelo nome que lhe foi dado depois, Cine Bogard. O Salón Madrid era uma sala de espetáculos de variedades, um tipo de espaço muito popular na capital espanhola na primeira década do século XX, onde era possível assistir a um espetáculo “completo”, com peças de teatro e também filmes. Segundo Ana Suárez Perales, que escreveu sobre o teatro em Madrid, o espaço era, naquele tempo, o mais interessante do género em Espanha. Em 1920, reformou-se como sala de variedades, passando a funcionar exclusivamente como teatro. Passou então a chamar-se Teatro Rey Alfonso. Dizia-se que costumava ser visitado pelo rei Afonso XIII, que aí se encontrava com a sua amante, a atriz Carmen Ruiz Moragas.

Foi, portanto, num espaço emblemático da cidade de Madrid que Raul Leal se apresentou publicamente a 23 de abril de 1916, um domingo, no âmbito de um evento de “cinema e variedades”. O espetáculo foi noticiado no dia anterior, 22 de abril, pelos jornais madrilenos, que divulgaram os diferentes artistas, espanhóis e estrangeiros, em cartaz, mas sem adiantar o caráter das performances agendadas. Entre a lista de artistas contava-se Encarnación López Júlvez, conhecida por La Argentinita, figura cimeira do flamenco na primeira metade do século XX que travou amizade com José de Almada Negreiros e que visitou Portugal em 1925. Desconhece-se como é que Leal acabou integrado no grupo. De acordo com a biografia do artista publicada no volume 1915 — O Ano de Orpheu, que assinalou o centenário da revista, da autoria de Márcia Seabra Neves, o artista teria sido contratado por uma companhia de bailado ambulante, o que explicaria a sua presença na sala de espetáculos madrilena.

Para Ricardo Vasconcelos, que não encontrou qualquer indício que explique como Leal apareceu no Salón Madrid naquele dia de abril, essa permanece uma das grandes dúvidas. “Como é que ele apareceu naquele grupo específico, naquele teatro de variedades, a coabitar o mesmo palco que Argentinita, que era amiga de Llorca e que foi retratada por Almada Negreiros?”, questionou o investigador. “Poderia haver algum tipo de diálogo com outros artistas, que lhe abriram a porta. E em última análise, quem sabe se não foi ele que passou o contacto para os que foram a Portugal. O que sabemos é que Almada conviveu com Argentinita e que quando ela foi a Portugal foi recebida pelo meio teatral como grande vedeta.”

“Como é que ele apareceu naquele grupo específico, naquele teatro de variedades, a coabitar o mesmo palco que Argentinita, que era amiga de Llorca e que foi retratada por Almada Negreiros? Poderia haver algum tipo de diálogo com outros artistas, que lhe abriram a porta.”
Ricardo Vasconcelos, investigador

Raul Leal atuou no Salón Madrid perante uma sala cheia. De acordo com o La Acción, um diário vespertino de Madrid, todas as sessões esgotaram. Leal subiu ao palco depois do número de travesti de Conchita Ulía, que se apresentou no “belíssimo teatro da Calle de Cedaceros” depois de uma temporada de seis meses no teatro Romea. A estreante conquistou o público com “a sua figura imponente, a sua forma de dizer e cantar, e a delicadeza das suas canções” e “teve de repetir vários números, por entre ovações contínuas”, relatou o mesmo jornal, garantindo que, “com mais alguns meses”, Conchita ombrearia “com as primeiras estrelas”. Entusiasmada com a atuação da artista, a audiência recebeu de braços abertos o português, que se apresentou naquela noite sob o pseudónimo “Abdali, Príncipe de la Muerte” e, segundo reza a lenda, vestido com um dos seus pijamas orientais, comprados em Paris.

A única descrição que se conhece da atuação de Raul Leal consta da cronologia da edição de Sodoma Divinizada de Aníbal Fernandes, publicada em 2010 pela Guimarães. Fernandes, que conheceu Leal e que terá ouvido em primeira mão o relato da noite fracassada no Salón Madrid, contou que, para a performance, o artista teria decidido tirar partido “da faustosa coleção de pijamas orientais com que costuma dormir, comprada a peso de ouro nos seus tempos de grande luxúria parisiense”, apresentando-se em Madrid como “bailarino futurista (…), fiado no êxito visual dos seus pijamas, só eles capazes de dispensar que o bailarino dance”. Contudo, o “faustoso” pijama não convenceu os presentes, que vaiaram a atuação do Príncipe. Leal não gostou e respondeu com um gesto insultuoso (Fernandes diz que foi um “manguito”). A polícia foi chamada e o artista detido, o que é confirmado pelas notícias publicadas na imprensa madrilena, recolhidas e divulgadas por Ricardo Vasconcelos na Pessoa Plural.

As notícias falam de um “escândalo” no Salón Madrid. O La Correspondencia de España descreveu um “protesto” de “proporções alarmantes”, que só terminou graças à intervenção da polícia. “Não sabemos como aquilo teria terminado se a Empresa não tivesse anunciado que o ‘Príncipe de la Muerte’ estava em poder dos modestos agentes da Polícia”, relatou o diário. Não se sabe quanto tempo Leal passou na prisão, mas, de acordo com Fernandes, terá tido tempo para deixar um testemunho da sua estadia: o “Poème de la Liberté” (“Poema da Liberdade”), escrito na parede da cela e assinado por “Raoul Leal, poète et penseur” (“Raoul Leal, poeta e pensador”). O Observador contactou o arquivo do Ministério da Administração Interna espanhol no sentido de tentar confirmar se Raul Leal chegou de facto a ser levado para o cárcere, mas não foi possível obter uma resposta a tempo da publicação deste artigo.

A partir de 23 de abril, o nome de Leal desaparece das páginas do La Acción, que disponibilizava diariamente informação sobre os espetáculos agendados para o dia seguinte. O El País, provavelmente por lapso, manteve o nome do português, que aparece juntamente com o dos outros artistas em cartaz no Salón Madrid até dia 26 do mesmo mês, quando a informação relativa à sala de espetáculos terá sido finalmente atualizada. Se Leal voltou a atuar no Salón, a imprensa de Madrid não fez eco disso.

Documento inédito: assento de batismo de Carlos Leal, irmão de Raul Leal (Paróquia de São José, Lv B29 - Cx 10. PT/TT/PRQ/PLSB45/001/B29). Carlos ajudou o irmão quando este esteve em Espanha

Imagem cedida pelo ANTT

Não é possível saber em que consistia a performance de Raul Leal que tanto chocou o público madrileno. Os artigos publicados nos jornais, focados no escândalo que levou à sua detenção, não referem os movimentos de Leal em cima do palco, à exceção do “gesto insultuoso” que levou à intervenção policial. Ricardo Vasconcelos acredita que seria “alguma coreografia mais idêntica à do típico mimo”, porque é isso que sugerem as cartas de Mário de Sá-Carneiro para Fernando Pessoa. O choque não terá, portanto, tido origem em algo que o artista disse, mas em algo que fez ou que não fez. “Se tivéssemos alguma informação que indicasse que houve leitura de texto, podíamos supor que ele tinha lido qualquer coisa e feito uma coreografia ao mesmo tempo. Não podemos excluir que fosse isso, mas os artigos e notas de imprensa não falam de leitura de texto, mas de dança, e Sá-Carneiro fala de mimo”, referiu o investigador.

Na opinião do professor na Universidade Estadual de San Diego, na Califórnia, a atuação não terá sido espontânea, mas desenvolvida ao longo de vários meses, provavelmente tendo em conta as conceções futuristas de teatro, bailado e performance. “Os futuristas não tinham uma atitude elitista em relação ao teatro de variedades. Marinetti achava interessante a ideia de um teatro popular ou de variedades em que se pudessem fazer apresentações futuristas. E o próprio Marinetti fez imensas performances, nas quais leu alguns dos seus manifestos e textos literários com uma coreografia e dicção muito diferente, fazendo os sons das máquinas, etc.. Marinetti também propôs diferentes estratégias para incorporar o Music-Hall, porque achava que era importante. Tinha muito a ver com a rejeição da cultura mais académica e livresca”, explicou o investigador. “O Futurismo italiano é o mais violento no desejo de destruir os museus, as universidades. Há que pensar que estamos a falar de Itália, onde em qualquer lado se vê o peso da história. Os futuristas italianos achavam que o passado e a história eram um peso excessivo. Houve depois outros futuristas que escreveram manifestos sobre dança futurista.”

Ricardo Vasconcelos admitiu ainda não ter encontrado o manifesto que terá influenciado Leal, até porque “aqueles que são mais claramente sobre dança futurista são posteriores, alguns são até dos anos 20”. “Obviamente que não foi isso que Raul Leal leu e tentou fazer. É mais provável que tenha assistido a apresentações em Paris e que tenha querido fazer alguma coisa minimamente inspirada nisso”, sugeriu o investigador e professor universitário. “Numa carta que escreveu a Marinetti, [com quem trocou uma avultada correspondência] disse que leu vários manifestos iniciais do Futurismo, especificamente o de Boccioni, embora fosse sobre pintura. Ele tinha um conhecimento relativo dos manifestos, provavelmente daquele sobre o Music-Hall, que talvez lhe tenha sido mandado por Marinetti.”

“Acho que os pijamas seriam a única coisa decente que teria para apresentar em público, no sentido de que eram vistosos. Não era mais nada, não era nenhuma tese sobre pijamas. A roupa dele estava literalmente a apodrecer.”
Ricardo Vasconcelos, investigador

Em relação aos pijamas, Vasconcelos aventou que estes seriam provavelmente as únicas roupas de Leal “que mais se aproximariam de algo remotamente parecido a um figurino”, uma vez que as dificuldades financeiras o obrigaram a desfazer-se das suas melhores roupas, que penhorou ou vendeu para pagar a sua estadia em Espanha. “Acho que os pijamas seriam a única coisa decente que teria para apresentar em público, no sentido de que eram vistosos. Não era mais nada, não era nenhuma tese sobre pijamas. A roupa dele estava literalmente a apodrecer. Não vejo que houvesse um grande plano de performance em termos de figurino. Mas havia um plano de fazer uma performance, e os figurinos foram os que ele pode utilizar”, disse o investigador.

A par de todas estas questões, falta também perceber qual é a relação da performance do Salón Madrid com a obra de Leal e com o modernismo português. “O que normalmente se diz é que as performances futuristas em Portugal foram muito poucas, quase não existiram. Fala-se sempre [da 1.ª Conferência Futurista] do Teatro República e da leitura de textos pelo Santa-Rita e Almada Negreiros, uma coisa de inspiração marinettiana, envolvendo o público, que foi lá para ver os maluquinhos do Futurismo, mas esta poderá ter sido a primeira performance futurista que conhecemos. Será que foi? Será que a referência à performance futurista é um batismo posterior? Não é muito claro, mas pode ter sido a primeira performance futurista no contexto do modernismo português, com um ano de antecedência.”

Ainda em Madrid: a tentativa de alistamento no Exército francês

Foi por falta de dinheiro, e talvez também motivado pelo fiasco da atuação no Salón Madrid, que Raul Leal pensou em alistar-se no Exército francês. Esta informação, contada pelo próprio numa carta enviada a Fernando Pessoa em dezembro de 1916, na qual confessou ter desistido do alistamento “depois de grandes dificuldades” que muito o aborreceram, foi agora confirmada pelo Observador, que conseguiu recolher junto do Arquivo Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros um conjunto de cartas trocadas entre várias entidades ministeriais que provam que Leal tentou de facto juntar-se às forças armadas francesas, numa altura em que ainda decorria a Primeira Guerra Mundial.

A documentação mostra que o artista avançou com um requerimento pedindo autorização para se alistar a 15 de junho de 1916, depois do evento no Salón Madrid. O pedido apresentado junto da embaixada portuguesa na capital espanhola foi encaminhado alguns dias depois para Portugal e remetido para o Ministério da Guerra, que, em carta de 6 de julho de 1916, deu conta da necessidade de se conhecer “a situação militar do requerente”. A documentação do Arquivo Diplomático muda, assim, a cronologia da tentativa de alistamento tal como apresentada por Aníbal Fernandes, que a colocou antes do espetáculo madrileno. Na versão de Fernandes, Leal teria desistido do alistamento por lhe ter ocorrido que podia usar os seus pijamas orientais numa performance. Não existem quaisquer evidências de que tenha sido assim.

A carta de Raul Leal para Fernando Pessoa de dezembro de 1916

BNP/Espólio 3

Os documentos do arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros permitem também confirmar que o artista ainda se encontrava em Madrid nos meses de junho e julho, tendo deixado a cidade em setembro, rumo a Toledo. As últimas informações que se conheciam da presença de Leal na capital espanhola eram de maio, quando escreveu a Pessoa a propósito do suicídio de Sá-Carneiro e quando apareceu uma última vez nos jornais de madrilenos, mais uma vez, não pelas melhores razões. De acordo com a investigação de Ricardo Vasconcelos, a 18 de maio de 1916, o El Liberal noticiou que, no dia anterior, o artista português tinha tentado matar-se “duas vezes”, “atirando-se de encontro a automóveis que circulavam no Passeio de Recoletos”, perto do Museu do Prado.

Numa carta enviada alguns meses depois a Pessoa, Leal admitiu ter passado por um período de “depressão enorme” durante os últimos meses em Madrid. O artista referiu especificamente os meses de agosto e setembro, mas a notícia do El Liberal parece indicar que a depressão de Leal começou antes. O autor de Sodoma Divinizada procurou, mais tarde, já em Lisboa, desvalorizar o incidente, dizendo que não queria suicidar-se, que “só pretendia fazer escândalo”. Na altura, tê-lo-á confessado a Pessoa, que relatou o episódio numa carta enviada a Armando Côrtes-Rodrigues a 4 de setembro de 1916, que acrescenta alguns pormenores à notícia do El Liberal: “O Leal está em Madrid em muito mau estado mental. Tentou há meses suicidar-se, atirando-se para debaixo de um automóvel. Mas escapou, mesmo sem contusões, porque o chauffeur desviou o carro”.

Toledo, a “cidade sinistra”, e os últimos meses em Espanha

Raul Leal permaneceu em Madrid até setembro. Nesse mês, mudou-se para Toledo, procurando “fugir ao despedaçamento Augustiano” em que se lançava, conforme contou a Fernando Pessoa numa carta escrita em dezembro, que confirma a sua presença na cidade. O artista terá ficado em Toledo, pelo menos, até ao início de 1917. Foi um período longo, que não lhe deixou boas memórias — anos mais tarde, numa carta enviada a Jorge de Sena, classificou Toledo como uma “cidade sinistra”. O adjetivo é quase elogioso quando comparado com os termos usados pelo escritor para se referir à localidade na carta enviada a Pessoa: “Não pode imaginar a sublimidade lúgubre de Toledo”, escreveu. “É uma fortaleza infernal de Morte. Parece que milhões de espectros nos subjugam e nos comprimem astralmente sob uma hipnose sombria. Aqui tornamo-nos duendes abismicamente petrificantes.”

"Ando todo esfarrapado (...) e como sou forçado a mudar de roupa só de oito em oito dias visto possuir apenas duas peças de cada, tiro-a todos os domingos num estado miserável de porcaria."
Raul Leal em carta a Fernando Pessoa (dezembro 1916)

A culpa não seria tanto da cidade, mas mais do estado de espírito do autor. Os sentimentos depressivos que terá começado a sentir em Madrid só terão piorado em Toledo, a onde chegou sem ter sequer dinheiro para comer. Os três primeiros dias na cidade foram de “fome absoluta” e os seis seguintes de um “jejum rigorosíssimo”, apenas quebrado quando Leal pediu à dona da pensão onde estava instalado que lhe desse alguma coisa para comer. O artista confessou a Pessoa que nunca tencionou fazer as refeições no local onde tinha alugado um quarto, mas antes “nas Tabernas” da cidade, tendo sido forçado a comer na pensão porque o dinheiro que “esperava” de Portugal não chegava. Leal continuava a depender da família em Lisboa, que acusava de não querer saber de si, para se sustentar em Espanha. “O dinheiro que recebo de Lisboa vem consideravelmente diminuído e essa gente mostra tendências claras de me abandonar por completo”, lamentou-se a Fernando Pessoa. “As minhas cartas de revolta e aflição para nada têm servido. São uns cães…”

Leal foi acumulando dívidas e, quando escreveu a Pessoa em dezembro, devia um mês de renda e alimentação à dona da pensão, que ficaria no centro da cidade, a julgar pelo endereço que o artista colocou no subscrito da carta: 2, Plaza de San Ginés. O artista temia que a mulher se fartasse da situação e o pusesse na rua, onde, além da fome, teria de aguentar “os horrores do frio e da neve”, que caía em abundância. Leal não tinha qualquer agasalho, apenas um fato fino e duas mudas de roupa, que trocava de oito em oito dias “num estado miserável de porcaria”, e que que começavam a ficar gastas, a ponto de a lavadeira dizer que era impossível continuar a coser as camisas. Há muito que tinha vendido ou penhorado todos os bons casacos.

BNP/Espólio 3

A “tragédia” de Toledo terminou no início de fevereiro de 1917, quando Leal rumou novamente a Madrid. A 10 de março, enviou um postal a Pessoa com a nova morada, na Calle de los Tres Peces, onde as cartas dos poeta seriam “sempre muito bem recebidas”. A segunda estadia na capital espanhola não terá durado muito, mas não se sabe ao certo quando é que o artista terá regressado a Portugal. De acordo com Aníbal Fernandes, Leal foi expatriado “por intervenção direta do Cônsul de Portugal”, uma versão que não foi possível confirmar. Contactado pelo Observador, o Arquivo Diplomático informou que “não foram identificados documentos relativos à repatriação de Raul Leal”. Já a Embaixada de Portugal em Madrid indicou que “a Secção Consultar não mantém registos tão antigos sobre cidadãos portugueses (os mais antigos remontam à década de 30 do século passado)”, não tendo por isso qualquer documentação referente à estadia de Raul Leal em Espanha.

Fernandes apontou o retorno do artista para abril de 1917, porque é desse “mês a aventura do número único de Portugal Futurista”. A frase pode induzir em erro — a Portugal Futurista saiu depois, a 31 de outubro. É essa data estabelecida por Ricardo Marques, que se baseou no horóscopo delineado por Fernando Pessoa para o aparecimento e apreensão do único número da revista (31 de outubro e 2 de novembro, respetivamente). Aníbal Fernandes teria em mente a realização da 1.ª Conferência Futurista, que aconteceu a 14 de abril no recém inaugurado Teatro República (atual Teatro Municipal São Luiz), em Lisboa. Não se sabe se Leal esteve presente no evento, descrito pela A Capital como “o elogio da loucura”, conduzido por Almada Negreiros com a ajuda de Santa-Rita Pintor. Raul Leal participou na Portugal Futurista com um texto em francês sobre Santa-Rita, “l’Abstractionisme Futuriste”, o que parece indicar que estaria em Lisboa pelo menos no período de preparação da revista. Mas também isso permanece um mistério.

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