Para a próxima sexta-feira estão marcadas reuniões do Governo com todos os partidos para preparar o Orçamento para 2025 e o ambiente do debate do Estado da Nação, nesta quarta-feira, foi uma espécie de antecâmara desse dia, com os partidos a medirem forças e a dispararem condições para se sentarem a essa mesa com Luís Montenegro.
Entre PSD e PS a tensão foi grande, mas pelo meio foi deixada uma significativa luz ao fundo do túnel quando, por entre todas as críticas, o líder parlamentar do PSD respondeu diretamente ao líder do PS para lhe dizer que sim, o Governo está disponível para revisitar a sua posição sobre a redução generalizada do IRC. Também houve um namoro pegado entre o Governo e a Iniciativa Liberal, um Chega menos ostensivo do que noutros debates e uma esquerda mais à margem de negociações.
Mesmo que parece melhor colocado para negociações, Pedro Nuno Santos saiu do debate a exigir ao Governo “respeito, carambas!” e a notar um tom “agressivo e arrogante” por parte do primeiro-ministro, avisando que não é assim que conseguirá viabilizar o Orçamento. Mas lá dentro deixara tudo em aberto, acrescentando uma parte importante ao seu “praticamente impossível viabilizar um Orçamento”. O acrescento foi: de esse OE for “uma tradução exclusiva de um programa de Governo”. Depois logo se vê: “No fim, se fizermos uma avaliação positiva viabilizaremos, se não chumbaremos”.
Duração
O primeiro debate do Estado da Nação da era de Luís Montenegro como primeiro-ministro começou pelas 9h15, dentro do quarto de hora académico. Só terminou pouco depois das 14h15, ou seja, cinco horas de debate. À longa duração do debate não ajudou o facto de, a dada altura, se ter estado mais de 20 minutos a discutir se a Montenegro deviam ser dados mais 10 minutos para responder aos outros partidos.
A repetição
Chegou a ouvir-se, nas bancadas do PS, uma acusação de “puro plágio” contra Luís Montenegro. O primeiro-ministro trazia na algibeira o soundbyte que todos associam a António Costa: “Palavra dada, palavra honrada”. Cerca de dez vezes o repetiu, usando a expressão para mostrar aquilo que já foi feito nos 106 dias de governação da Aliança Democrática. Uma das áreas em que a “palavra foi honrada” foi na proposta de descida do IRS: “A oposição chumbou mas o nosso compromisso foi cumprido. Palavra dada, palavra honrada“.
A aproximação
O primeiro sinal de aproximação entre as partes suficientes para fazer passar um orçamento (PSD e PS) surgiu logo depois de Pedro Nuno Santos ter desafiado o Governo a dizer se “está disponível para repensar com o PS a política para o IRC?”. Estendeu a mão mesmo após um rol de críticas à “arrogância” de Montenegro na sua primeira intervenção e o primeiro-ministro não lhe respondeu, preferindo deixar isso o líder parlamentar do PSD e para o âmbito onde admite que esse diálogo decorra: a Assembleia da República e à margem do Orçamento. Foi Hugo Soares que, entre muitos ataques ao PS, deixou uma saudação a Pedro Nuno pela disponibilidade manifestada no IRC e aceitou “fazer esse diálogo” no Parlamento.
É um tema que o PS não coloca como linha vermelha (tem recusado estes termos), mas diz que mostra a distância face à AD que defende uma descida generalizada quando os socialistas só aceitam uma redução para empresas que promovam o emprego e a competitividade. A aproximação que se deu foi, assim, em contraciclo com o que estava a acontecer no debate, já que o IRC foi ao mesmo tempo um dos temas em que foram vincadas as maiores diferenças entre PSD e PS, com Pedro Nuno a chegar a corrigir números a Montenegro e a acusá-lo de ter “fezada” no “efeito virtuoso” da medida.
Enquanto no PS, a relação que o Governo vai alimentando segue a lógica de uma no cravo e duas na ferradura, com a IL o ambiente é claramente distendido. Tanto Rui Rocha reconhece que o Governo já deu “passos importantes”, como Montenegro reconhece que a Iniciativa Liberal” tem primado por uma oposição diferente de outras bancadas”. Diz mesmo que a bancada “terá alguma coisa a acrescentar” no diálogo que está aberto a ter sobre o IRS e o IRS Jovem. E evitou a discussão sobre o que de maior os separa: as derramas estaduais e o plano de apoio à comunicação social – chutou para canto e acabou por não responder à oposição liberal.
Divisões
Montenegro não aprecia a “visão dirigista” de Pedro Nuno Santos sobre a economia. Pedro Nuno Santos diz que não é dirigismo, tanto não é que até Cavaco Silva encomendou em 1994 um estudo a Michael Porter, economista de Harvard, onde se veio a defender a aposta em setores específicos da economia. Defender a aposta “concentrada” em alguns setores “não é nenhuma esquerdice”, concluiu o secretário-geral do PS.
O IRC foi outro ponto de discórdia e tensão (embora tenha acabado numa promessa de negociação), com Montenegro a dizer que tem “fé” que tal, como aconteceu em 2014 (quando o PS aceitou uma redução do IRC), a cobrança do imposto aumente mesmo que a taxa seja reduzida. Para o PS, este tipo de “profissões de fé” não colhem e mostram, para os socialistas, que “o Governo governa a pensar nos mais ricos”, as empresas mais ricas e as pessoas mais ricas. Uma deixa que a esquerda à esquerda do PS não largou durante todo o debate, a cavar o fosso que a separa da AD – e o PCP até a dizer que no fim desse debate orçamental se farão as contas a quem está ao lado de quem afinal.
A verdade é que o caminho negocial à esquerda está bem mais estreito e não se vislumbra uma aproximação que seja, com a esquerda a surgir neste debate em coro a acusar o Governo de “governar para os ricos”. E também a ouvir Montenegro a deixar-lhe uma indireta ao dizer que governa “para os mais pobres e não para os eternizar nessa situação”, para depois tirar proveitos “eleitorais” de eles estarem nessa situação. A distância cavou-se nos dois sentidos, com Luís Montenegro a surgir no debate apostado em vincá-la. Ao BE disse que que acolherá contribuições, mas com um aviso que é uma declaração de distanciamento: “Se mantiverem o viés teimoso ideológico será difícil integrá-las na ação do Governo.”
Mas a verdade é que o BE também vai de pé atrás para a reunião de sexta e mostrou-o neste debate ao dizer que Montenegro apareceu no Parlamento a mostrar “que governa para a ganância” e que “o Estado da Nação é só o trailer do que vai acontecer no Orçamento do Estado”, antecipou Mariana Mortágua. No Livre a expectativa está ao mesmo nível: baixa. Rui Tavares apareceu a pedir uma “herança social” no IRS Jovem, cedências no IMT, no passe ferroviário e no abono de família, mas saiu a dizer que se o Governo “já usou o excedente, o que está a dizer é que as conversas de sexta-feira não servem para nada”.
A censura
A moção de censura é, no atual contexto político, sinónimo de queda do Governo, mas quem primeiro usou a expressão no debate foi o próprio Governo – ao dizer que se isso acontecer tem de haver “lealdade das oposições” que não rejeitaram o programa do Governo –, o que fez surgir leituras várias. A do PS já é conhecida, com os socialistas há muito convencidos de que Montenegro quer antecipar eleições – tentando repetir o modelo de Cavaco em 1987 à espera de igual sorte, ou seja, obtendo uma maioria absoluta. Agora, o líder do Chega também acusa Luís Montenegro de pensar “a toda a hora” em moções de censura.
“Quero garantir-lhe com 100% de fidedignidade que nunca me deitei a pensar numa moção de censura, numa acordei a pensar numa moção de censura, nunca sonhei com isso”, garantiu Luís Montenegro. É mais o contrário, diz o líder do PSD: “O senhor deputado tem uma certa obsessão por esse instrumento que é a moção de censura, mas não tem coragem de o utilizar”.
A resposta do Chega – implicitamente acusado por Montenegro de se aliar ao PS em temas como as portagens mas recusar lançar uma moção de censura ao Governo – ainda viria, mais tarde, pela boca de Pedro Pinto. Na governação de António Costa, o Chega avançou por duas vezes com moções de censura a esse Governo – só não disse que nesses casos sabia de antemão que não teriam consequências políticas, estavam condenadas à partida.
O Chega para lá
Desde que a AD é Governo este foi o debate onde a tensão entre Montenegro e Chega menos se fez notar e em que o próprio líder do partido, André Ventura, menos se destacou. Nem mesmo quando Montenegro o acusou de “falta de coragem” para avançar com uma moção de censura Ventura foi a repique.
No atual quadro parlamentar, o partido de André Ventura é suficiente para desequilibrar as contas e Montenegro não tem desperdiçado os exemplos para acusar PS e Chega de andarem “às cavalitas” um do outro: “O PS não se importou de comer o fruto que dizia que era proibido. E o Chega não se importou de comer o fruto que dizia que era apodrecido.
Os socialistas, por seu lado, chegam-se para lá: têm sempre dito que não negoceiam com o Chega e que o que fazem é apresentar as suas propostas e pô-las a votação sem acordos prévios. Já Ventura responde a todos dizendo que quem “levou o PS às cavalitas” foi o PSD ao apoiar Costa para o Conselho Europeu. Um sacudir de afinidades que vai alimentando este trio maioritário no Parlamento, embora PS e PSD já tenham percebido, através das sodagens que dão a queda do Chega, que o partido de Ventura pode ser afinal o menos interessado em provocar eleições no curto prazo. E isso pode ser decisivo.
Os despiques: entre powerpoints e inaugurações alheias
Não é certo que essa seja, realmente, a ferramenta informática utilizada para fazer as apresentações de medidas do Governo. Nos últimos anos surgiram boas alternativas ao “software” da Microsoft, para organizar apresentações em “slides”. Seja como for, Montenegro garantiu que este Governo não se limita a apresentar bonitos “powerpoints, sempre os mesmos, ano após ano, com palavras diferentes”.
Ora, acusado de ter governado oito anos com uma boa dose de propaganda, o PS acusou o toque e o deputado Tiago Barbosa Ribeiro ripostou que “propaganda” foi aquilo que aconteceu no último fim de semana, com a inauguração da variante da EN14, uma “obra que é de Pedro Nuno Santos”.
A construção da variante foi conhecida em 1 de junho de 2022 quando o então Governo do PS declarou de “imprescindível utilidade pública” a construção da variante à EN14, entre a Via Diagonal, na Maia, e o Interface Rodoferroviário da Trofa. Mas o projeto original, que inclui outras fases e a ligação a Vila Nova de Famalicão, no distrito de Braga, tem já três décadas e foi sendo adiado ou alterado de Governo em Governo.
Se, para o PSD, o PS é “o maior usurpador de [boas] heranças políticas” – em 2015 foi isso mesmo, para Montenegro – Tiago Barbosa Ribeiro diz que, neste momento, o PSD “só precisa de não desbaratar aquilo que foi feito pelo Partido Socialista”.