Os ponteiros do relógio já tinham ultrapassado as 19h30. Adolfo Mesquita Nunes tinha acabado o discurso, depois de 14 minutos e 18 segundos a falar. A sala rebentou em aplausos, uma constante ao longo de toda a intervenção do vice-presidente do CDS. Quando se preparava para deixar o palco, uma outra figura, na primeira fila, fez sinal para se aproximar. Era Francisco Rodrigues dos Santos, líder da Juventude Popular (JP). O jotinha subiu ao palco e abraçou Mesquita Nunes. As duas figuras que melhor representam as tensões identitárias do CDS, a direita liberal e a direita conservadora, juntas em cima do palco, sob o olhar atento de Assunção Cristas. Um ato premonitório?

“Repare nas duas intervenções: tanto Adolfo Mesquita Nunes como Francisco Rodrigues dos Santos esforçaram-se para trocar elogios e para deixar claro que eram amigos. Eles sabem que um dia, muito provavelmente, terão de se enfrentar. Foi uma forma de esvaziar a tensão evidente”, analisa Raul Almeida, ex-deputado do CDS, próximo da ala conservadora do partido.

[Duelo em vídeo. Descubra as diferenças entre os discursos de Adolfo e Chicão]

Os dois, Adolfo Mesquita Nunes e Francisco Rodrigues dos Santos, são apontados com insistência como possíveis sucessores Cristas. De gerações diferentes — Adolfo tem 41 anos, “Chicão” (como é habitualmente tratado) tem 29 –, têm posições antagónicas em matéria de costumes. O vice-presidente do CDS é liberal, quase libertário: defende o casamento homossexual, a adoção por casais do mesmo género e da lei do aborto. Chegou mesmo a votar contra a orientação da bancada parlamentar quando era deputado. Recentemente, num ato sem precedentes no CDS, assumiu publicamente a homossexualidade. O líder da JP é orgulhosamente conservador, doutrinário e contra muito do que defende Mesquita Nunes: pró-vida, anti-casamento homossexual, anti-adoção por casais do mesmo género, defensor apaixonado dos valores da família. São dois rostos de um partido que se quer afirmar como a casa-mãe da direita portuguesa, onde convivem democratas-cristãos, liberais e conservadores.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Para Raul Almeida, no entanto, é quase inevitável que se venham a confrontar. Seria o encontro dos dois pólos de um CDS que, no seu 27º Congresso, em Lamego, passou grande parte do tempo a discutir se devia ser mais ideológico ou pragmático — ou se uma estratégia não anulava a outra. “Estou certo que, aconteça o que acontecer, ambas as visões saberão integrar outra, independentemente de que vença e de quem perca. Foi sempre assim na história do CDS e os dois são dois homens bem formados. Agora, é evidente que as duas visões para o partido não poderão ser dominantes ao mesmo tempo“, antecipa, em declarações ao Observador.

[Veja no vídeo o best of do Carpool com Adolfo Mesquita Nunes]

Estará escrito nas estrelas? Os dois esforçaram-se por jurar que não. Não eram adversários, nem candidatos a rivais. Adolfo Mesquita Nunes subiu ao palco para garantir que tinha “uma enorme admiração, respeito e amizade” por “Chicão”. E “ao contrário do que alguns tentam”, continuou, “sei que é recíproco”. Horas antes, em entrevista ao Observador, Mesquita Nunes assegurava que não “existem duas linhas autónomas e distintas” no CDS, que são apenas “sensibilidades diferentes” que sempre coexistiram. Projetar um confronto entre as duas visões é um exercício que não faz sentido porque no CDS cabem “todos”, liberais e conservadores, cosmopolitas e tradicionais, argumentou o vice de Cristas.

[Pode ver neste vídeo a intervenção de Adolfo Mesquita Nunes]

Francisco Rodrigues dos Santos falou minutos depois de Adolfo Mesquita Nunes. Demorou pouco a devolver os elogios ao ex-secretário do Turismo. “Só há um CDS. Esse é o tecto sobre nós e onde todos nos sentimos bem. Adolfo, sei que no plano das ideias é muito mais aquilo que nos une do que aquilo que nos separa“, afirmou “Chicão”, antes de deixar mais uma garantia: “A tua luta pela liberdade até às últimas consequências é também o meu combate. Porque acreditamos primeiro na pessoa e só depois vem o Estado, no seu projeto de vida e não autoridade de máquinas administrativas e tributárias, e porque acreditamos na pessoa e na sua capacidade de construir os seus sonhos, de lutar pelas suas ambições, sem que o Estado seja um entrave ao seu desenvolvimento, felicidade e progresso. E porque vejo em ti que não tem pruridos em afirmar as suas posições. Que mesmo no nosso partido não tem medo de ser politicamente correto”.

A escolha de palavras do líder da jota tem uma significado real: Francisco Rodrigues dos Santos subscreveu a orientação ideológica de Adolfo Mesquita Nunes, mas centrou-se apenas nas questões relacionadas com a economia e com a defesa de um Estado não intervencionista. Não falou sobre as posições do número dois do CDS em matéria de costumes, porque nunca poderia subscrevê-las. E terminou com uma promessa: “Por isso, Adolfo, conta com a JP para apoiar as tuas posições em nome do país“. Para o país e para o Estado. Não para as pessoas.

[Pode ver aqui o vídeo com a intervenção de Francisco Rodrigues dos Santos]

“Note que se Adolfo Mesquita Nunes não falou nas questões dos direitos, liberdades e garantias no discurso, o “Chicão” fez questão de sublinhar a posição da JP em relação ao aborto ou à mudança de género aos 16 anos”, comenta Raul Almeida. É um facto: mesmo repetindo com insistência que não existia uma disputa entre duas visões diferentes — a da direção, mais pragmática, e a da Juventude, mais ideológica –, Rodrigues dos Santos defendeu que o partido não pode prescindir da sua ideologia: “Queremos votos para as nossas ideias e não ideias para os nossos votos”. O partido, avisou, tem de “andar depressa”, sem “destruir o seu berço”.

O aviso é importante pois será Adolfo Mesquita Nunes a coordenar o programa eleitoral do CDS nas próximas eleições legislativas. Cristas tem sido acusada de ter esquecido a matriz democrata-cristã pelo setor mais conservador do partido em função de um pragmatismo que lhe dê mais votos. Uma estratégia em que se encaixa Adolfo ou uma estratégia promovida por Adolfo? “Não tenho dúvidas que foi ele a preparar esta estratégia”, nota Raul Almeida.

Como neutralizar um adversário, por Adolfo Mesquita Nunes

“Veja o que fez Adolfo Mesquita Nunes”, comenta Raul Almeida. “Mal subiu ao palco, disse ao Chicão que ele seria deputado na próxima legislatura. Como é que se explica que tenha sido ele a fazê-lo e não Assunção Cristas, por exemplo? É a melhor forma de garantir que os dois não terão um caminho comum tenso e atribulado”, defende o ex-deputado do CDS.

Garantir a representação da JP na Assembleia da República, tal como acontece com a JS ou com a JSD, foi uma exigência feita por muitos militantes da jotinha que subiram ao palco ao longo do dia de sábado. Aliás, a moção assinada por Francisco Rodrigues dos Santos defende abertamente o regresso da juventude ao Parlamento. Neste momento, “Chicão” tem um exército de 21 mil jotinhas ao dispor, depois de ter recrutado quatro mil militantes em apenas dois anos, a uma média de 154 novos filiados por mês. Mais: conseguiu duplicar o número de mandatos nas últimas eleições autárquicas.

O peso da JP é agora incontornável no CDS. Assunção Cristas sente-o e Adolfo Mesquita Nunes também. Não faltaram críticas mais ou menos duras dos militantes da JP que intervieram no Congresso ao partido-pai. Muitos pediram abertamente a integração de Francisco Rodrigues dos Santos em lugar elegível nas próximas legislativas. O vice-presidente do CDS encontrou uma forma curiosa de responder às reivindicações dos jotinhas. “Há um ano apostei que Portugal ia ganhar o festival da Eurovisão. Francisco, posso dizer que aposto hoje que serás deputado do CDS“, afirmou Mesquita Nunes. Foi um dos momentos mais aplaudidos da sua intervenção.

Um gesto foi simbólico. O líder da JP conseguiu promover a intervenção de dezenas de militantes jotinhas que subiram ao palco, um a um, para exigir Francisco Rodrigues dos Santos como deputado. A mesa do Congresso ainda tentou fazer aprovar um requerimento para que os trabalhos fossem suspensos à uma da manhã, mas muitos jovens populares votaram contra, exigindo subir ao palco. A decisão caiu mal junto de alguns próximos de Assunção Cristas, que questionaram a insistência da JP. “Este não é o Congresso da JP“, ouviu o Observador. Em muitos momentos, aliás, os militantes da JP tentaram condicionar o CDS a assumir o conservadorismo do partido.

O caminho de um e de outro

Os dois são muito carismáticos e o CDS gosta disso“, comenta Raul Almeida. Num partido com muitas figuras de primeira linha — Pedro Mota Soares, Nuno Melo, Nuno Magalhães, António Pires de Lima ou João Almeida, por exemplo –, Adolfo Mesquita Nunes e Francisco Rodrigues dos Santos roubaram as atenções do Congresso. Os dois foram os mais aplaudidos, e em alguns momentos até mais aplaudidos que Assunção Cristas. Dominam, como poucos, a arte de discursar. E os democratas-cristãos gostam disso — afinal, com as devidas distâncias, tiveram Paulo Portas como líder durante 16 anos.

Se um dia for obrigado a ter de escolher um deles como líder do partido, o CDS estará também a escolher uma forma de encarar as eleições e o eleitorado, nota o ex-deputado do CDS. “Adolfo Mesquita Nunes terá, em teoria, uma maior capacidade de de chegar a mais gente, de alargar a base eleitoral do partido. Até porque não faz política com causas como a revogação da lei do aborto ou do casamento homossexual. Por outro lado, poderá perder os mais conservadores, os que sempre foram fiéis ao partido”, comenta.

Francisco Rodrigues dos Santos conseguiria, em teoria, exatamente o inverso. Defensor convicto de causas que causam naturalmente mais divisão, teria mais facilidade em levar aquela fatia mais conservadora do eleitorado a votar nele. Pelo contrário, não seria capaz de chegar a mais gente, a uma direita mais liberal nos costumes — parte do eleitorado do PSD, por exemplo. Resta saber que estratégia garantiria mais votos.

E se Adolfo Mesquita Nunes não assumiu qualquer pretensão em suceder a Assunção Cristas, Francisco Rodrigues dos Santos teve um momento assumidamente “Luís Montenegro”. “Respondo como Luís Montenegro no Congresso do PSD. Se algum dia tiver motivação e apelo não peço autorização a ninguém”. O terreno está a ser marcado.

[Veja neste vídeo a entrevista a Francisco Rodrigues dos Santos ao Observador]