Cinco. Portugal vai disputar uma meia-final pela quinta vez na sua história e só numa delas houve um desfecho feliz. Foi em 2004, em casa, quando Portugal enganou a Holanda, com golos do miúdo Cristiano Ronaldo e Maniche. O golo daquela gente da nação da Laranja Mecânica foi marcado por… um português. Jorge Andrade, “com a ganância” de não deixar Ruud van Nistelrooy chegar à bola, fez um chapéu perfeito a Ricardo ao tentar cortar a bola. Quando vê Maniche, ainda lhe agradece. “Salvou-me a pele”, conta o ex-central ao Observador, na véspera do Portugal-Gales.
A estreia de Portugal em Campeonatos da Europa levou-o às “meias” do Euro-84. Tal e qual como Gales, que apenas havia disputado um Campeonato do Mundo, em 1958, no qual só caiu nos quartos-de-final, perante o Brasil de Pelé. Foi o génio da camisola 10 que resolveu, com um toque à Pelé. Em 1984 o Europeu era em França e os portugueses caíram no prolongamento contra a equipa da casa. Em 2000, com Humberto Coelho ao leme, Portugal voltou a cair nas meias-finais, novamente contra a França. Quem não se lembra do penálti de Abel Xavier?
O regresso à ribalta aconteceu em 2004, como já vimos, para depois lá regressar em 2012. Aí, contra a campeã europeia e mundial, a Espanha, Portugal bateu-se muito bem e em nada foi inferior. Foi preciso ir a penáltis. Cristiano Ronaldo ficou para último, mas nunca chegaria a bater, porque Bruno Alves e João Moutinho falhariam antes dele. Talvez por isso seja tão importante o tal vídeo que anda a circular, no qual Ronaldo pega em Moutinho e tira-lhe a pressão para o penálti vs. Polónia: se falhares, falhaste. Foi capitão e, a julgar pelas reações nas redes sociais, deixou o povo orgulhoso.
O Observador vai contar a história das quatro meias-finais, recorrendo a protagonistas que as viveram (com exceção para 2012). Têm a palavra Jaime Pacheco, António Sousa, António Veloso, Abel Xavier e Jorge Andrade. Rrrrrrrrrrola a bola…
1984
A seleção de 84 tinha quatro treinadores — Fernando Cabrita, Toni, Morais e José Augusto — e um balneário dividido. Alemanha Ocidental, Roménia e Espanha foram um osso duro de roer na fase de grupos, mas os portugueses seguiram em frente. Chegava a seguir, nas meias-finais, a França de Michel Platini. E não só, claro.
“A França tinha [Alain] Giresse, [Michel] Platini, [Jean] Tigana, [Jean-François] Domergue, que não tinha feito nenhum golo até ali e contra nós marcou dois”, lembra Jaime Pacheco. Os portugueses sonhavam com uma final na estreia em Campeonatos da Europa, mas a coisa não seria assim.
Domergue foi o primeiro a marcar (24′). Jordão empatou depois (74′). A partida no Vélodrome, perante quase 55 mil adeptos, teria direito a prolongamento. Aí, Jordão bisou (98′) e ameaçou a glória lusitana. Mas Domergue estava naqueles dias e também ele bisou (114′), 2-2. Quando já cheirava a penáltis, surgiu o inevitável, o monstro, o génio, um senhor do futebol: Michel Platini (119′), 3-2.
Como era, afinal, Platini? “Era um número 10 único”, conta Jaime Pacheco, ex-treinador campeão do Boavista. “Como era Maradona, como era [António] Oliveira no Porto, como era Deco… Era um número 10 que fazia a diferença. Era omnipresente. Jogavam sempre bem e marcavam muitos golos. Esses jogadores estão em vias de extinção. Ele era um jogador muito rápido — era um jogador muito rápido! [repete] –, no um para um era muito complicado de marcar. Tive essa tarefa e tive muitas dificuldades. Eu estudava bem e conhecia a maneira de ele jogar, mas sabia que tinha de estar ao melhor nível. Ele fazia a diferença. Executava bem livres, no último passe era formidável. Era daqueles jogadores perfeitos. A história fala por ele.” E remata: “Naquela época, só o Maradona é que era melhor que ele”.
António Veloso, lateral direito do Benfica, lamenta o sem fim de contradições daquela seleção, mas lembra o génio de Chalana, que deu nas vistas e saltou depois da Luz para França. “Os que não jogavam claro que davam incentivos a quem ia jogar. Só lhe dizia [antes da meia-final]: ‘Chalana, só tens que fazer aquilo que costumas, mais nada. Vais para cima deles’. Nem era preciso, porque ele ia na mesma. Tecnicamente era um jogador fantástico, difícil de marcar”, conta. E aquela história de chamarem Chalana de Astérix? “Foi por causa do bigode e do nariz. O Chalana foi um génio do futebol, dificilmente aparecem jogadores assim”, revela.
“”Houve alguma frustração, porque fizemos um grande campeonato, que acabou com aquele 3-2 contra a França. Deixou-nos frustrados, conscientes de que realmente tudo fizemos para conseguir chegar à final”
António Sousa, o médio criativo que marcara um golaço à Espanha, revela alguma tristeza, e garante que já não sonha com Platini. “Houve alguma frustração, porque fizemos um grande campeonato, que acabou com aquele 3-2 contra a França. Deixou-nos frustrados, conscientes de que realmente tudo fizemos para conseguir chegar à final”, lembra ao Observador. “Nesse momento sentimo-nos penalizados, de qualquer das formas estávamos conscientes que tivemos uma grande prestação nesse Europeu.”
E Platini, ainda surge nos sonhos? “Se fosse uma coisa jeitosa, agora um homem não… O futebol é assim mesmo, tem coisas boas e más. Aprendemos a vencer e a perder. Depois não pensamos mais nisso, conseguimos ultrapassar, olhando para o que vem a seguir.” E o que veio a seguir foi o México-86, que ficaria na memória pelas razões erradas…
2000
Em 2000, os que sobravam da Geração de Ouro já estavam com outro estatuto. Luís Figo e Rui Costa embalavam a Europa com um futebol espetacular. Jogava-se bem, dava gosto. A defesa tinha homens rijos, como Fernando Couto e Jorge Costa. Costinha e Sérgio Conceição ganharam terreno durante a competição e seriam titulares na meia-final, contra a França de Zinedine Zidane. E os outros.
Quando o relógio cantarolava o minuto 19′, Sérgio Conceição investiu pela estrada mais complicada, que levaria a bola da direita para o centro. O extremo ganhou na raça a Petit e depois ainda roubou a bola a Didier Deschamps, atual selecionador francês, e a bola sobrou para Nuno Gomes. O avançado do Benfica, que se mudaria para a Fiorentina depois do Europeu, nem pensou duas vezes: toma lá disto, Barthez. Uma canhota com muuuito estilo, deu o 1-0. Que golaço. Portugal sonhava, pois claro. Tem sido o nosso fado.
“”Zidane, que mais tarde reconheceu que terá sido o melhor jogo da sua carreira, pegou na bola e começou a fazer os colegas jogar. Foi mágico, todo ele era poesia na bota direita, com receções no ar, como se estivesse no ballet, ou rotações e calcanhares só dignas destes seres que moram no Olimpo do futebol”
O jogo complicaria, porque aquela gente que vestia de azul tinha talento até mais não. Zidane, que mais tarde reconheceu que terá sido o melhor jogo da sua carreira, pegou na bola e começou a fazer os colegas jogar. Foi mágico, todo ele era poesia na bota direita, com receções no ar, como se estivesse no ballet, ou rotações e calcanhares só dignas destes seres que moram no Olimpo do futebol.
Henry empataria aos 51′ e o jogo, tal como em 1984, teria de ser decidido no prolongamento. Paulo Bento, João Pinto e Rui Jorge já estavam em campo, pelos amarelados Vidigal e Dimas, e ainda Rui Costa. RogerLemerre lançara Trezeguet, Wiltord e RobertPirès. Aquilo esteve embrulhado no prolongamento, com ascendente para os gauleses.
https://www.youtube.com/watch?v=pYTBZnqI-9Q
Até que… priiiii, penálti para a França, a sensivelmente cinco minutos dos 120. Wiltord chutou, Vítor Baía não evitou e foi Abel Xavier quem cortou a bola. Segundo o árbitro, com a intencionalidade de usar o braço. Tem a palavra o senhor camisola 14 da seleção das quinas:
“O futebol é tão rápido… O lance não foi assim tão rápido a ser assinalado”, lembra Abel Xavier ao Observador. “Entre a situação em si e a decisão do árbitro passaram uns minutos. Eu sempre disse que o árbitro, o fiscal de linha neste caso, foi condicionado pela ação dos jogadores franceses. Daí poderíamos também comparar se fosse na área adversária, o árbitro nunca marcaria. Ou se eu fosse francês, menos ainda! Ficou a sensação de que o jogo jogado em campo não prevaleceu, fomos condicionados. Foi deturpada a verdade do jogo. Fomos recebidos em Portugal com um misto de sentimentos. Muita gente percebeu que fomos prejudicados, outras pensaram que o lance foi intencional. Sou suspeito, sou o único que pode falar da situação. Bateu na mão, isso é óbvio, claro. A intencionalidade não estava provada pela atitude do árbitro, só eu posso dizer.”
“””Tiraram-nos uma grande oportunidade de duas gerações, de termos ganho um título. Aquela geração teve verdadeiramente uma empatia com o povo português, era intitulada de Geração de Ouro. Jogávamos em grandes equipas europeias, mas não conseguimos ganhar um título”
E Zizou lá marcou. “Retenho os aspetos positivos”, explica o lateral. “Tiraram-nos uma grande oportunidade de duas gerações, de termos ganho um título. Aquela geração teve verdadeiramente uma empatia com o povo português, era intitulada de Geração de Ouro. Jogávamos em grandes equipas europeias, mas não conseguimos ganhar um título.”
Inesquecível para Abel Xavier será o que aconteceu perto do minuto 90, quando Barthez fez uma defesa de sonho a um cabeceamento seu. “Se tivesse entrado… O Barthez fez a melhor defesa do Europeu. A seguir, uns minutos depois é que aconteceu o tal lance do penálti e a saída de Portugal, que tinha um futebol muito atrativo, num ano que merecíamos mais. Merecíamos mesmo o título, pela qualidade de jogo e empatia do grupo. Esse é o sentimento amargo que ficou dentro de nós, que merecíamos ter chegado à final e discutido o título…”
2004
A seleção de 2004 misturava a ousadia e coragem de um garoto chamado Cristiano Ronaldo e a categoria e experiência de Rui Costa, Deco, Simão, Nuno Gomes, Pauleta e Figo. Estava tudo a favor: um selecionador no coração dos portugueses, que os convence a meterem as bandeiras nas janelas; a condição física, o sentimento das pessoas, as correntes de energia entre elas, o bom futebol. A vontade fazer história, finalmente. Portugal tinha tudo.
Depois de um percurso mais ou menos doloroso, quais dores de crescimento, com a derrota com a Grécia e a passagem nos quartos em penáltis vs. Inglaterra (tal como agora vs. Polónia), Portugal chega às meias-finais com o vento a favor. Pela frente estavam os holandeses, com craques como Ruud van Nistelrooy, Marc Overmars, Edgar Davids e por aí fora.
O que quer, afinal, um jogador ouvir antes de uma meia-final? “Quer ouvir que vai jogar ou não”, diz ao Observador Jorge Andrade, sem hesitações. “Os que vão jogar querem saber antes, para não estarem à espera de surpresas. No caminho para o campo é dita a equipa que vai jogar. Isso deixa a equipa tranquila, porque é uma concentração diferente, vão mais tranquilos.”
E havia rituais? “Era calmo. Antes de sair do hotel, antes da reunião, dormia uma sestinha [risos]. Na viagem ia a ouvir música. Quando chegava ao estádio já era sem música, nem falava com os colegas. Ou só falava do jogo, não gostava muito de me dispersar e falar sobre outras coisas — adversários, como fazem e não fazem. Era tudo virado para o jogo.”
Jorge Andrade revela que Felipão decidiu desde o início treinar os penáltis, e que todos praticaram. Por isso, chegaram mais confortáveis à hora da decisão contra a Inglaterra, que teria em Ricardo o herói improvável.
https://www.youtube.com/watch?v=OLl0vFoTZ58
Curioso é um defesa central como Jorge Andrade, inteligente na abordagem aos lances, rápido na bola, com timing, ter sabido parar jogadores como Nistelrooy, Robben, Overmars e Makaay, mas… depois foi ele quem fez um golo na própria baliza, que relançou o jogo. Como se digere isso?
“Com aquela ganância de não deixar a bola para o Nistelrooy, meti o pé mal, fez um arco espetacular sobre o Ricardo. Estava convicto que não ia deixá-lo chegar à bola. No entanto a bola foi para o lado errado. Estávamos a ganhar 2-0. Depois tivemos a ajuda do Fernando Couto, que entrou na parte final para ajudar nas bolas aéreas. Foi um jogo muito tranquilo”, lembra. Tranquilizou-o o facto de Portugal estar por cima, com mais bola, mais confiança. “A Holanda não conseguia fazer o seu jogo.”
E o tal penálti, que tal a ressaca? “O Ricardo passou-me a mão pela cabeça, são coisas que acontecem. Nem se falou muito. De vez em quando, quando me encontro com o Maniche, digo-lhe que ele me salvou a pele, não fosse aquele segundo golo não estaríamos naquela situação. A vitória foi expressiva, não pelos números, mas pela superioridade.”
Pergunta inspirada nas palavras de Diego Simeone, num churrasco-entrevista: imaginar o sucesso nas vésperas atrapalha a preparação de um jogo grande? “Depende”, diz o ex-central do FC Porto. “Depende da forma como se encaram os jogos. Contra adversários mais fracos, estar a pensar que as coisas já estão feitas, é mau. Com equipas superiores, ter a ousadia de pensar que se pode ganhar é bom. Uma meia-final vai-se para ganhar e festejar. E Portugal tem de estar convicto que vai passar…”
2012
Em 2012 Portugal voltou a atingir as meias-finais. Paulo Bento era o homem do leme, que apostou no seguinte onze para a meia-final vs. Espanha: Rui Patrício, João Pereira, Fábio Coentrão, Pepe, Bruno Alves, Miguel Veloso, Raul Meireles, Joao Moutinho, Nani, Cristiano Ronaldo e Hugo Almeida. A Espanha era campeã europeia e mundial, por isso seria missão quase impossível. No relvado, mais uma vez, esta gente mostrou que não há impossíveis.
O jogo fechou com um zero-zero no marcador. Dez remates para Portugal, 11 para a Espanha. Cinquenta e sete por cento de posse de bola para nuestros hermanos, 43% para os portugueses. Houve equilíbrio. Muito. A Espanha cometeu 30 faltas, contra as 19 de Portugal. Foi rijinho.
https://www.youtube.com/watch?v=RX_svglx1QE
Os 90 minutos não ofereceram golos. O prolongamento, já com Custódio, Nélson Oliveira e Varela em campo, idem. Era tempo de bater os penáltis. Cristiano Ronaldo decidiu ficar para último, para o derradeiro toque da glória. Os primeiros a bater falharam: Moutinho e Xabi Alonso. Iniesta, Pepe, Piqué, Nani e Ramos acertaram no alvo, e fizeram bailar as redes de uma das balizas da Donbass Arena, em Donetsk. Bruno Alves falharia a seguir e Cesc Fàbregas sentenciaria a passagem à final, onde seriam os maiores novamente…
Aqui a história está no facto de Cristiano Ronaldo, o líder e capitão da seleção, não ter batido. Neste Campeonato da Europa que estamos ainda a viver, Portugal teve de disputar os penáltis contra a Polónia de Lewandowski. Muitos se lembraram deste filme de 2012. E Ronaldo também, por isso foi o primeiro a assumir. E convidou João Moutinho a avançar naquela aventura de emoções fortes e de responsabilidades para homens de ferro. Se falhares, falhaste, com uma variação na linguagem. E ninguém falhou. Agora segue-se Gales de Gareth Bale…