816kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

O massacre de Jonestown foi há 40 anos. Sobreviventes regressam este mês à selva da Guiana

Até 11 de setembro de 2001, nunca tantos civis americanos tinham morrido de uma só vez. Os 909 de Jonestown incluíam muitas crianças e o fundador do Templo do Povo. Falámos com uma das sobreviventes.

Aconteceu a 18 de novembro de 1978, mas as imagens de centenas e centenas de cadáveres amontoados sobre a relva, de barriga para baixo, vestidos de tons garridos, lado a lado, e sem pinga de sangue à vista — corpos de jovens e de idosos, de crianças e de bebés — são a garantia de que aquele que ficou conhecido como o massacre de Jonestown nunca será esquecido. Na altura, correram mundo. Desde então, nos últimos 40 anos, não deixaram de o fazer: dezenas de livros foram escritos, vários documentários foram realizados — pelo menos outros dois, um com produção de Leonardo DiCaprio, têm estreia marcada para 2018.

A capa da Time de 4 de dezembro de 1978

Ao todo, 909 pessoas morreram naquele fatídico dia em Jonestown, cidade utópica arrancada à selva da Guiana a golpes de catana pelos seguidores do Templo do Povo apenas três anos antes. Jim Jones, então com 47 anos, líder do culto fundado em 1955 em Indianápolis, nos Estados Unidos, ter-se-á suicidado, com um tiro na cabeça. Os restantes seguidores da seita caíram envenenados, depois de beberem sumo de uva com cianeto.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Muitas das 908 vítimas terão morrido voluntariamente mas, têm garantido ao longo dos anos os cerca de 80 sobreviventes da seita (três dos nove filhos de Jim Jones incluídos), a maioria foi assassinada. Quase 300 eram crianças ou bebés — foram os primeiros a morrer.

“Alguns dizem suicídio, eis um termo que eu nunca utilizaria, ‘suicídio’. Aquele homem estava a matar-nos.”
Stanley Clayton, sobrevivente do Templo do Povo

Alguns quiseram fugir, mas nem sequer tentaram, com medo dos guardas armados que os rodeavam. Stanley Clayton, um dos poucos que conseguiram escapar e embrenhar-se na selva, garantiu em 2006, no documentário Jonestown, the life and death of Peoples Temple, que a expressão “suicídio em massa”, usada desde então para descrever aquela contagem macabra — que foi, até aos atentados de 11 de setembro de 2001 e sem contar com as vítimas de desastres naturais, a maior perda de vidas civis da história dos Estados Unidos — não poderia estar mais errada. “Alguns dizem suicídio, eis um termo que eu nunca utilizaria, ‘suicídio’. Aquele homem estava a matar-nos.”

Laura Johnston Kohl (à direita) com outra sobrevivente do Templo do Povo, Janet Shular, em 2017

Laura Johnston Kohl, 69 anos, não morreu porque no dia em que tudo aconteceu estava em Georgetown, capital do país. Mas acredita ainda hoje que, se o plano do fundador da seita tivesse sido cumprido, não poderia contar agora a história ao Observador. “O Jim mandou-me para Georgetown, para trabalhar. Só me apercebi disso alguns anos depois de ter sobrevivido, mas a pessoa encarregue da casa de Georgetown era uma mulher que tinha trabalhado comigo nos Estados Unidos, no departamento de Segurança Social, durante 7 anos. Conhecia-a bem, a ela e à família. Tenho a certeza de que o Jim pensava que se ela me dissesse que ele queria que nos suicidássemos, eu seguiria as instruções. Ela até pode ter pedido que tivesse sido eu a ir para lá pela mesma razão. Naquele dia, ela matou os três filhos e a seguir suicidou-se. Não morreu mais ninguém em Georgetown, nenhum de nós recebeu a mensagem para nos matarmos — só a Sharon, que a transmitiu ao Stephan e ao Jimmy, dois dos filhos do Jim. Eles é que impediram que ela contasse a mais gente, não deixaram que ninguém soubesse.”

“O Jim mandou-me para Georgetown, para trabalhar. Só me apercebi disso alguns anos depois de ter sobrevivido, mas a pessoa encarregue da casa de Georgetown era uma mulher que tinha trabalhado comigo nos Estados Unidos. Conhecia-a bem, a ela e à família. Tenho a certeza de que o Jim pensava que se ela me dissesse que ele queria que nos suicidássemos, eu seguiria as instruções."
Laura Johnston Kohl, sobrevivente do Templo do Povo

40 anos depois de ter perdido a sua “família adotiva”, Laura, autora de Jonestown Survivor e professora de Inglês e Estudos Sociais, prepara-se para voltar agora pela primeira e última vez à Guiana, com o marido e o filho, e um pequeno grupo de sobreviventes. “Saí de Georgetown em novembro de 1978. Nunca mais voltei a Jonestown, que sei que voltou a estar no meio da floresta tropical, uma selva, onde sobra pouco da nossa comunidade. Vamos com um investigador, que tem esperança de fazer uma produção televisiva definitiva sobre o Templo do Povo, mas não queremos publicitar a viagem. Vai ser uma experiência muito pessoal, não queremos ser surpreendidos pelos media enquanto vamos de um sítio para o outro.”

Monstro ou ativista?

Jeff Guinn, jornalista e autor de The Road to Jonestown: Jim Jones and the Peoples Temple, proferiu, em 2017, uma das opiniões mais polémicas alguma vez partilhadas sobre o fundador da seita: “Se Jim Jones tivesse morrido num acidente de carro, enquanto se mudava do Indiana para a Califórnia, seria lembrado como um dos maiores líderes do movimento pelos direitos civis. E merece ser recordado desta forma. Quero dizer, há pessoas hoje em dia em São Francisco que dizem que não estariam sequer vivos se não tivesse sido o Templo do Povo e os programas anti-drogas que lá existiam. O Templo das Pessoas realmente fez muitas coisas boas”.

“Se Jim Jones tivesse morrido num acidente de carro enquanto se mudava do Indiana para a Califórnia, seria lembrado como um dos maiores líderes do movimento pelos direitos civis. E merece ser recordado desta forma. Quero dizer, há pessoas hoje em dia em São Francisco que dizem que não estariam sequer vivos se não tivesse sido o Templo do Povo e os programas anti-drogas que lá existiam. O Templo das Pessoas realmente fez muitas coisas boas.”
Jeff Guinn, autor de The Road to Jonestown: Jim Jones and the Peoples Temple

O que nos faz retroceder até aos anos 50 e viajar durante quase 5 mil quilómetros, da selva infestada de insetos e cobras da Guiana para Indianápolis, uma cidade do midwest dos Estados Unidos com políticas raciais sulistas, onde James Warren Jones, com pouco mais de 20 anos, começou a dar nas vistas.

Filho único de James Thurman Jones, um alcoólico sem trabalho conhecido, e de Lynetta Putnam, que, para compensar, acumulava empregos e passava os dias inteiros longe de casa, Jim Jones cresceu sozinho em Lynn, pequena cidade a 115 quilómetros da capital do Indiana, no período da Grande Depressão.

Sempre se terá sentido diferente, à parte. Mais tarde, ele próprio assumiria: “Sempre fui um pária”. Com 5 anos, contou Chuck Wilmore, seu colega de escola, no livro Jonestown, the life and death of Peoples Temple, o pequeno Jim já era obcecado com a religião e com a morte e tinha como uma das brincadeiras favoritas a celebração de funerais para animais mortos.

Não tinha amigos: porque as outras crianças o achavam esquisito, mas também porque ele próprio não as compreendia; não tinham fé, não se comportavam com a elevação que os preceitos religiosos exigiam. Refugiou-se nas aulas (acabou o liceu com distinção) e na Igreja Pentecostal mais próxima. Aos 16 anos já pregava sozinho nas ruas, tanto em bairros negros como brancos, e advogava a integração racial, a igualdade de direitos, a luta contra a pobreza. Oito anos depois, já licenciado em Educação e casado com a enfermeira Marceline Baldwin, que também morreu a 18 de novembro de 1978 e com quem formou aquela a que se orgulhava de chamar a sua “família arco-íris” de nove filhos (oito adotivos, um biológico), fundaria o seu próprio movimento religioso.

Quase 300 dos 909 mortos de Jonestown eram crianças

O Templo do Povo – Igreja Cristã dos Discípulos de Cristo nasceu em 1955 em Indianápolis, já depois de Jones ser afastado tanto da Pentecostal como da Igreja Metodista. As suas ideias sobre raça eram demasiado radicais e a descrença num deus conivente com tanta pobreza e desigualdade avolumou-se de tal forma que só viu essa saída.  Criou uma nova religião e escreveu ele próprio as regras do jogo: não acreditava em deus e mais tarde viria até a atirar Bíblias ao chão, para provar que  não tinham nada de sagrado (“Isto não tem poder! Viram algum raio atingir-me?”), mas tratou de arranjar um nome cristão e de se afiliar a uma organização cristã já existente. Se queria crescer e recrutar seguidores, tinha mesmo de ser assim.

Foi. Durante quase uma década, o Templo do Povo deu ajuda a idosos, sem-abrigo, toxicodependentes, desempregados e marginalizados no estado do Indiana, através do seu centro social, da sopa dos pobres e de programas de desintoxicação. O reverendo Jim Jones, por seu turno, tornou-se um reconhecido membro da comunidade e chegou até a ser eleito líder da Comissão de Direitos Humanos de Indianápolis.

Só havia um pequeno problema: eram os anos 50, numa América ainda segregada e, se eram adorados por muitos, o que não faltava também na zona era quem desprezasse e odiasse o Templo do Povo e seu fundador. Em 1964, levado por um artigo da revista Esquire que garantia que Ukiah, na Califórnia, era um dos nove sítios do mundo onde se poderia sobreviver a um ataque termonuclear, Jim Jones mudou a sua igreja para lá.

Das curas de fé aos perigos do sono

No início eram 141 pessoas, a maior parte de origem afro-americana. Instalaram-se em Redwood Valley, a 13 quilómetros da cidade de Ukiah, no condado de Mendocino, e sob as ordens de Jones trataram de organizar uma espécie de micro-sociedade auto-sustentável: construíram casas, plantaram colheitas, criaram galinhas e cabras, trataram das vinhas que abundavam na zona.

“Dizia que no universo só existiam duas pessoas como ele e eu. Costumava dizer que eu também ia ter aquele dom quando fosse mais velho. E eu acho que, enquanto criança, gostava de acreditar nisso.”
Stephan Gandhi Jones, filho de Jim Jones

Nos tempos livres, ouviam os sermões do reverendo, que, entretanto, se tinha passado a dedicar cada vez mais às “curas de fé”. Stephan Gandhi Jones, o único filho biológico de Jim e Marceline, contou ao Washington Post, em 1983, que o pai chegou a usar miúdos de frango para simular que expelia excrescências ensanguentadas dos corpos dos doentes. “Dizia que no universo só existiam duas pessoas como ele e eu. Costumava dizer que eu também ia ter aquele dom quando fosse mais velho. E eu acho que, enquanto criança, gostava de acreditar nisso.”

A mensagem espalhou-se e as pessoas começaram a chegar: afro-americanos, ásio-americanos, ativistas brancos, desertores da guerra do Vietname, idosos, toxicodependentes, todos queriam viver no Templo do Povo. Todos eram aceites, sem perguntas nem juízos de valor.

"Quando não estava no emprego, conduzia um dos autocarros, fazia segurança, tratava de papelada, escrevia cartas a juízes e oficiais de liberdade condicional para tentar tirar pessoas da cadeia. Estava na Comissão de Planeamento, que tinha reuniões semanais com o Jim, que duravam a noite inteira, sobre assuntos da direção e também dava aconselhamento. Andávamos todos muito ocupados -- dormíamos no máximo seis horas por noite e muitas vezes até menos."
Laura Johnston Kohl, sobrevivente do Templo do Povo

Todos os verões, em autocarros que entretanto tinham comprado e reparado, Jim Jones e parte do seu séquito saíam de Ukiah em digressão pelo país, para angariar novos membros. À medida que paravam e que o reverendo ia dando palestras, era só encher os autocarros com seguidores de todas as idades. Os mais velhos eram convencidos por Jim Jones a venderem as suas casas e a doarem o dinheiro à comunidade; os mais novos que trabalhassem fora do Templo do Povo tinham de entregar os respetivos salários todos os meses. Por semana, conta um antigo membro da seita, em Jonestown, the life and death of Peoples Temple, cada pessoa recebia 5 dólares para despesas pessoais. Tudo o resto era gratuito: comida, roupa, alojamento, médico e até dentista.

“Mudei-me para o Templo do Povo em 1970, quando tinha 22 anos, vivia numa habitação comum, com uma série de outras pessoas. A comunidade ficava a duas horas de São Francisco, onde trabalhava no departamento de Segurança Social. Quando não estava no emprego, conduzia um dos autocarros, fazia segurança, tratava de papelada, escrevia cartas a juízes e oficiais de liberdade condicional para tentar tirar pessoas da cadeia. Estava na Comissão de Planeamento, que tinha reuniões semanais com o Jim, que duravam a noite inteira, sobre assuntos da direção e também dava aconselhamento. Andávamos todos muito ocupados — dormíamos no máximo seis horas por noite e muitas vezes até menos”, recordou Laura Johnston Kohl ao Observador.

Jim Jones numa celebração em Redwood Valley

Também terá sido mais ou menos nesta altura, ainda em Redwood Valley, que Jim Jones começou a cercear as liberdades dos seus seguidores. A comunicação com os familiares era desincentivada, assim como as trocas de ideias entre os próprios membros da comunidade. Tudo aquilo que era necessário ser dito, o reverendo dizia. De resto, o importante era assistir às celebrações religiosas, onde podiam aproveitar para cantar e dançar — e trabalhar. Muito. Tudo para dormirem o mínimo possível. Dormir “leva as cabeças para o lugar errado e torna as pessoas mais susceptíveis de cometer traição”, garantia Jim Jones. Seguramente sabia que a privação de sono seria preponderante para que tantas pessoas aceitassem passivamente aquilo que, de repente, lhes começava a ser imposto, acreditam hoje muitos dos sobreviventes.

Na alta-roda da política de São Francisco

A realidade ajudou o reverendo. Longe do Templo do Povo, os que lutavam pela igualdade de direitos e pela integração racial foram caindo — John F. Kennedy, Malcom X, Martin Luther King, todos foram assassinados. Lá fora o mundo era perigoso e só Jim Jones poderia defender os seus seguidores, garantia em celebrações cada vez mais concorridas e frenéticas, em que pessoas quase cegas tiravam os óculos e conseguiam ver e paraplégicas se levantavam das cadeiras e milagrosamente saíam do templo a correr. Com o passar do tempo, ele próprio começou a acreditar nisso mesmo e a desenvolver a paranóia que o fez passar a andar com 15 guarda-costas e que, anos depois, condenaria mais de 900 pessoas à morte.

Quando já tinha várias centenas de fiéis, em 1974, Jones expandiu o Templo do Povo para São Francisco, onde se aproximou da política e experimentou ainda mais poder. Em 1977, quando decidiu do dia para a noite (já lá iremos) transferir o culto para a Guiana, de acordo com os jornais da época, contava já com 20 mil seguidores.

[Veja no vídeo algumas das curas espirituais de Jim Jones]

Na alta-roda de São Francisco, Jim Jones era o reverendo espartano e defensor dos direitos civis que conhecia toda a gente e cujo templo era visita obrigatória dos políticos de passagem pela cidade. Em 1976, um ano antes de o marido, Jimmy, ser eleito presidente dos Estados Unidos, Rosalynn Carter participou no mesmo comício que o líder do Templo do Povo e deixou-se fotografar com ele. Na altura, Jim Jones já era uma figura de relevo no Partido Democrata local, depois de em 1975 ter sido determinante para a vitória do mayor George Moscone (que seria assassinado, juntamente com Harvey Milk, o primeiro político homossexual assumido eleito na Califórnia, 10 dias depois do massacre de Jonestown). E, entretanto, tinha sido também nomeado comissário da Autoridade Habitacional de São Francisco e dava espectáculo em todas as reuniões.

Já no interior da comunidade era o líder misândrico, que preferia as mulheres (mais confiáveis, acreditava) aos homens e que, apesar de garantir ser o único heterossexual do planeta, tinha relações com ambos. “A estratégia do Jim era culpar a vítima. Falava publicamente sobre ter tido sexo com uma mulher porque ela precisava de saber como era bonita, ou porque era suicida, ou porque queria ir-se embora para encontrar o amor, qualquer desculpa servia. O que ele NUNCA disse foi que tinha tido vontade de ter sexo, que se tinha sentido tentado, ou que estava arrependido. Usava o sexo como forma de comprometer e manipular homens e mulheres. Falava muito sobre o assunto”, acusa Laura Johnston Kohl. E o filho Stephan também: “Dava para perceber quando era um homem, a posição era diferente. A certa altura começou a gabar-se de receber 16 pessoas num só dia e porcarias do género”.

Laura Johnston Kohl (à esquerda), em Georgetown, em 1977

Foi também nessa fase que, apesar de proibidas pelo líder, algumas pessoas começaram a abandonar o Templo do Povo. Pior do que isso: a contar ao mundo exterior o que se passava dentro da comunidade.

Quando, em junho de 1977, percebeu que a revista The New West estava a preparar uma reportagem sobre a seita, Jim Jones pediu ajuda aos amigos influentes, que ligaram para a redacção e pediram que o trabalho fosse abortado: “Ele é um bom homem, ele faz boas coisas”, citaram os jornalistas Marshall Kilduff e Phil Tracy no artigo que foi publicado no dia 1 de agosto desse ano. Depois, pôs membros do Templo a telefonar e a escrever para a revista — ao ritmo de 50 chamadas e 70 cartas por dia, contabilizaram os repórteres. Como não resultou, pediu para ler a reportagem e tentou convencer o diretor a não publicar. No fim, quando percebeu que o texto, em que 10 ex-membros do culto contavam tudo sobre as sessões de humilhação e espancamento público que tinham passado nos últimos anos a ser norma na comunidade, decidiu fugir para a Guiana. Do dia para a noite — literalmente.

O inferno na “terra prometida”

Há pelo menos dois anos que um pequeno grupo de seguidores do Templo do Povo, chefiados por Stephan Jones, estava naquele país da América do Sul, entre a Venezuela, o Brasil e o Suriname, a desenvolver o Projeto Agrícola do Templo do Povo. Com o acordo do governo guienense, os membros da seita tinham desflorestado uma parcela de 1.500 hectares no meio da selva do país, a norte da capital, construído infraestruturas e trabalhado a terra. O trabalho estava a correr tão bem que, nos Estados Unidos, durante as celebrações, costumavam ser mostrados vídeos da nova comunidade. E o sentimento era geral: todos queriam ir para lá.

A reportagem da New West só fez com que Jim Jones antecipasse o plano utópico de fazer ali a sua “terra prometida”. E, apesar de toda a má publicidade em torno da seita, cerca de mil fiéis não hesitaram em segui-lo. Elmer e Deanna Mertle relataram à revista como uma das filhas, com apenas 16 anos, tinha sido uma vez castigada com 75 palmadas nas nádegas, com a “tábua da educação”, perante 600 ou 700 pessoas — tudo porque cumprimentou com um abraço e beijos uma amiga que já não via há muito tempo (e que se dizia que era lésbica). Já Grace Stoen, que até sair ocupou um lugar de relevo na hierarquia da igreja, revelou que a expansão para São Francisco só aconteceu por causa do dinheiro extra que podiam ganhar com as celebrações — segundo as contas de Jim Jones, “entre 15 mil e 25 mil dólares por fim de semana”. Nenhum dos testemunhos fez diferença. Laura Johnston Kohl, uma das 90 pessoas que em dezembro de 1975 foram enviadas pelo reverendo à Guiana, para fazer o reconhecimento do local, garante que, entre a primavera de 1977 e o fim, em 1978, todos os meses transportou entre 40 e 120 membros do Templo, do aeroporto de Georgetown para Jonestown, a 24 horas de distância, feitas de barco.

Uma das camaratas de Jonestown

“Jonestown tinha uma espécie de anfiteatro, a que chamávamos Pavilhão, uma cozinha enorme e um armazém onde se guardavam os mantimentos. Em novembro de 1978, havia cinco dormitórios grandes e 52 casas de campo. Estávamos a construir uma por semana para poder alojar todas as pessoas que viviam em Jonestown — mas atenção, ninguém tinha o seu próprio quarto, tanto podíamos partilhar com 3 como com 12 pessoas”, recorda a agora professora do 6º ano ao Observador. “A cozinha providenciava três refeições por dia e toda a gente tinha trabalho para fazer, desde trabalhar a terra a lavar vegetais para as refeições, fazer sabão ou cultivar amendoins. Tínhamos uma grande escola para os miúdos até aos 16 anos, mas só lá estivemos durante dois, não percebemos como mandar os miúdos para a universidade, apesar de o Jim às vezes falar em mandar alguns dos mais novos para Cuba”, continua.

“Aquele tornou-se um sítio sem futuro. Eu tinha um filho… Estávamos a passar fome. Comíamos arroz todos os dias. Não havia vegetais. Não tínhamos nutrientes. Tornou-se óbvio que aquele sítio era uma prisão… Estava pronta para me ir embora. E se o Jim tivesse dado essa opção às pessoas, acho que muita gente tinha escolhido voltar aos Estados Unidos… Mas nós não tínhamos voz. E isso nunca mudou em Jonestown.”
Leslie Wagner-Wilson, sobrevivente do Templo do Povo

Circundado por altas vedações, com torres de vigia e patrulhamento constante de guardas com armas semi-automáticas, o Projeto Agrícola do Templo do Povo rapidamente se revelou uma desilusão. “Quando o Jim Jones não estava lá, as coisas tendiam a ser um pouco mais leves, as pessoas dançavam, cantavam, havia música em várias casas. Mas quando ele estava era muito diferente, era como se houvesse uma nuvem negra”, recordou um sobrevivente em Jonestown, the life and death of Peoples Temple.

A terra prometida era, afinal, uma prisão, onde a voz de um Jim Jones cada vez mais paranóico e viciado em barbitúricos, anfetaminas e tranquilizantes ecoava 24 horas por dia, em todos os cantos, através de um potente sistema de som.

“Achávamos que o Jim podia ler as nossas mentes, por isso mantinhamo-nos longe dele. Dizíamos uns aos outros ‘Nunca penses nada negativo quando ele passar, ele consegue ler mentes’. Fomos completamente enganados de uma série de formas diferentes… Tornou-se muito controlador. Já não era divertido”, contou a sobrevivente Leslie Wagner-Wilson, no documentário Jonestown: The Women Behind the Massacre. “Aquele tornou-se um sítio sem futuro. Eu tinha um filho… Estávamos a passar fome. Comíamos arroz todos os dias. Não havia vegetais. Não tínhamos nutrientes. Tornou-se óbvio que aquele sítio era uma prisão… Estava pronta para me ir embora. E se o Jim tivesse dado essa opção às pessoas, acho que muita gente tinha escolhido voltar aos Estados Unidos… Mas nós não tínhamos voz. E isso nunca mudou em Jonestown”, concluiu a antiga seguidora da seita, que, no dia 18 de novembro de 1978, conseguiu escapar para a selva da Guiana com o filho, de três anos, e outras nove pessoas.

As “noites brancas” e a negra tarde de 18 de novembro de 1978

Enquanto nos Estados Unidos os familiares dos membros das seitas se desdobravam em manifestações — “Free our families” (Libertem as nossas famílias) era o grito de ordem –, em Jonestown, Jim Jones ia ensaiando o fim. Teri Buford O’Shea, que passou sete anos no Templo do Povo, de onde conseguiu escapar apenas três semanas antes do massacre, descreveu à revista The Atlantic, em 2011, uma prática a que o reverendo chamou “white nights” (noites brancas).

"Portanto lá estávamos nós, no meio da selva, a ouvirmos tiros e a sermos rodeados por pessoas armadas. Depois apareciam umas mulheres com uns tabuleiros com copos do que diziam ser sumo, da marca Kool-Aid ou da Flavor-Aid, o que tivessem na altura, com cianeto. Toda a gente bebia. E quem não bebia era forçado a fazê-lo. Até porque se tentasse fugir era abatido. E, no final, pensávamos todos ‘Mas por que é que não estamos mortos?’. E aí o Jim começava a rir e a bater palmas, dizia que tinha sido um ensaio, ‘Agora sei que posso confiar em vocês. Vão para casa, meus queridos! Durmam bem!’.”
Teri Buford O'Shea, sobrevivente do Templo do Povo

“Eram práticas de suicídio revolucionário. Fez isto várias vezes, tanto nos Estados Unidos como na Guiana. Havia altifalantes em todo o recinto e a voz do Jim era transmitida quase 24 horas por dia. E enquanto ele estivesse a falar, nós não podíamos conversar, era essa a regra. Portanto, de repente ele gritava ‘Noites Brancas! Noites Brancas! Vão para o Pavilhão! Corram! As vossas vidas estão em perigo!’. E toda a gente corria para o Pavilhão. Onde depois ele nos dizia que nos Estados Unidos os afro-americanos estavam a ser levados para campos de concentração, que estava a decorrer um genocídio. E eles estavam a caminho para nos matarem e torturarem, por termos seguido a via socialista. Na altura não sabíamos, mas ele tinha mandado pessoas disparar para a selva, para acharmos que estávamos sob ataque. E havia outras a quem ele tinha mandado fugir para serem atingidos — com balas de borracha, mas isso também não sabíamos. Portanto lá estávamos nós, no meio da selva, a ouvirmos tiros e a sermos rodeados por pessoas armadas. Depois apareciam umas mulheres com uns tabuleiros com copos do que diziam ser sumo, da marca Kool-Aid ou da Flavor-Aid, o que tivessem na altura, com cianeto. Toda a gente bebia. E quem não bebia era forçado a fazê-lo. Até porque se tentasse fugir era abatido. E no final, pensávamos todos ‘Mas por que é que não estamos mortos?’. E aí o Jim começava a rir e a bater palmas, dizia que tinha sido um ensaio, ‘Agora sei que posso confiar em vocês. Vão para casa, meus queridos! Durmam bem!’.”

Na tarde de 18 de novembro de 1978 foi exatamente o que aconteceu. Com a diferença de que, dessa vez, o sumo estava mesmo envenenado. E toda a gente sabia disso, o que tinha acontecido nas últimas horas não deixava espaço para dúvidas.

“Acho que todos vocês sabem que, depois de terem sido levantadas algumas questões, estou aqui para saber mais sobre a vossa operação. Mas até agora, das conversas que tive com algumas das pessoas que aqui estão, aquilo que percebi foi que há aqui muita gente que acredita que isto foi a melhor coisa que lhes aconteceu na vida.”
Leo Ryan, congressista democrata de visita a Jonestown, em 1978

Depois de tantas reclamações por parte das famílias dos membros do Templo do Povo, as autoridades nos Estados Unidos resolveram finalmente investigar a seita. E o congressista democrata Leo Ryan, que anos antes já tinha passado uma semana na prisão de Folsom para averiguar as condições de vida dos detidos, achou que não havia outra forma de o fazer se não visitar Jonestown. Acompanhado de vários jornalistas, voou para Georgetown e de lá para Port Kaituma, a vila mais próxima com pista de aterragem, no dia 17 de novembro de 1978, uma sexta-feira.

Surpreendentemente, a comitiva foi recebida com festa e o congressista confessou-se impressionado, depois da visita guiada que o próprio Jim Jones lhe fez, e que incluiu até uma espreitadela para dentro da caixa onde eram guardadas as embalagens do agora famoso sumo.

À noite, no Pavilhão, Leo Ryan agarrou no microfone, dirigiu-se aos membros da seita e foi aplaudido entusiasticamente durante largos minutos. “Acho que todos vocês sabem que, depois de terem sido levantadas algumas questões, estou aqui para saber mais sobre a vossa operação. Mas, até agora, das conversas que tive com algumas das pessoas que aqui estão, aquilo que percebi foi que há aqui muita gente que acredita que isto foi a melhor coisa que lhes aconteceu na vida”, disse. Menos de 24 horas depois, também ele estaria morto.

O congressista Leo Ryan, em Jonestown

Na manhã seguinte, a medo e porque se falassem eram apanhadas, duas pessoas passaram bilhetes a jornalistas — “Help us get out of Jonestown” (Ajudem-nos a fugir de Jonestown). Questionado sobre o assunto, Jim Jones não teve outra saída se não desvalorizar o episódio: “As pessoas fazem jogos, amigo, as pessoas mentem. O que é que eu posso fazer em relação às mentiras? Deixem-nos em paz, imploro-vos, por favor, deixem-nos. Nós não incomodamos ninguém, quem quiser ir-se embora pode ir-se embora, as pessoas vão e vêm a toda a hora”, disse perante as câmaras.

Foi o caos: muitos resolveram aproveitar a deixa e começaram a fazer as malas; maridos e mulheres separaram-se e lutaram pelos filhos; Jim Jones, desesperado, arrependeu-se e implorou ao “seu povo” que não o abandonasse. Depois, no meio da confusão, um homem atacou Leo Ryan com uma faca e a comitiva teve de apressar a partida para Port Kaituma, com o congressista ainda a sangrar.

“Acharam que eles iam deixar-nos continuar aqui? Vocês devem estar loucos! Eles vão torturar as nossas crianças, vão torturar o nosso povo. Não podemos tolerar isso. Se não podemos viver em paz, vamos morrer em paz.”
Jim Jones, em Jonestown, a 18 de novembro de 1978

Estavam a aproximar-se do pequeno avião da Guyana Airways quando uma carrinha de caixa aberta parou na pista e circundou a aeronave, barrando as vias de fuga para a selva tropical. Dela saltaram uma série de homens que dispararam indiscriminadamente até ficarem sem munições. Ao todo, morreram cinco pessoas, Leo Ryan incluído. Minutos depois, Jim Jones anunciou no Pavilhão: “O congressista está morto, a comitiva do congressista está morta, muitos dos nossos traidores estão mortos”.

Logo depois, apareceu o sumo: “Acharam que eles iam deixar-nos continuar aqui? Vocês devem estar loucos! Eles vão torturar as nossas crianças, vão torturar o nosso povo. Não podemos tolerar isso. Se não podemos viver em paz, vamos morrer em paz”.

 
Assine o Observador a partir de 0,18€/ dia

Não é só para chegar ao fim deste artigo:

  • Leitura sem limites, em qualquer dispositivo
  • Menos publicidade
  • Desconto na Academia Observador
  • Desconto na revista best-of
  • Newsletter exclusiva
  • Conversas com jornalistas exclusivas
  • Oferta de artigos
  • Participação nos comentários

Apoie agora o jornalismo independente

Ver planos

Oferta limitada

Apoio ao cliente | Já é assinante? Faça logout e inicie sessão na conta com a qual tem uma assinatura

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.

Vivemos tempos interessantes e importantes

Se 1% dos nossos leitores assinasse o Observador, conseguiríamos aumentar ainda mais o nosso investimento no escrutínio dos poderes públicos e na capacidade de explicarmos todas as crises – as nacionais e as internacionais. Hoje como nunca é essencial apoiar o jornalismo independente para estar bem informado. Torne-se assinante a partir de 0,18€/ dia.

Ver planos