8 de novembro de 2016. Donald Trump é eleito o 45.º Presidente dos Estados Unidos. Um republicano que, para uns, é o oposto dos fundamentos da sociedade americana e, para outros, é o rosto da mudança, da chegada “a uma nova era democrática”. Ganhou e quer “tornar a América grande outra vez”. Em “O Método no Caos”, um livro editado pela Dom Quixote e à venda a partir do dia 11 de setembro, Tiago Moreira de Sá e Diana Soller propõem regressar ao início com uma análise ao contexto que permitiu a ascensão do homem que está à frente dos Estados Unidos, bem como identificar e descrever a sua política e estratégia externa.
O Observador faz a pré-publicação do primeiro capítulo do livro, onde os autores abordam o contexto, as origens e os valores do jacksonianismo populista, uma “expressão identitária por trás das posições políticas de Donald Trump”, inspirada em Andrew Jackson. É que, à semelhança do sétimo presidente norte-americano, Trump “apresenta-se como o campeão da classe trabalhadora e mais desfavorecida contra as elites de Washington e contra os imigrantes, que considera os principais responsáveis pelo declínio económico e o aumento da criminalidade dos Estados Unidos”.
O populismo jacksoniano: a América que ninguém quis ver
Walter Russell Mead, o professor do Bard College que cunhou o termo «jacksonianismo», apresenta-o não como uma corrente ou como um movimento político, mas como um «fenómeno populista», profundamente enraizado na comunidade folk. Assim, antes de mais, é importante compreender o que é afinal o populismo.
O termo é fluído e difícil de definir. No entanto, parece-nos que se trata sobretudo de um método para obter determinados resultados eleitorais (e, em alguns casos, para governar), «informado pelo empirismo», ou seja «uma espécie de mapa mental através do qual os indivíduos analisam e compreendem a realidade política», consciente ou inconscientemente. Este método tem características comuns a uma enorme diversidade de países do mundo – podendo até ser usado por partidos mais tradicionais com a finalidade de ganhar eleições — e está sempre preso a uma «ideologia hospedeira» que vai definir o conteúdo da narrativa populista, das reivindicações dos populistas e, até certo ponto, da forma como um candidato populista vai governar se for eleito.
O método populista tem um conjunto de características definidoras. Uma delas já foi referida: um contexto de crise simultaneamente económica, social e política. Uma crise identitária deve ser entendida como um sentimento social de que alguma coisa está profundamente errada com o estado de coisas e é preciso operar mudanças para que se restaure o bom funcionamento das instituições. Como seria de esperar, este fenómeno divide as sociedades ao meio: de um lado, ficam aqueles que acreditam que, apesar de todos os problemas, a melhor solução é continuar no caminho político que tem caracterizado o seu país, com as necessárias reformas; do outro lado, estão os que acreditam que é necessário mudar radicalmente as regras do jogo para que a sociedade a que pertencem se torne mais justa e possa progredir num novo caminho. Pela ordem das coisas políticas, deveríamos chamar -lhes progressistas, não fosse o caso de as narrativas da maioria dos populistas serem profundamente reacionárias – uma espécie de apelo a um passado glorioso que, na verdade, nunca existiu. O exemplo mais imediato é a mensagem de Nigel Farage, do UKIP, um partido que serviu apenas para fazer campanha pelo Brexit.
O populismo caracteriza-se também por uma «relação conflituosa entre o povo e a elite» e entre o primeiro e um terceiro elemento coletivo – o «outro». É preciso, portanto, definir «povo» na aceção populista: trata-se, etnicamente, dos grupos nativos originais, neste caso os colonos, do «povo puro extraído do resto da população», que constitui, aos olhos do populista, a «maioria silenciosa». Este «povo» será defendido das elites corruptas e do «outro». Há uma ligação entre os dois grupos que os populistas consideram rivais: não só as elites se autobeneficiam, como protegem o «outro», por razões de valores políticos. O primeiro exemplo está precisamente na história americana, «na forma como os seguidores de Andrew Jackson se opunham tanto aos “aristocratas” no topo, quanto aos americanos índios e aos escravos abaixo de si». Atualmente, o mesmo se diz das elites de Washington, especialmente os democratas que, desde os anos 1960 – e para protegerem a sua nova grande coligação –, passaram a aprovar indiscriminadamente medidas de afirmação positiva que prejudicam gravemente a população branca.
O populista é (o único) intérprete natural dos desejos do povo. Daí os seus poderes para a criação de uma narrativa própria – «o populismo é uma forma moral distinta de imaginar o mundo político que necessariamente envolve uma representação exclusivamente moral». Espera-se, pois, que o populista faça grandes ruturas políticas com o establishment, que despreza, e cujas regras não se sente obrigado a cumprir. Pode, inclusivamente, quebrar o politicamente correto e dizer o que tantos pensam, mas que, por vigilância social, não podem dizer em voz alta. Aliás, o populista vê-se a si mesmo – e é visto por parte da nação – como um moralizador; por isso mesmo dispõe de uma muito maior amplitude no seu discurso político que se quer direto – para ser compreendido por todos os votantes –, fraturante e, ao mesmo tempo, altamente eficaz.
Falta enumerar a última característica do populismo, porventura a mais consequente para o sistema político e para a democracia: é antipluralista. Ao dividir a sociedade em três entidades distintas e sendo o representante moral de uma única, o populista destrói as fundações da sociedade liberal, ameaçando transformar o Estado a que quer presidir num território muito menos democrático, ainda que esse processo seja lento e muitas vezes quase impercetível, e abrir as portas a um futuro incerto, uma vez que o mundo político imaginado e a interpretação do bem comum dos escolhidos é o que legitima o populista aos seus próprios olhos e aos da população que o elegeu.
Convém ainda ressalvar um ponto pouco debatido em Portugal. Nos EUA, a ideia de populismo não está conotada com a oposição à democracia como na Europa. Os apoiantes de Trump celebram a sua vitória como uma espécie de chegada a uma nova era democrática conduzida pelo «movimento conservador populista» que tem uma linhagem muitíssimo respeitável, contando com nomes como Richard Nixon e Ronald Reagan.
Mas regressemos à narrativa de Donald Trump. Como os autores deste livro já escreveram, encontramos «uma narrativa tão alternativa quanto imaginária, que tem a tripla função de apelar aos instintos mais básicos dos eleitores (medo, sobrevivência), de recriar um passado político idealizado que apela aos desejos da população (da América perdida pelos jacksonianos) e de legitimar uma mudança brusca na direção política» . Como já foi sugerido acima, a narrativa de Trump radica no jacksonianismo. O que se segue são os principais traços que o caracterizam e as razões porque nasceu, em si próprio, como um movimento populista.
Num artigo de opinião, David Brooks defende que o que tem mantido a população americana unida durante praticamente toda a sua existência é uma «história nacional unificadora». Uma «mitologia cívica» fundada numa ideia de Êxodos, em que os oprimidos do continente europeu desembarcaram, geração após geração, num mundo novo em que podiam ser livres nas suas ideias, diversidade étnica e religiosa, sem a repressão das monarquias absolutistas e das igrejas de Estado. Essa mitologia foi, inclusivamente, consagrada na Declaração da Independência, logo no segundo parágrafo, onde se escreveu que «nós [os legisladores] consideramos estas verdades evidentes por si próprias, que todos os homens são iguais perante o Criador e são dotados de certos direitos inalienáveis, entre eles o da Vida, da Liberdade e da Procura da Felicidade». Ainda segundo Brooks, a história americana foi, ao longo dos séculos, vista (nem que seja pelos próprios Americanos) como o «cumprimento da história da humanidade. A última esperança na terra», que «assentava num nível altíssimo de autoconfiança».
Esta narrativa tinha, como seria de esperar, um equivalente político. Por outras palavras, uma parte bastante alargada quer do espectro partidário, quer da sociedade civil, aceitava esta versão da História: «não é de bom tom falar da nação americana como uma comunidade folk unida por laços étnicos e culturais profundos. Os que acreditam numa América multicultural atacam-na de uma direção, mas os conservadores também têm a tendência de falar dos Estados Unidos como uma nação baseada na ideologia e não na etnicidade». Ora, este pequeno excerto deixa antever que a maioria não é a totalidade.
Esta é parte da explicação para o facto de, apesar do jacksonianismo ser uma realidade centenária (ainda que mais difícil de descrever do que outros movimentos políticos, precisamente porque não é um movimento político), estar sempre a ser varrido para debaixo do tapete. Uma vez que Andrew Jackson, o presidente que dá nome ao movimento, foi o sexto na linha de rotatividade da República, não houve sucessor desde 1837 – ano em que terminou o seu segundo mandato – e os movimentos populistas de inspiração jacksoniana foram curtos, especialmente por falta de liderança, não é particularmente difícil compreender os motivos da ausência de uma atenção espacial ao fenómeno.
Os dois primeiros pontos que é preciso fazer são que, apesar de não haver números, os jacksonianos constituem uma parte importante da população americana e o que os diferencia da restante população é precisamente a convicção de que a América é um país que devido às suas ideias se tem muito frequentemente esquecido dos «verdadeiros americanos», aqueles que, por direito de nacionalidade e nativismo, mereciam estar no centro das preocupações das elites políticas. Esta lógica, pensam os jacksonianos, tem sido sistematicamente pervertida.
Mas para percebermos com mais exatidão o que está em causa, de seguida enumeramos aqueles que nos parecem os sete valores fundamentais para os jacksonianos, bem como as três características que os tornam naturalmente populistas.
O valor mais importante, diz-nos Walter Russell Mead, é a «honra». Sendo este conceito vago, importa acrescentar que a honra jacksoniana tem as suas particularidades. Não só exulta a família tradicional e a prioridade de educar os filhos nos preceitos religiosos (protestantes, de preferência), como rejeita os «desviantes» étnicos e de género. São, portanto, aquilo a que se pode chamar «nativistas», no sentido em que simultaneamente valorizam aquilo que consideram genuinamente americano – «o coração, alma e espírito da nação americana» – e rejeitam todos o que lhes pareçam estar fora deste círculo restrito. Glorificam o esforço individual e o trabalho árduo. Enquanto alguns autores consideram que este código de honra de alguma forma os fecha relativamente ao resto da sociedade, outros há que caracterizam o código de honra jacksoniano como a celebração da «rudeza, virilidade e a posição dos brancos em defesa da família, da raça e da nação». Como veremos mais à frente, a última caracterização é mais fidedigna, se tivermos em conta as origens e desenvolvimento da comunidade folk americana.
O segundo valor é a igualdade. Mas tal como o conceito anterior, este também precisa de esclarecimento, porque os seus significados são múltiplos. Do ponto de vista jacksoniano, significa «absoluta igualdade em dignidade e direitos» e o acesso equitativo de «todos os americanos brancos à riqueza». Esta ideia prende-se com o conceito de «produtivismo»: os jacksonianos identificam-se com os agricultores do século XIX que se consideravam o «celeiro da América» e reclamavam a falta de oportunidades a que eram sujeitos, apesar da sua função essencial no funcionamento da economia. Na verdade, estas desigualdades nunca foram suficientemente corrigidas, o que gerou uma acumulação da frustração desta porção da população que, como veremos com mais detalhe, se encontra na classe trabalhadora e/ou classe média baixa. As aspirações dos jacksonianos são aplacadas pelo «Sonho Americano» – a ideia de que um comportamento social correto associado ao trabalho árduo tendem a levar qualquer indivíduo, independentemente da sua condição social, ao sucesso económico –, que implode cada vez que uma crise se instala e dá lugar a «momentos Joe McCarthy», em que emergem movimentos que se distinguem pela «defesa da decência moral e das liberdades constitucionais».
O que nos leva diretamente ao terceiro ponto: os jacksonianos são «individualistas». O individualismo é uma característica da América conservadora. Neste sentido, os jacksonianos aproximam-se mais dos libertários: são muitíssimo desconfiados do Governo federal, ou mesmo estadual, por três motivos essenciais: por razões de crença profunda (preferem ser «livres de» do que «livres para»); porque sentem que as autoridades lhes falharam repetidamente; e porque preferem a ajuda da comunidade à das instituições. A este valor junta-se um severo « dever de realização pessoal» que só pode ser atingido através de uma «conduta social adequada» e pela «consciência e a razão». Esta característica coloca os jacksonianos perto do puritanismo religioso, tão bem descrito por Max Weber, em 1905.
O quarto fator prende-se com os dois anteriores: os jacksonianos procuram também igualdade de oportunidades no acesso ao dinheiro e ao crédito como forma de exercerem o seu «espírito financeiro» como meio de «autoconhecimento e autoexpressão». O dinheiro permite não só demonstração de coragem e de empreendedorismo, como os ajuda a adquirir estatuto social numa sociedade consumista. Este valor parece de somenos importância, mas não é. Em primeiro lugar, porque quem conhece a sociedade americana percebe imediatamente que as diferenças sociais são visíveis no indivíduo (no vestuário, no carro, na casa, etc.), questão que é muitíssimo valorizada no mercado de trabalho. Segundo, porque, como veremos de seguida, as desigualdades sociais acentuaram-se profundamente, sendo cada vez mais difícil as classes mais baixas acederem ao crédito. Em terceiro lugar, por razões já apontadas acima: muitos jacksonianos são profundamente religiosos e crentes num plano divino, no qual se inclui o acesso a um projeto relacionado com uma vida geradora de lucro. Ora, os jacksonianos levam na sua história décadas de revolta antigovernamental, precisamente por ter invertido esta lógica natural das coisas.
A quinta característica dos jacksonianos está relacionada com a «coragem» e a «perseverança» como valores morais fundamentais. Os princípios estão relacionados: a perseverança é a raiz das comunidades mais pobres, que desprezam a pena dos outros e se sentem capazes de enfrentar as adversidades sozinhas – o que origina um profundo desprezo pelos que vivem de subsídios e outras ajudas estatais e federais. A coragem está relacionada com a comunidade e um fortíssimo sentimento de nacionalismo e patriotismo. Uma frase de Walter Russell Mead diz (quase) tudo: para os jacksonianos, «uma pessoa honrada tem de estar preparada para matar pela família e pela bandeira». Isso implica, obviamente, um apoio feroz à Segunda Emenda – o direito de porte de armas –, mas também outras ideias mais ou menos nobres: os jacksonianos veem com agrado a possibilidade de fazerem justiça pelas próprias mãos, herança de um «passado guerreiro de uma ferocidade excecional». Assim, o serviço militar e a guerra pela honra do Estado são fundamentais.
O sexto e o sétimo elementos já não emanam dos livros e artigos de Walter Russel Mead, que preferiu deixar as características mais complexas do jacksonianos de fora. Mas há duas que é preciso referir: são nacionalistas nativistas e sofrem de um complexo de inferioridade relativamente ao resto da nação. Lieven, inclusivamente, liga os dois conceitos num só: o nacionalismo americano, ao contrário do que acontece em muitos outros países em que o «outro» é estrangeiro, radica na «derrota de classes, grupos e até indivíduos» que «emanam (…) de ódios e tensões domésticas».
Ora, estas características levam-nos ao início: os jacksonianos são (também) um grupo étnico e social que devido à História e às circunstâncias é ressentido. Ressentido contra as elites de Washington – que não só os ignoraram como ainda (especialmente na era Obama) tomaram medidas políticas para os prejudicar – e contra grupos étnicos (especialmente hispânicos e negros) e religiosos (no passado foram anticatólicos, hoje são anti-islâmicos) que são protegidos pelos sucessivos governos elitistas. Por isso mesmo, devemos considerar os jacksonianos uma fação populista da sociedade norte-americana: «a sociedade jacksoniana desenha uma linha importante entre aqueles que pertencem à comunidade folk e os que não pertencem». Daí que Trump tenha sido, ao mesmo tempo, um candidato populista e o candidato natural dos jacksonianos. Tal como Andrew Jackson antes dele (posicionado contra a aristocracia, os escravos e os índios), Donald Trump apresenta-se como o campeão da classe trabalhadora e mais desfavorecida contra as elites de Washington e contra os imigrantes, que considera os principais responsáveis pelo declínio económico e o aumento da criminalidade dos Estados Unidos.
Mas há mais razões para identificarmos Trump com a comunidade jacksoniana. Outro desses motivos é a crença de que «os poderes do Governo se desviaram do seu objetivo correto e natural de apoiar o bem-estar da maioria contra uma minoria opressiva constituída por uma elite económica e cultural – ou pior ainda, para interesses estrangeiros poderosos». Desde que Donald Trump pôs em causa a origem de Barack Obama, insistindo em que se tornasse pública a sua certidão de nascimento «identificando-o com o “Outro”», transformou-se numa figura de relevo para os jacksonianos. Se a isso juntarmos as inúmeras descrições de uma América perdida para os imigrantes e para a batota dos capitais estrangeiros e das multinacionais deslocalizadas, encontramos outro ponto em comum difícil de ignorar.
Assim, Trump tornou-se o «herói popular» que os jacksonianos procuram em momentos de crise e ao qual se mantêm fiéis, mesmo que lhe reconheçam falhas. Daí que, apesar de algumas derrotas internas, Trump mantenha o apoio da base que o elegeu praticamente intacto. Como campeão dos esquecidos da classe trabalhadora e média-baixa, Donald Trump mostrou acreditar numa máxima jacksoniana: «enquanto os problemas são complicados, as soluções são simples. Os nós górdios estão lá para serem cortados». É neste contexto que deve ser lido o relato de Arlie Russell Hochschild de um comício de Trump, onde os jacksonianos se sentiram «magicamente confiantes» e identificados com o candidato que falava a mesma linguagem, profundamente simples, mas ao mesmo tempo moralista, e que via o país, o mundo e as suas injustiças da mesma maneira.
Assim, o aparecimento de Donald Trump na cena política americana levantou um sentimento de identificação da comunidade folk, cujos valores descrevemos acima. A secção que se segue descreve as origens desta comunidade e a sua evolução ao longo da história dos Estados Unidos da América.