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AFP/Getty Images

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O "Mimoso" que não saía do quintal agora é o "exonerador implacável"

Em criança, João Lourenço era obediente e nunca saía do quintal. Como político, foi quase sempre assim — e da vez que não foi, Eduardo dos Santos puniu-o. Agora, já lhe chamam "exonerador implacável".

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Ninguém esperava tanto, nem tão rápido. Depois de uma campanha morna, onde fazia promessas vagas de combate à corrupção e de apelo ao rigor, João Lourenço impressionou tudo e todos com a sua onda de exonerações que começou no governador do Banco de Angola, chegou às chefias da Polícia Nacional e do Serviço de Inteligência e Segurança Militar (para já) e envolveu (com estrondo) a até agora intocável Isabel dos Santos, presidente da Sonangol e filha de José Eduardo dos Santos.

Como criança era obediente — e como político também. Da única vez em que fugiu a essa regra, acabou por ser submetido a uma travessia no deserto que durou 11 anos e quase lhe custou a sua carreira política. José Eduardo dos Santos acabou por repescá-lo, escolhendo-o para seu sucessor após quase 38 anos no poder. Agora, onde muitos viam uma relação de subserviência, há quem comece a ver uma postura de desafio do “novo Presidente” ao “camarada Presidente”.

Mas quem é João Lourenço, o filho do Lobito a quem todos chamava “Mimoso” e a quem alguns agora chamam de “exonerador implacável”?

O “Mimoso” que não ousava sair do quintal

Dos tempos de criança, João Lourenço guarda a alcunha de “Mimoso”. Era assim que era conhecido em casa e também na vizinhança, na comuna do Canata, na cidade de Lobito, província de Benguela. Era filho de uma família remediada. O pai, um enfermeiro chamado Sequeira João Lourenço, chegou a estar preso três anos pela PIDE por atividades políticas. A mãe, Josefa Lourenço, era modista.

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A alcunha de “Mimoso” foi explicada à Lusa por Flora Mukete, afilhada da mãe de João Lourenço, que foi acolhida naquela família. Ficou estabelecido que Josefa Lourenço lhe ofereceria lições de costura, desde que Flora Mukete ajudasse a tomar conta dos seus filhos. No que toca a João Lourenço, a tarefa era relativamente fácil. “Era muito calmo, não queria confusão”, disse à Lusa. Daí o “Mimoso”. “Não saía do quintal”, explicou, dias antes das eleições.

Nos tempos de infância, na cidade de Lobito, João Lourenço era conhecido como "Mimoso", por ser obediente aos pais (MANUEL DE ALMEIDA/LUSA)

MANUEL DE ALMEIDA/LUSA

À mesma agência, António Júnior, soba da comuna de Canata nos últimos 14 anos, retratou-o também como uma criança respeitadora e disciplinada. “Chamavam-lhe Mimoso, naquele tempo, porque ele obedecia bem aos seus pais. Muito respeitoso. Tinha um juízo diferente aos outros”, conta.

A imagem de homem disciplinado, respeitador das hierarquias e conhecedor dos seus limites viria a tornar-se uma imagem de marca noutras alturas da sua vida — e, nas poucas exceções à regra, aprendeu a voltar ao registo de quem não “sai do quintal”.

O comissário político na guerra

Apesar de ter tido no seu pai um exemplo dos angolanos que perderam a sua liberdade por questionarem o poder colonial português quando este já caminhava para o fim, João Lourenço só aderiu ao MPLA em agosto de 1974, após a revolução do 25 de Abril.

Na biografia oficial disponível no site do MPLA, é referido que participou nalguns combates, nomeadamente no norte de Angola contra as tropas da Frente Nacional da Libertação de Angola (FNLA) e contra o exército do Zaire, atualmente República Democrática do Congo, após ter feito “a sua primeira instrução político-militar”.

Aos poucos, foi-se aproximando cada vez mais do pólo político — mas sem nunca esquecer a vertente militar, como é impossível a qualquer dirigente em tempos de guerra civil, como a de Angola, que começou em 1975 e só terminou em 2002.

Nos primeiros anos da guerra, tornou-se Comissário Político “em diversos escalões, desde pelotão, companhia, batalhão, brigada” e também da 2ª Região Político-Militar de Cabinda. Depois, em 1978, partiu para a União Soviética, onde aprofundou a sua formação político-militar — com a primeira vertente a sobressair. É verdade que fez uma formação em artilharia pesada, mas o diploma mais importante que guarda da Academia Político-Militar Vladimir Ilitch Lenine é o de Mestre em Ciências Históricas. Voltou para Angola em 1982.

“Ele não teve praticamente vida militar nenhuma, nunca teve.”
Xavier de Figueiredo, jornalista especialista em Angola e diretor do África Monitor

“O que ele foi, de facto, nas FAPLA [Forças Armadas Populares de Libertação de Angola] foi comissário político”, sublinha ao Observador Xavier de Figueiredo, jornalista especialista em Angola e diretor do África Monitor. “Ele não teve praticamente vida militar nenhuma, nunca teve.”

Tanto que, ainda em plena guerra civil, foi escolhido por José Eduardo dos Santos para desempenhar vários cargos políticos. Pouco depois do seu regresso de Moscovo, em 1983, foi comissário provincial (à altura, correspondente ao cargo de governador) do Moxico. Em 1986, passou a governar Benguela. Entre 1990 e 1992 foi chefe da direção de política nacional das FAPLA.

Em 1992, novamente levado pela mão do “camarada Presidente” José Eduardo dos Santos, foi escolhido para o cargo de secretário de informação do MPLA — um cargo importante à altura, já que foi naquele ano que aconteceram as primeiras eleições da Angola pós-colonial, e que também foram as únicas da guerra civil.

Subiu a pulso no MPLA. Se nos anos 1980, enquanto era governador, também era deputado nacional, em 1993 passou a presidir ao grupo parlamentar do partido. E, em 1998, tornou-se secretário-geral. “Ele gozava da confiança pessoal e política de José Eduardo Santos”, sublinha Xavier de Figueiredo.

Tanto que, recorda o jornalista, João Lourenço foi utilizado por José Eduardo dos Santos para travar Lopo do Nascimento, antigo primeiro-ministro, entre 1975 e 1978, e à altura secretário-geral do MPLA. “Esse é um episódio interessante da vida dele”, refere Xavier de Figueiredo. “Até à ascensão de João Lourenço, o Lopo de Nascimento tinha sido secretário-geral, que depois é sacrificado para João Lourenço subir. Isto marca o afastamento de Lopo do Nascimento, que só podia acontecer com o beneplácito de José Eduardo dos Santos.”

Em 2002, quando a morte a tiro de Jonas Savimbi põe fim à guerra civil, João Lourenço ainda era secretário-geral do MPLA. Porém, não viria a durar muito tempo no cargo. Porquê? Porque, pela primeira vez, procurou “sair do quintal”.

Quando João Lourenço foi “engavetado”

Em 2001, quando a paz já estava próxima, José Eduardo dos Santos fez uma promessa inesperada. “Quer [as eleições] se realizem em 2002 ou 2003, teremos um ano e meio ou dois anos e meio para que o partido possa preparar o seu candidato para a batalha eleitoral e é claro que esse candidato desta vez não se chamará José Eduardo dos Santos”, disse.

João Lourenço, que começou na base do partido e à altura era secretário-geral do MPLA, figurava entre os nomes mais bem colocados para dar o passo seguinte. Ciente disso, chegou-se à frente.

“Ele nessa altura perfila-se, apresenta-se como putativo candidato”, recorda Xavier de Figueiredo. “Mas na altura, havia um fenómeno em Angola, que também apanhou outros, como Lopo de Nascimento, em que qualquer pessoa que se posicionava como pretendente normalmente tinha de atravessar o deserto.”

Em 2003, depois de deixar entender que queria avançar para a presidência, João Lourenço foi "engavetado", conta um especialista ao Observador. “Ele esteve remetido quase ao anonimato, como vice-presidente da Assembleia Nacional. Era uma função muito pouco importante”, acrescenta Vítor Ramalho.

Assim foi. No congresso do MPLA de 2003, foi afastado de secretário-geral do partido. Nesse mesmo ano, foi nomeado para um cargo que, muito mais do que prestígio, significava um castigo: primeiro vice-presidente da Assembleia Nacional. “Foi engavetado”, resume um especialista português que segue a política angolana há vários anos.

“Ele esteve remetido quase ao anonimato, como vice-presidente da Assembleia Nacional. Era uma função muito pouco importante”, sublinha ao Observador Vítor Ramalho, dirigente do Partido Socialista e secretário-geral da União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa.

João Lourenço foi vice-presidente da Assembleia Nacional durante 11 anos — uma travessia do deserto, depois de ter indicado que queria ser Presidente (JOÃO MAVINGA/LUSA)

JOÃO MAVINGA/LUSA

Nos anos que seguiram, em privado, era por vezes crítico da condução política de Angola. Também entrou no mundo dos negócios. Além de se ter tornado acionista do Banco Sol — de cujas ações chegou a deter 5,42% —, tornou-se empresário do agronegócio. A propósito das eleições de agosto de 2017, o jornalista e ativista Rafael Marques descreveu-o como um dos maiores latifundiários do país.

Em público, e naquilo que era a atividade partidária, foi fiel à disciplina que apenas por momentos ousou abandonar. “Ele foi uma pessoa que se manteve disciplinada no partido, o que significa que é um homem com grande auto-controlo”, sublinha Vítor Ramalho.

A paciência compensou. Ao fim de onze anos “engavetado”, José Eduardo dos Santos voltou a pegar em João Lourenço. Primeiro para ministro da Defesa, depois para vice-Presidente e, finalmente, para seu sucessor.

“Isto marcou o início da reabilitação dele”, diz Vítor Ramalho. “É o momento em que José Eduardo dos Santos começou a pensar a sua sucessão, pressionado por fatores que ele não controlou, em especial a doença. E ele foi muito sagaz no seu juízo, porque João Lourenço era de boa afetação interna, embora não fosse da sua confiança total”, acrescenta Xavier de Figueiredo.

O casamento Ana Afonso Dias, que se fez Lourenço mas que vai para lá disso

Em 1986, Ana Afonso Dias, à altura consultora do Gabinete de Planeamento Provincial de Benguela e chefe do Departamento de Investimentos do Ministério do Planeamento, passou a ter um novo apelido: Lourenço. O namoro com João terá começado no início dos anos 1980 — e, desde então, um tem assistido à ascensão do outro. Em 1986 casaram. Têm seis filhos.

A militância da mulher de João Lourenço no MPLA começou ainda nos tempos em que era Ana Afonso Dias. Quando se deu o golpe de 27 de maio de 1977, esteve entre os milhares de militantes que foram associados à revolta de Nito Alves, conhecidos como os nitistas. Foi detida no Lubango e esteve presa durante três meses na Cadeia de São Paulo, em Luanda. “Houve pessoas que quiseram pôr-me fora do MPLA, mas só conseguiram fazê-lo durante três meses”, ironizou numa entrevista ao Novo Jornal, vários anos depois daquele episódio traumático.

João e Ana Lourenço casaram-se em 1986 e são provavelmente o casal mais poderoso de Angola (PEDRO PARENTE/LUSA)

PEDRO PARENTE/LUSA

Acabou por ser reabilitada. Estudou Economia na Universidade Agostinho Neto, passou pela Costa do Marfim e regressou a Angola para trabalhar no Ministério do Planeamento. Em 1997, acompanhou o marido na sua ascensão política e subiu a vice-ministra do Planeamento. Dois anos depois, passou a número dois do Ministério do Planeamento. Foi lá que ficou até 2012.

Além do perfil nacional, ganhou destaque fora de fronteiras — um trunfo para o seu marido, que não hesitará em fazer uso da carteira de contactos da sua mulher, que atingiu o topo da carreira internacional quando foi escolhida em 2014 para ser diretora executiva do Banco Mundial em Angola, na Nigéria e na África do Sul.

Por tudo isto, foi criticada a fotografia publicada pela campanha de João Lourenço, meses antes das eleições de agosto de 2017, em que ex-diretora executiva do Banco Mundial aparecia de costas, a ajeitar a gravata do marido. Com a sua experiência internacional e extensa carteira de contactos, nomeadamente no FMI, Ana Lourenço terá muito mais utilidade para o seu marido que ser sua assessora de imagem.

“Durante a carreira dela ela granjeou uma experiência internacional que não é despicienda do ponto de vista da economia internacional”, diz Vítor Ramalho. “É uma mulher muito articulada, que conhece bem a economia de Angola”, sublinha outro observador.

Um candidato na sombra de José Eduardo dos Santos

Depois da travessia do deserto que foi a vice-presidência da Assembleia Nacional, a reabilitação de João Lourenço iniciou-se com a sua nomeação para liderar o Ministério da Defesa e mais tarde para vice-Presidente, substituindo Manuel Vicente, caído em desgraça. A cereja no topo do bolo foi a sua nomeação para ser candidato do MPLA às eleições de agosto de 2017.

Depois de o ter encostado, José Eduardo dos Santos pegou em João Lourenço — fruto do consenso possível entre o “camarada Presidente” e o MPLA, mas também o resultado da estratégia de José Eduardo dos Santos.

“Era muito importante para José Eduardo dos Santos que a transição fosse estável”, explica Xavier de Figueiredo. Para esta estabilidade, o papel de João Lourenço junto do exército, que ganhou familiaridade e poder no setor nos seus anos como ministro da Defesa, foi essencial para o seu nome ser escolhido. “Tinha de ser alguém que os militares respeitassem”, sublinha o jornalista.

A campanha de João Lourenço baseou-se no slogan “melhorar o que está bem e corrigir o que está mal”. Desta frase, a primeira parte era meramente eleitoralista, mas a segunda podia passar a ideia de uma auto-crítica — termo caro ao marxismo-leninismo que João Lourenço apregoava nos seus tempos de Comissário Político, até que o MPLA se rendeu ao capitalismo na viragem da década de 1990. Mas a ideia não era nova e até já tinha saído da boca de José Eduardo dos Santos. Quando tomou posse em 2012, disse que o seu executivo iria assentar “no princípio da renovação e da continuidade para renovar e corrigir o que está mal, dar continuidade e melhorar o que está bem e iniciar novas obras”.

João Lourenço fez campanha com o slogan "melhorar o que está bem e corrigir o que está mal" — ideia que José Eduardo dos Santos já tinha usado em 2012 (MANUEL DE ALMEIDA/EPA)

MANUEL DE ALMEIDA/EPA

É verdade que o tema da corrupção foi recorrente na campanha de João Lourenço — mas sempre en passant e nunca com propostas que resgatassem esse tema de um discurso vago e inofensivo.

A coincidir com a campanha de João Lourenço, esteve um último esforço de José Eduardo dos Santos para blindar o seu aparelho de poder. Levou o parlamento a aprovar a sua imunidade; nomeou e reconduziu pessoas da sua confiança para cargos importantes — Polícia Nacional, Forças Armadas e Serviços de Inteligência —; desautorizou um ministro que na sua ausência quis pedir contas a administradores públicos, onde se incluíam e destacavam os seus dois filhos mais velhos.

Quando João Lourenço venceu as eleições com 61,1% dos votos — sob acusações de fraude por parte dos partidos da oposição e de grupos da sociedade civil, que apontaram para vários problemas na contagem dos votos — o caminho para o poder que José Eduardo dos Santos parecia estar repleto de minas e armadilhas.

O Presidente que parou no sinal vermelho — e que mostrou um cartão da mesma cor à “Belinha”

Quando tomou posse, a 26 de setembro, João Lourenço tornou a falar da corrupção. Porém, o tom foi mais agressivo do que aquele que lhe foi conhecido durante a campanha. “A corrupção e a impunidade têm um impacto negativo direto na capacidade do Estado”, disse. “Exorto por isso todo o nosso povo a trabalhar em conjunto para estripar esse mal.”

Dois dias depois, deu ideias de que a continuação era a palavra de ordem. Dos 18 governadores de província deixados por José Eduardo dos Santos, 13 foram reconduzidos e apenas cinco eram caras novas.

Porém, aos olhos dos angolanos, João Lourenço começou a distanciar-se aos poucos de José Eduardo dos Santos no que diz respeito ao comportamento em público. Um exemplo foi relatado por Almir Agria, locutor da Rádio MFM, que estava no Largo 1º de Maio, em Luanda, quando o Presidente passava de carro, acompanhado da sua comitiva. Nesse momento, fez algo que poucos achavam ser obrigação de um Presidente da República: parou no sinal vermelho. “Os batedores [iam] à frente, chegaram no semáforo. Os batedores passaram e João Lourenço parou o carro”, relatou mais tarde o locutor.

"A corrupção e a impunidade têm um impacto negativo direto na capacidade do Estado. Exorto por isso todo o nosso povo a trabalhar em conjunto para estripar esse mal"
João Lourenço, no seu discurso de tomada de posse, a 26 de setembro

Outro caso aconteceu em Lubango, capital da província de Huíla. Ali chegado de avião para comemorar o 42º aniversário da independência de Angola, João Lourenço tinha à porta do avião uma comitiva da Juventude do MPLA (JMPLA) e da Organização de Mulheres Angolanas, também afeta àquele partido. O relato que surge daqueles que lá estiveram conta que João Lourenço se recusou a sair do avião enquanto ali permanecessem aqueles militantes — já que estava em causa uma ocasião nacional e não partidária.

Depois, começaram as exonerações.

Primeiro, o governador do Banco de Angola, Valter Filipe. “Não descansaremos enquanto o país não tiver um banco central que cumpra estritamente e de forma competente com o papel que lhe compete, sendo governado por profissionais da área”, já João Lourenço tinha avisado há alguns dias — afirmação que não passou ao lado do facto de Valter Filipe ser jurista e não ter qualquer formação em Economia.

“O João Lourenço que conheço há vários anos é capaz da mudança e tem ultrapassado as expectativas. Não pensei que fosse tão rápido", disse Marcolino Moco ao Observador esta quarta-feira. "Não imaginava que pessoas dentro do partido como Lourenço, andassem a viver esta situação como eu — que sou tão crítico — tenho vivido.”
Marcolino Moco, ex-primeiro-ministro de Angola e crítico de José Eduardo dos Santos

A parada das exonerações continuou a subir, atingindo os conselhos de administração de algumas das empresas públicas mais importantes do país. Primeiro, na empresa estatal responsável pela exploração de ferro, a Ferrangol. Depois, foi a Sodiam, que trata da comercialização de diamantes. De seguida, a própria Endiama, que faz a extração daquelas pedras preciosas. Mais à frente, foi a vez da comunicação social: não sobraram administradores na Televisão Pública de Angola (TPA), na Rádio Nacional (RNA), na Agência Angola Press (ANGOP) e na Edições Novembro, que gere o Jornal de Angola. Além disso, foi dado o primeiro toque ao clã dos Santos, quando João Lourenço ordenou o cancelamento dos contratos da TPA com a Semba Comunicações — empresa de audiovisual detida por Coréon Dú e Tchizé dos Santos, ambos filhos de José Eduardo dos Santos.

Se todas estas decisões já tinham valido a João Lourenço o título de “exonerador implacável”, cortesia dos utilizadores de redes sociais mais espirituosos, a machadada final foi dada esta quarta-feira, 15 de novembro, quando foi anunciada a demissão de Isabel dos Santos e de todo o conselho de administração da Sonangol. Por cima disso tudo, substitui a filha do ex-Presidente com Carlos Saturnino, homem que Isabel dos Santos expulsou da Sonangol depois de a ter acusado de falta de ética.

João Lourenço exonerou Isabel dos Santos da presidência da Sonangol e substituiu-a com Carlos Saturnino, que a filha do ex-Presidente tinha expulsado da petrolífera (Bruno Fonseca/LUSA)

Bruno Fonseca/LUSA

Perante tudo isto, a exoneração de Filomeno dos Santos, também ele filho do anterior Presidente, da presidência do Fundo Soberano de Angola (FSA) pode ser o próximo passo — a menos que se demita antecipadamente, como chegou a ser noticiado. Ainda assim, a braços com acusações de desvio de dinheiro reveladas nos Paradise Papers, o FSA nega a saída do seu presidente.

A onda de exonerações, e sobretudo a mais sonante delas todas, surpreendeu muitos. Entre eles, está o ex-primeiro-ministro de Angola e crítico de José Eduardo dos Santos, Marcolino Moco. “O João Lourenço que conheço há vários anos é capaz da mudança e tem ultrapassado as expectativas. Não pensei que fosse tão rápido”, disse ao Observador esta quarta-feira. Não imaginava que pessoas dentro do partido como Lourenço, andassem a viver esta situação como eu — que sou tão crítico — tenho vivido.”

"Interessa a José Eduardo dos Santos que a transição seja estável de maneira a não pôr em causa o seu futuro e o da sua família. Aquilo a que estamos a assistir são exonerações, o que é bem diferente de responsabilizações jurídicas"
Xavier de Figueiredo, jornalista especialista em Angola e diretor do África Monitor

Xavier de Figueiredo também admite surpresa. “Não esperava que fosse tão cedo”, explica. “Mas era necessário qualquer tipo de medidas que representasse um descolamento desse passado. Estamos a falar de um passado em que Angola é desacreditada e desprestigiada, principalmente desde os problemas internos causados pela crise [do petróleo] de 2014. Isso viu-se nas eleições, em que tiveram de fazer fraude massiva para ganhar.”

Mas, apesar da rapidez e assertividade das medidas de João Lourenço, o diretor do África Monitor explica que o clã dos Santos pode não sair tão fragilizado quanto isso deste processo — e que tudo pode até ter acontecido com a aprovação, mesmo que relutante, de José Eduardo dos Santos. “Interessa a José Eduardo dos Santos que a transição seja estável de maneira a não pôr em causa o seu futuro e o da sua família. Aquilo a que estamos a assistir são exonerações, o que é bem diferente de responsabilizações jurídicas”, explica o jornalista, que logo acrescenta que esse processo, além de improvável, seria infindável. “Eu acho que se ele pegar na Isabel, depois tinha de pegar numas centenas. Umas centenas largas, mesmo. É uma oligarquia que vive disto, que faz da corrupção um negócio pessoal.”

João Lourenço causou espanto depois de a sua comitiva ter parado num sinal vermelho em Luanda (JOÃO MAVINGA/LUSA)

JOÃO MAVINGA/LUSA

Em entrevista ao Observador, o investigador especialista em Angola Jon Schubert sublinhou que as “medidas que foram tomadas agora demonstram que o combate parece ser sério — mas também é seletivo”. “Há outros interesses económicos que ainda não foram tocados”, garantiu, referindo o caso dos generais.

Ainda assim, como seria de esperar junto de uma população que ao longo dos anos tem acompanhado com desagrado e nalguns casos desprezo a ostentação de riqueza dos filhos de José Eduardo dos Santos, João Lourenço coleciona agora elogios vindos dos lugares mais improváveis, até do activista Luaty Beirão.

Ironicamente, elogiaram-no por ter feito o contrário daquilo que fazia como criança e quase sempre fez como político: ficar quietinho no seu canto do quintal. Agora, deu mostras de que sai e entra quando quer do quintal. Mas será que manda na casa?

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