Era um jogador agressivo, sem maldade, rápido e que tocava com os dois pés. É assim que se descreve este antigo médio centro da seleção nacional que disputou o Europeu de França, em 1984, no qual Portugal caiu nas “meias”. Jaime Pacheco considera que acima de Platini, na altura, só mesmo Diego Maradona. Portugal até tinha alguém com categoria e valor semelhante à do francês, diz o ex-treinador campeão do Boavista: António Oliveira foi o maior craque com quem jogou.
Em conversa com o Observador, enquanto conduzia (usando alta voz), este amante de carros contou o que andou a fazer pelos Açores e lembrou o Euro-84, o primeiro Europeu da história da seleção portuguesa. Pacheco revelou também a natureza da sua relação com António Sousa, o médio goleador com quem jogou dez anos — “é um irmão”.
O ex-médio falou ainda da mudança para Alvalade, no verão de 1984, que aconteceu simplesmente porque sentiu pouco reconhecimento da parte do presidente dos dragões — durante o Europeu foi abordado ainda por Verona, Milan e Roma. Vinte e oito anos depois da desilusão gaulesa, Jaime Pacheco ainda suspira pela final que não aconteceu, por isso não larga o vício e vai jogando, “mesmo com o joelho cheio de campainhas e alarmes”…
Andou no Rali dos Açores. Mudou de carreira?
Sempre gostei de carros, sabes… Quando estou a trabalhar não tenho tempo. Agora tenho uns amigos, o João Barros e o Elias Barros, que me convidam, eles correm e mato a paixão. Vou conhecendo, desfrutando. O ano passado fui à Madeira também. Eu conduzo devagar (risos). Já fiz aquela brincadeira nas corridas do Porto. Não sou de acelerar muito, mas gosto mesmo de carros.
Vamos lá ao futebol, então, puxando o filme para 1984.
Vamos a isso!
Aquela final da Taça das Taças contra a Juventus de Platini foi um mau prenúncio, não?
Em relação ao Platini, foi. Ele não marcou na final, mas foi sempre o jogador mais importante. Houve ali uma fase que era ele e Maradona. Eu acho que eram os melhores jogadores do mundo. O Platini mudou o futebol francês. Chegou a Itália, foi o melhor marcador, o melhor jogador. Ganhou tudo. No Campeonato da Europa foi o melhor também. Antes de jogar contra nós, destronou várias equipas. E depois foi a nós. Ele era um fora de série, estava num grande momento de forma. Ele tinha uma grande equipa atrás; ele era a cereja no topo do bolo. Foi mau prenúncio, ele levou sempre a melhor. Se calhar mereceram. Costumo dizer: cada um tem o que merece.
Estávamos numa fase de afirmação e confirmação na Europa. Talvez com mais experiência tivéssemos conseguido outro resultado — penáltis ou ganhar. Como na Taça das Taças, houve alguma falta de maturidade. Jogámos contra equipas só com internacionais, quer o [Zbigniew] Boniek, quer Platini ou os internacionais italianos que tinham ganho o Mundial de 1982. Estavam lá todos. Não perdemos contra uma equipa qualquer.
E Platini, como era ele como jogador?
Era um número 10 único. Como era Maradona, como era [António] Oliveira no Porto, como era Deco… Era um número 10 que fazia a diferença. Era omnipresente. Jogavam sempre bem e marcavam muitos golos. Esses jogadores estão em vias de extinção. Ele era um jogador muito rápido — era um jogador muito rápido! [repete] –, no um para um era muito complicado de marcar. Tive essa tarefa e tive muitas dificuldades. Eu estudava bem e conhecia a maneira dele jogar, mas sabia que tinha de estar ao melhor nível. Ele fazia a diferença. Executava bem livres, no último passe era formidável. Era daqueles jogadores perfeitos. A história fala por ele, e por mim também.
O Jaime jogou contra alguém mais talentoso do que ele?
Naquela época, só o Maradona é que era melhor que ele.
Esteve com o pé quente nesse ano, com seis golos na liga. Até fez um hat-trick, lembra-se?
Contra o Águeda! [adivinha-se o sorriso pela resposta melosa] Dependia muito: se jogasse a médio interior esquerdo, tinha mais liberdade e jogava mais próximo da área, aí conseguia ser mais destemido e conseguia explorar os espaços. Quando jogava mais a médio defensivo, eu ficava mais recuado, era mais posicional. Dava mais liberdade aos laterais e aos outros médios para subirem. Eu fazia a cobertura. Na seleção nunca fiz nenhum golo porque joguei sempre nessa posição, para libertar Frasco, [António] Sousa ou Carlos Manuel, eu era o escudo. No Porto, quando jogava o Rodolfo a médio centro, eu ficava a interior esquerdo e tinha mais liberdade, aí visava a baliza. Fiz um ou outro golo nas competições europeias também.
Fez mais algum hat-trick na carreira?
No futsal e nos veteranos cheguei a fazer muitos mais [gargalhada]. Não fiz, mas marquei dois ao Benfica num jogo. Lá está, quando jogava a interior esquerdo. Ganhámos 3-0, fiz dois, um deles de penálti, como é óbvio. O outro foi com o pé esquerdo. Não tinha as características do [António] Sousa, que chutava mais do que eu, também jogava mais avançado. Mas fiz mais golos do que o Rodolfo e Frasco, por exemplo. Fui picando aqui e acolá. Não chutávamos tanto porque não éramos incentivados a fazê-lo. Agora chutaria mais.
Para quem nunca o viu jogar, como era o jogador Jaime Pacheco?
Eu era um jogador muito agressivo, mas não era aquela agressividade fraudulenta ou maldosa. Era combativo. Era um jogador rápido, com facilidade em jogar com o pé direito e esquerdo. Ainda hoje há colegas que não sabem se sou direito ou esquerdo. Acho que tinha leitura de jogo, jogava rápido e depressa. Às vezes digo, na brincadeira (mas com o seu quê de verdade), que há muitos jogadores que respeito e admiro na minha posição, mas só um jogou melhor do que eu naquela posição: foi o Coluna. Digo eu. Digo eu…
Como estava a moral para o Europeu depois da derrota na Suíça [Taça das Taças] e do segundo lugar no campeonato?
O futebol agora está diferente neste aspeto: agora todos os jogadores, salvo raras exceções, jogam no estrangeiro. Antes era no Porto, Benfica e Sporting, mais um daqui e acolá. Não havia o espírito de unidade e patriotismo em volta da seleção como há agora. Porque havia a seleção do Sporting, do Benfica e do Porto. Até pela própria imprensa. Havia jornalistas que optavam mais pelo Benfica porque eram benfiquistas, outros pelo Porto porque gostavam do clube. Isso de alguma forma prejudicava, nós sentíamos.
Acredito que a nossa geração foi muito boa. O Benfica e FC Porto, em dois anos consecutivos, chegaram a duas finais europeias. Passados poucos anos, ganhámos a Taça dos Campeões Europeus e o Benfica também perdeu uma final. Já havia jogadores em competições internacionais. Aquilo foi a confirmação e afirmação do futebolista português.
E lá começou o Europeu…
Jogámos contra a Alemanha, Espanha e Roménia [nos grupos]. Esta Roménia de hoje não tem nada a ver, basta ver que o Dinamo e o Steaua de Bucareste iam a finais europeias. Empatámos contra Alemanha (0-0) e Espanha (1-1). As outras equipas eram muito boas. Nós só começávamos a sentir que seríamos tão bons quanto eles no próprio jogo. Antes, não nos sentíamos favoritos. Empatámos, mas podíamos ter ganho! Depois ganhámos à Roménia (1-0, golo do Nené). A seguir perdemos com a França [2-3]. Fizemos um bom jogo. Talvez tenhamos perdido no pormenor. Houve ali uma fase do jogo que tínhamos mais avançados do que jogadores noutras posições. Se houvesse mais organização…
Quem eram os craques de Alemanha, Espanha e Roménia?
[Lazlo] Bölöni, [Hans-Peter] Briegel, [Karl-Heinz] Rummenigge, [Andreas] Brehme, [Lothar] Matthäus, [Harald] Schumacher, [Pierre] Littbarski, Santillana, [Francisco] Carrasco… A França tinha [Alain] Giresse, [Michel] Platini, [Jean] Tigana, [Jean-François] Domergue, que não tinha feito nenhum golo até ali e contra nós marcou dois.
Lembra-se porque não jogou contra os romenos?
É um episódio triste, já se falou muito. Pertence ao passado. Sempre respeitei esse senhor como jogador. O senhor que provocou essa situação foi um grande jogador do Benfica, temos de tirar o melhor das pessoas… É um senhor de muita idade, são pecados que cometemos todos mais cedo ou mais tarde. O importante foi que ganhámos. Foi bom para todos.
Era fácil ouvir quatro treinadores?
Sempre foi fácil ouvir três. Sempre respeitámos muito os quatro. Com o trio, havia educação e sentido de aprender. O quarto descaracterizou. Podiam ser os três mosqueteiros, dispensávamos o d’Artagnan…
Fala de José Augusto?
É isso, já te devem ter contado. Já falámos em demasia sobre isso. Já chega. Quanto à seleção, nunca tivemos o apoio necessário. Andávamos órfãos como jogadores e equipa, em relação ao que devem ser os valores de uma Federação. Nunca nos apoiou. Fizemos demasiado. Houve ingratidão muito grande, perante uma seleção que depois até se apurou para o Campeonato do Mundo no México. Pagaram de uma forma muito ingrata. Acabaram por denegrir a nossa imagem. Puseram um pouco as pessoas contra nós. Houve depois um volta-face tremendo a nível federativo, se calhar teve a ver com o mal que nos fizeram. Portugal passou a ser igual ou melhor que os outros nesse aspeto. Quando há revoluções, há mártires. E nesse caso fomos nós.
Tinha tendência para ouvir mais o António Morais [treinador do FC Porto]?
Não, sempre fui jogador de seleção. Integrei-me, relacionei-me com todos. Sem qualquer problema. Fosse ele quem fosse, com selecionadores igual — Toni, que faz o favor de ser meu amigo, o senhor Cabrita e o senhor Morais. Nunca senti que tomassem opções em função do clube. Sentimos da parte deles uma verdade e isenção que engrandecia e contribuía para a forma como os respeitávamos.
Voltou a Portugal e mudou-se para Alvalade. Porquê?
Jogava no Porto e gostava de ter continuado. Vou resumir: havia uns jogadores, no Porto, que ganhavam sete, oito, noves vezes mais do que eu, e não jogavam. Eu jogava no Porto e seleção e ganhava menos sete, oito, nove vezes menos do que os outros. Nunca deixei de ser profissional. Durante o Campeonato da Europa, Verona, Roma e Milan quiseram contratar-me. O Verona queria a mim e Fernando Gomes, nunca houve acordo. Eu dizia ao Gomes: o que fizeres para ti, faz para mim, e até saía das reuniões. Lembro que o presidente do Porto foi a França, mais do que uma vez, para pedir ao Fernando para não sair. Comigo nunca teve esse cuidado. Fez muito bem falar com o Fernando, eu deveria ter tido o mesmo tratamento. Era jogador do Porto e seleção. Senti-me triste e não me foi reconhecido o respeito que merecia. Fui convidado para o Sporting e fui.
E foi com o António Sousa, com quem jogou dez anos. Davam-se bem?
Primeiro fui eu. Depois o Porto quis atacar os jogadores do Sporting, até que levaram o Futre. A seguir foi o Sousa para o Sporting. O Sousa é um irmão. Dentro e fora do campo, era um irmão para mim. Jogámos dez anos juntos!
Devem ter algumas histórias engraçadas juntas, não?
Com certeza que temos. Temos uma grande amizade, sempre nos respeitámos muito, sempre nos ajudámos, em momentos difíceis. Sempre tivemos relação aberta e sincera. Muita amizade, muita fraternidade. Por isso digo que o vejo como um irmão. Para além de ser um ótimo jogador…
Quem foi o jogador mais talentoso com quem jogou?
Aííííííí vou ser… vou ser… não posso dizer que foi o Sousa. Foi dos melhores, mas, para mim, o jogador mais talentoso foi o António Oliveira. Ele tinha as mesmas características, capacidade, a mesma categoria e valor que o Platini. Não foi como o Platini por culpa própria, embora o contexto seja diferente: o Platini jogou em Itália e França. E depois aquela ida do Oliveira para o Betis… Ainda hoje é dos clubes mais pequenos de Espanha. Foi o grande azar dele. O Oliveira foi o jogador mais talentoso com que joguei.
Acha que esta seleção de Fernando Santos pode sonhar?
O Fernando Santos está a ter um discurso perfeitamente compreensível, muito inteligente, porque temos equipa e jogadores para ombrear com os melhores. Temos de ter discurso positivo, e não de coitadinhos, ou ‘vamos ver’. Apoio incondicionalmente este discurso. E se não conseguirmos, não tem de haver bodes expiatórios ou arranjar responsabilidades onde quer que seja. À partida temos qualidade e condições, agora é preciso um bocadinho de sorte. A besta negra tem sido a França. Pode ser que se consiga fugir a esse contexto. Quem tem Ronaldo, entra a ganhar forçosamente meio a zero. E se vamos ter tanta gente a apoiar como tivemos em 84, tantos emigrantes, isso faz crescer a ambição da seleção.
Se pudesse reencarnar num jogador do Europeu, quem seria?
[Silêncio] Gosto de alguns jogadores. E para reencarnar não poderia ser num guarda-redes ou avançado, não faz sentido. Bom… eu gostava de ter agora a mesma idade que tinha em 84. Eu gostava de ser eu a jogar! Gostava de ser novo muitas vezes, para jogar futebol, para jogar estes campeonatos (risos). Estou a ser um pouco narcisista. Gostava mesmo era de ser jogador de futebol, não era pelo dinheiro ou protagonismo. Gostava mesmo de futebol.
Diz que Jaime Pacheco e António Sousa são como irmãos, então digo-lhe que ele respondeu o mesmo [ver aqui]…
Eu acho que tinha mais paixão de jogar que o Sousa. Eu agora merecia jogar mais à frente do que ele. Ele, quando largou [o futebol], deixou de jogar. Eu, quando posso jogar, vou jogando, mesmo com o joelho cheio de campainhas e alarmes…
As dez entrevistas aos portugueses de Europeus
Até ao arranque do Campeonato da Europa publicámos dez entrevistas com antigos jogadores das seis edições anteriores em que Portugal esteve. Aqui ficam, todas juntas.
- "Olhei e não sabia onde havia de meter a bola"
- "O Oliveira tinha a mesma categoria que o Platini"
- "Não me via a fazer o que o Ricardo fez"
- "O Henry era o jogador que me atormentava..."
- "Em 84 só faltou levarem as camisolas dos clubes"
- "Não chamei nomes ao Poborsky, pelo contrário..."
- "Herdei a camisola do monstro, depois ofereci-lha"
- "O Eliseu ou o miúdo não tinham hipótese comigo"
- "Eu queria jogar, a minha preocupação era essa!"
- Maldito penálti e chapéu. Estão-lhe atravessados