Em 2000 a tão badalada “Geração de Ouro” chegou finalmente a um Campeonato da Europa com outro estatuto, com muitos quilómetros e golos nas pernas e nas pontas das botas. E tudo parecia um conto de fadas, até essa lengalenga com sabor a mel descer bem fundo, até ao inferno ardente. Culpa dos franceses, senhores. A maldição de 1984 voltou para atormentar aquela gente com um talento dourado, especial e sublime. Era um encanto vê-los jogar. De Abel Xavier a Nuno Gomes, com João Pinto, Figo e Rui Costa pelo meio, a máquina nem piava, era uma delicia.

E esta história até começou de forma terrível, com um 2-0 aos 20′ contra a Inglaterra de Beckham e companhia. A seleção de Humberto Coelho estava apática, amorfa, perdida. “Podia ter sido dramático”, admite Abel Xavier, o lateral direito que vestia a camisola 14 em 2000 e atual selecionador de Moçambique. O golo de Figo, aquela pastilha de longe, mudou tudo e permitiu que os portugueses acreditassem. “No final do jogo, olhámos uns para os outros e demos as mãos… dissemos que íamos ganhar o Europeu”. E foi verdade até deixar de ser. É que parecia que eles iam enganar toda a gente. Depois da Inglaterra, foi a Roménia (1-0) e a seguir a Alemanha (3-0). Limpinho, limpinho. A Turquia, com um bis de Nuno Gomes, nem percebeu como travar a onda lusitana. Bom, venham de lá os franceses…

Aquela meia-final começou tão bem, com um golaço saído da canhota de Nuno Gomes. O empate chegaria por Thierry Henry, o jogador que mais sono tirava a Abel Xavier. Era um craque. Apesar de toda aquela gente que o rodeava, com encontros eternos marcados com a glória e a história, foi Abel Xavier quem quase foi o herói deste duelo. Foi no minuto 90. A bola saiu forte da cabeça de Abel, mas Fabien Barthez não foi na cantiga, voo e sacou para canto. Depois, o desenrolar da cassete já tem barbas. Abel Xavier, com simpatia e fair-play de alto gabarito, até se ri quando o Observador diz que quer falar com ele para lembrar o Euro-2000…

Abel, estamos aqui a fazer umas histórias do Europeu e já falámos com Vítor Baía, Veloso, Vítor Paneira e outros, também pensámos em si…

[Muitos risos] Pois, eu imagino porquê…

Calma, não vamos meter já o dedo na ferida. Ainda pensa naquele cabeceamento que o Barthez parou no minuto 90?

Bem, estou surpreendido. É uma pergunta tão relevante quanto a do penálti, que poderia ter tido outra historia. Se o cabeceamento tivesse entrado… O Barthez fez a melhor defesa do Europeu. A seguir, uns minutos depois é que aconteceu o lance do penálti e a saída de Portugal, que tinha um futebol muito atrativo, num ano que merecíamos mais. Merecíamos mesmo o título, pela qualidade de jogo e empatia do grupo. Esse é o sentimento amargo que ficou dentro de nós, que merecíamos ter chegado à final e discutido o título.

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Pois, em vez de vilão ter-se-ia falado em herói…

O futebol é tão rápido… O lance não foi assim tão rápido a ser assinalado. Entre a situação em si e a decisão do árbitro passaram uns minutos. Eu sempre disse que o árbitro, o fiscal de linha neste caso, foi condicionado pela ação dos jogadores franceses. Daí poderíamos também comparar se fosse na área adversária, o árbitro nunca marcaria. Ou se eu fosse francês, menos ainda! Ficou a sensação de que o jogo jogado em campo não prevaleceu, fomos condicionados. Foi deturpada a verdade do jogo. Fomos recebidos em Portugal com um misto de sentimentos. Muita gente percebeu que fomos prejudicados, outras pensaram que o lance foi intencional. Sou suspeito, sou o único que pode falar da situação. Bateu na mão, isso é óbvio, claro. A intencionalidade não estava provada pela atitude do árbitro, só eu posso dizer.

E Zidane marcou.

Retenho os aspetos positivos. Tiraram-nos uma grande oportunidade de duas gerações, de termos ganho um título. Aquela geração teve verdadeiramente uma empatia com o povo português, era intitulada de “Geração de Ouro”. Jogávamos em grandes equipas europeias, mas não conseguimos ganhar um título.

Foi o primeiro a abraçar Nuno Gomes no golo contra a França. O que sentiu na altura, já cheirava a final?

[Silêncio] Começámos um bocado descrentes. Entrámos a perder com a Inglaterra, estava 2-0 aos 20 minutos. Houve um certo descontrolo emocional no jogo. Lembro-me que dentro de campo as coisas não estavam a sair bem. Podia ter sido dramático. Depois houve um lance capital: o golo do Figo, que nos motivou de tal forma que nos fez ganhar 3-2. Foi o jogo mais marcante, pelos aspetos motivacionais, fez-nos acreditar que chegaríamos à final. No final desse jogo, estávamos todos no balneário, olhámos uns para os outros e demos as mãos. Dissemos que íamos ganhar o Europeu. De facto, só aquele lance [do penálti] condicionou o percurso normal, que seria chegar à final e disputar o título. Foi uma geração muito rica, muito boa. Como se costuma dizer, fomos uma seleção de extremos. Podíamos estar no melhor e no pior registo. Podíamos ter feito muito mais, se tivéssemos tido outras condições.

Basta ir ao YouTube ver um ou outro vídeo e conclui-se que nos tempos do Benfica parecia daqueles médios modernos de hoje em dia, que jogam curtinho e arrumam a casa… Como é que chegou a lateral?

[Gargalhada] A minha formação é de defesa central. No Sporting fui formado como central, por causa da minha altura. Era central e ia jogando mais à frente, a trinco. Com a minha evolução, nomeadamente na seleção nacional, sempre tivemos grandes centrais e médios, por isso fui adaptado a lateral. Apesar da minha estatura anormal para lateral, consegui ser agressivo, passada larga percorria toda a faixa, defensivamente e ofensivamente. No Benfica, não posso dizer que não fui assobiado — o terceiro anel era complicado –, porque o meu futebol a meio-campo era de simplicidade de passe. Eu mal falhava passes, a taxa de sucesso era muito alta, por isso para os adeptos era como alguém que não arriscava… Hoje [esse futebol] faz sentido.

O Zidane disse que aquele jogo contra Portugal, em 2000, talvez tenha sido o melhor jogo da sua carreira. O médio Abel Xavier teria sabido como parar o homem?

Não, tínhamos uma equipa muito equilibrada, havia colegas que faziam bem as funções. Os treinadores escolhem as equipas. Entre carregadores de piano, violinos e bongos, para que a orquestra seja fluente e rica, os treinadores constroem as equipas. Eu era um carregador de piano, sabia dos meus dotes, e das minhas limitações. A minha polivalência foi uma arma muito boa para treinadores.

Foi mais feliz a lateral ou preferia ter sido médio?

Eu era mais feliz a jogar. Não interessava posição, queria mesmo era jogar. Queria fazer o melhor independentemente da posição. É uma riqueza que os jovens hoje têm de perceber: a polivalência e a versatilidade trazem riqueza no entendimento de jogo. Onde me sentia mais confortável era na zona central.

Puxando um pouco a fita atrás, que mudança é aquela do Benfica para o Bari?

A história do Benfica é incrível. Eu era para ir para o Sporting, estava tudo fechado. Era na gestão do Sousa Cintra. Um dia depois assinei pelo Benfica, são coisas que acontecem no futebol. Fui para um clube que internacionalizou a minha carreira. No primeiro ano, em 1994, fomos campeões e chegámos às meias da competição europeia, contra o Parma. Depois, o diretor geral da Parmalat (o Benfica tinha este patrocínio na camisola) e do Parma tratou do acordo para eu ir para o Parma. As condições estavam certas, eu ia ser jogador do Parma. À última da hora, houve alguma contrariedade que me escapou e acabou por ir o Fernando Couto. Fiquei no Benfica e aquele primeiro ano com Artur Jorge não foi feliz. Acabei por ser cedido ao Bari depois. Fui encontrar um cenário completamente diferente do que estava habituado, mas acabou por ser uma experiência rica. Foi bom para lutar contra a adversidade enquanto jovem. Lutava por outros objetivos num campeonato exigente. Depois voltei para o Benfica.

BRUSSELS, BELGIUM: French midfielder Robert Pires (R) tries to avoid the tackle of Portuguese midfielder Abel Xavier during the Euro-2000 semi-final match between Portugal and France at the King Baudouin stadium in Brussels, 28 June 2000. AFP PHOTO/PHILIPPE HUGUEN (Photo credit should read PHILIPPE HUGUEN/AFP/Getty Images)

Bruxelas: Abel Xavier e Robert Pires em ação nas “meias” do Euro-2000 (Photo credit should read PHILIPPE HUGUEN/AFP/Getty Images)

Jogou em tantos clubes, quais eram os adeptos mais loucos?

A minha segunda casa será sempre a Turquia. O Galatasaray será sempre a minha segunda casa. É seguramente o meu segundo público em termos de afeto. Se houvesse um clube ou país onde gostaria de ter acabado, era lá.

Quem foi o melhor jogador com quem jogou?

Eh, eh! É difícil. Tive privilégio de ter ao lado jogadores considerados craques. Em termos de notoriedade, e tudo o que acarreta a nível desportivo e imagem, obviamente ter estado com o David Beckham, nos Estados Unidos, foi uma experiência fantástica.

Havia algum extremo que lhe tirava o sono?

Eu preparava muito bem os jogos. Dormia com imagens dos adversários, via as movimentações dos extremos. De facto, posso dizer que havia um jogador que me atormentava: Henry. Pela nossa formação e rivalidade de Portugal-França, mas também pelo campeonato inglês. Foram sete anos a confrontar-me com esse grande jogador. Ele descaía para as zonas laterais e, principalmente, para o lado esquerdo. Esse era o jogador que me… que me… que me incomodava.

Pois, ele em 2000 fugiu-lhe no primeiro golo…

(Risos) Sim, repara: estamos a falar de decisões, há jogadores que têm uma qualidade acima da média e provocam dificuldades. Tendo velocidade ainda por cima, é complicado marcarmos certos jogadores. O Henry foi o adversário que mais trabalho me deu.

Defrontou uma seleção mais poderosa do que essa?

Isto é um trauma que existe no ar. Ganhámos dois Campeonatos do Mundo, 1989 e 1991, formámos geração extremamente forte, mas quem ganhou títulos europeus e mundiais foram eles. Há esta rivalidade em França. Este Europeu, sendo em França, talvez até o sintamos de forma diferente, como se houvesse aquela oportunidade de podermos afirmar-nos, com a força dos nossos emigrantes.

Para não falar do Europeu de 1984, contra a França de Platini…

Lá está, é uma coisa de gerações. A França foi sempre o adversário a temer.

O Abel nasceu em Moçambique. Está na cadeira de sonho?

Posso dizer que este projeto tem dois aspetos muito importantes: sentimentais e competitivos. Depois da minha história de vida enquanto jogador, de todos os países onde estive, isto de poder voltar e poder fazer história… Eu nasci em Moçambique, em Nampula. É um cargo de extrema importância. É uma realidade diferente e as condições são diferentes, mas a riqueza (os jogadores) é muito boa. Cabe a mim organizar a estrutura, preparar e ter resultados positivos. Só somos valorizados e reconhecidos ganhando. Moçambique potencializou a seleção portuguesa no passado, com Eusébio, Matateu e Coluna. Comigo também, de certa forma. Moçambique tem riqueza e vim constatar isso. Queremos que haja evolução, um modelo de jogo transversal a todas as seleções, maior aproximação. Queremos que o jogador moçambicano tenha um código de conduta, rigor e regras. Queremos que trabalhe para ser competitivo, nunca esquecendo as raízes.

E Portugal, tem razoes para sonhar?

Há que enaltecer a abordagem do selecionador nacional. Em Portugal temos a mentalidade do oito e do 80. Quando Fernando Santos assume que objetivo é ganhar o Europeu, ele sabe claramente que para esta geração, como a nossa no passado, será uma última oportunidade. Ele tem noção que o futebol está igualado, que há informações para jogadores e treinadores, de conhecimento de rivais, que faz com que seja possível ganhar a toda a gente. É legítimo não temer ninguém. Portugal está habituado a lidar com pressão de ter de ganhar.

Que jogador da seleção de 2000 é que emprestava à de 2016?

Com respeito ao grupo de trabalho, não faço essa comparação. Devemos sempre deixar as coisas no seu devido tempo e dimensão. Temos 23 jogadores de eleição.

Se pudesse reencarnar num jogador qualquer deste Europeu, quem seria?

Prefiro nem me comparar…