Já toda a gente o sabe: Antonio Carlos Jobim, o tal que — como dizia o outro grande — foi grande criador de, não toda, mas boa parte da música brasileira, aquela que o próprio escreveu e toda a outra que veio depois, inspirada, apaixonada e em contínua admiração. Ou então há quem o não saiba. E sorte a de quem só agora vai descobrir Jobim, bem-aventurados os que têm a graça de receber estas canções pela primeira vez.
Isto para dizer que a história do homem e da música não é nova, está nos discos, na memória, nas biografias, na internet, em toda a parte. Daí que este livro de Ruy Castro não cumpra tal função, não foi para isso que foi feito. Primeiro: não foi pensado como um livro, é uma coleção de textos publicados ao longo de vários anos — sejamos precisos, são textos nascidos entre 2007 e 2023 no jornal brasileiro Folha de São Paulo. Segundo: não é uma biografia, é um mapa de vida e musical que talvez possa ser caracterizado como biográfico porque revela várias faces de Tom Jobim. Episódios, peripécias, companhias, canções, detalhes.
É fruto de quem esteve muitas vezes com o artista, de quem o conheceu e o entrevistou em múltiplas ocasiões. Ruy Castro, cronista do Brasil, apaixonado por bossa nova (o mesmo que lhe escreveu a melhor história), biógrafo cuidado, amante de futebol, a pessoa mais acertada para escrever 99 histórias sobre este Antonio Carlos. Dessas, revelamos aqui quatro.
O primeiro Jobim
Para a história: qual foi a primeira vez que o nome de Antonio Carlos Jobim apareceu em jornal ou revista? Pode não ser uma pergunta de que dependa o futuro da música popular, nem da bossa nova, nem da biografia de Tom. Por que, então, fazê‑la? Porque aos biógrafos compete fazer perguntas, até as mais bobas, desde que nunca tenham sido perguntadas. Donde qual foi a primeira vez que o nome de Antonio Carlos Jobim, nascido em 1927, apareceu na imprensa?
Teria sido em 1958, quando João Gilberto gravou, de Tom e Vinicius, Chega de saudade e dividiu o átomo? Ou em 1956, quando o musical Orfeu da Conceição, também de Tom e Vinicius, estreou no Municipal? Ou em 1954, quando Tom e Billy Blanco se revelaram com a Sinfonia do Rio de Janeiro e o samba Teresa da praia? Não. É bem provável que, antes disso, o nome de Tom já tivesse saído em algum tijolinho de jornal como pianista de uma das boates em que ele deu duro na noite carioca a partir de 1950.
Mas houve uma instância ainda muito anterior. Foi na revista O Malho, de 31 de maio do quase pré‑diluviano 1934. Um poeta chamado Jorge Jobim publicou um poema, «Vem cá, siriri», que, em seus versos finais, dizia: «‘Vem cá, siriri/ As moças te chamam, tu não queres vir…’// Ah! Que é feito das meninas/ Que essa cantiga cantavam?/ Estarão vivas ou mortas?/ Desgraçadas ou felizes?// Coitadas! Vivas embora/ Como eu, as pobres meninas/ Já estarão quase mortas/ Porque hão de estar quase velhas!// E não de seus lábios frescos/ Mas do meu coração gasto/ Sai, longínqua e dolorida/ Essa cantiga de outrora:// ‘Vem cá, siriri,/ As moças te chamam, tu não queres vir…’.»
Versos penumbrosos e pessimistas, falando de morte. Mas que Jorge Jobim (1889‑1935), num assomo de amor, dedicou a seu filho de sete anos: «Para o meu Antonio Carlos.»
Maestro piador
Se tivesse que ser definido por completo, Antonio Carlos Jobim deveria ser classificado como compositor, letrista, maestro, arranjador, pianista, cantor e, tome nota, piador. Sim, piador. Um recorte enviado por meu amigo João Antonio Buhrer, de Campinas, me alertou para essa qualidade quase despercebida no rol de gostos e aptidões de Tom: o domínio da arte de piar, usando complexos pios artesanais para conversar de igual para igual com seus irmãos de asas. Cada pássaro, um pio — uma língua diferente.
Em Nova York, passeando pelo Central Park, Tom promovia uma congregação binacional entre os passarinhos americanos e brasileiros, identificando‑os pelo canto e chamando‑os por seus nomes em inglês e português. Robin era o pintarroxo, nightingale, o rouxinol, quail, a codorna. Mais difícil era saber como se chamavam certos pássaros brasileiros em inglês.
Como traduzir, por exemplo, a variedade dos nossos urubus? Segundo ele, só o jereba tinha 30 nomes. Em jovem, nas suas incursões pelo mato, Tom piava inhambus, mas para matá‑los. «O inhambu vinha todo apaixonado e eu o matava à traição», confessou. Era uma prática comum aos rapazes de sua geração. Mas, mais cedo do que muitos, ele enxergou a desumanidade daquilo. Continuou a piar vários pássaros, mas já então para firmar com eles um diálogo de amor.
A faixa O boto, em seu álbum Urubu, de 1975, é uma sinfonia de pios. Se, ao ouvi‑lo, você não percebeu, é porque eles foram integrados com tal naturalidade à orquestração que só podem ser «escutados» pelos muito atentos. Mas estão lá no disco, e executados pelo próprio Tom, quem mais? Os pios que usava eram de ipê ou bambu, torneados por seus fornecedores: os velhos artesãos piadores da Fábrica de Pios de Aves, de Cachoeiro de Itapemirim (ES), da qual ouviu falar por outro piador impenitente: Rubem Braga.
Os tico‑ticos, jerebas e patos‑pretos o entendiam. Tom era multilíngue — piava todos os pios e conversava até com o macuco, que, exceto ele, ninguém nunca viu.
Num estupendo verão
No verão de 1958, num predinho da rua Nascimento Silva, em Ipanema, o jovem Tom Jobim estava tirando do piano uma beleza atrás da outra. A alguns quarteirões, na esquina da avenida Henrique Dumont com a praia, o poeta Vinicius de Moraes vestia com letras aquelas canções. Ou o contrário — às vezes, Tom é que aplicava a música à letra.
As canções se destinavam a um LP a ser produzido para um modesto selo fonográfico chamado Festa, especializado em discos de poetas lendo seus poemas, de circulação obviamente limitada. O proprietário da Festa, o ex‑jornalista Irineu Garcia, já lançara grandes discos com Drummond, Bandeira, Augusto Frederico Schmidt, João Cabral de Melo Neto e outros, mas sentia que, com Vinicius, deveria fazer diferente. Ele sabia que Vinicius era um ser musical, que gostava de tocar violão e cantar em casas de amigos e, desde 1956, estava ligado ao jovem Jobim. Os dois tinham feito o musical Orfeu da Conceição, de que saíra, entre outras, Se todos fossem iguais a você. Donde, pensou Irineu, por que não gravar Vinicius com música de Tom, na voz de uma cantora moderna como, digamos, Dolores Duran?
Vinicius e Tom, empolgados, aceitaram e apresentaram a Irineu um caderno com doze canções inéditas. Ao violinista Irany Pinto coube arregimentar os músicos, e que timaço ele armou: Copinha na flauta, Gaúcho e Maciel nos trombones, Herbert na trompa, Vidal no contrabaixo, Juca Stockler na bateria e mais um naipe de sete violinos, duas violas e dois cellos. O estúdio seria o da Odeon, no edifício São Borja, em frente à Cinelândia, em que Tom, por sinal, trabalhava como arranjador.
Mas não houve acordo com Dolores. Ainda quase desconhecida como autora, ela estava no auge como cantora e cheia de compromissos em boate, rádio, cinema e televisão. Vinicius então sugeriu Elizeth Cardoso, e Elizeth não conhecia Tom, mas, por deferência a Vinicius, topou. Tom trouxe então um violonista que achava indispensável para acompanhar Elizeth em certas faixas — o jovem e quase desconhecido João Gilberto. E assim, dali a dias, naquele estupendo verão, gravou‑se o LP Canção do amor demais, que abria com um samba chamado Chega de saudade, cantado por Elizeth, com, pela primeira vez, um acompanhamento de violão bossa nova por João Gilberto. O resto você sabe.
Vou te contar
A vida de todo artista é feita de imprevistos, alguns mágicos. No caso de um compositor, eles podem se dar no momento da criação. De onde veio esse ou aquele acorde com que nem ele contava? E essa sequência de notas? Por que, de repente, tal canção parece ter sido feita para o cantor X e nenhum outro? E o que garante que, com o título tal e não qual, a canção vá ser um sucesso?
Tom Jobim não trabalhava em função do sucesso. Cada canção lhe tomava semanas ao piano, em casa, longe dos olhos dos críticos, dos ouvintes e talvez até de seus parceiros. Os que o viam bebendo com os amigos nos restaurantes não sabiam que, naquele dia, por sempre acordar cedo, ele já havia passado horas combinando notas, ritmos e harmonias até ficar satisfeito. Muitas de suas canções que nunca saíram da primeira gravação lhe custaram o mesmo tempo de Wave. Desafinado, que ele fez com Newton Mendonça em 1958, já foi considerada um «manifesto da bossa nova». E desde quando Tom e Newton eram homens de manifestos? Desafinado foi feita para que eles pagassem o aluguel. Era uma crítica aos cantores desafinados das boates que, de propósito, exigia grande afinação para ser cantada. O próprio verso «Fotografei você na minha Rolleiflex», incomum para a época, era uma prova da brincadeira. Tom e Newton não imaginaram o quanto, gravada por João Gilberto, Desafinado representaria para eles e para a música popular.
Já Wave, de 1967, Tom sabia que iria pegar. Escolheu‑a como título e faixa de abertura do disco instrumental que gravou em Nova York para Creed Taylor naquele ano — o «disco da girafa», como ficou conhecido pela foto na capa. Quando entrevistei Tom em março de 1968, falei‑lhe da faixa de que mais gostara, The Red Blouse. Ele respondeu: «É, mas o sucesso vai ser Wave.» Como ele podia adivinhar? Wave ainda nem tinha letra.
Tom a pediu a um jovem letrista, Ronaldo Bastos, amigo de seu filho Paulinho. Ronaldo hesitou — tinha dezenove anos, como podia ser parceiro de Tom Jobim? Tom insistiu: «Você não quer ficar rico? Essa música vai ser um estouro!» Mas Ronaldo disfarçou e correu. Tom pediu‑a então a Chico Buarque, que também remanchou, deu‑lhe o verso inicial, «Vou te contar…», e sumiu. Tom, então, não teve alternativa. Escreveu ele próprio o resto da letra — «Vou te contar/ O que os olhos já nem podem ver/ Coisas que só o coração pode entender…» — e ficou rico com ela.