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O que é afinal a portugalidade? (A nova e a outra)

Do português sem filtro de Onésimo à Nova Portugalidade; do "roque enrole" de Manuel Fúria à viagem Benguela-Lisboa de Kalaf. Nuno Costa Santos quis responder à pergunta: que sentimento é este?

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Textos longos ou curtos, artigos escritos ou intervenções públicas. Portugal está sempre no trabalho e no pensamento de Onésimo Teotónio Almeida. Já em 1994, no seu livro de crónicas Que Nome é Esse, Ó Nézimo?, editado pela Salamandra, incluía um capítulo intitulado “Da Portugalidade Como Doença”, no qual aludia, em modo rápido e com o seu habitual sentido de humor, a algumas características que encontra persistentemente em Portugal e nos portugueses e que se tornam mais evidentes quando vistas de fora. No caso, dos Estados Unidos, onde vive e dá aulas — é professor catedrático do Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros da Universidade de Brown (Providence, Rhode Island).

O Português Sem Filtro (título de uma antologia de textos seus, da Clube do Autor) assume que muito do que pensa sobre questões como língua, cultura e identidade resultam do contacto com as comunidades portuguesas dos Estados Unidos e do Canadá, que desde sempre frequentou de modo formal ou informal. E, claro, das viagens constantes que faz sobre o “Rio Atlântico”, de lá para cá, de cá para lá, permitindo-lhe manter-se ligado às duas margens, desde que começou a viver, ainda nos anos 70, nos EUA. Que características portuguesas observou a partir do território americano? À pergunta, Onésimo responde assim: “Evito fazer dessas comparações pois irrito meio mundo. Em Portugal predominavam (não posso generalizar) as características de um país fechado, provinciano, com uma visão do mundo demasiado desinformada e muito ingénua, moralista mas pouco realista. Depois veio a loucura utópica do 25 de Abril, com o país cheio de marxistas feitos à pressão. Por isso foi verniz que passou depressa”.

A palavra “portugalidade” também voltou a aparecer nos noticiários à conta do movimento Nova Portugalidade, organizador de uma conferência – que acabou por não acontecer — na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa, com Jaime Nogueira Pinto. Rafael Pinto Borges e Hugo Monteiro Dantas, do movimento, concebem notória e assumidamente a “portugalidade” como um projecto político-cultural, considerando-a, antes de mais, como “um património humano que engloba quase trezentos milhões de pessoas”. O primeiro reivindica que, da Amazónia a Timor, há uma comunidade de homens “cuja tradição política, virtudes, defeitos colectivos, experiência e visão do mundo são filhos do encontro com Portugal” e acha que o novo desígnio nacional deve passar por “desfazer barreiras entre homens e abraçar o ‘mundo que o português criou’ a que se referia Gilberto Freyre”. O segundo defende algo semelhante: “Não se trata de derramar lágrimas sobre a descolonização ou de prolongar no tempo um sentimento de orfandade do império. A descolonização é um facto consumado e a soberania dos Estados de língua portuguesa é uma posição legítima. Será, sim, entre outros sentidos, o reconhecimento de que a particular comunhão com esses povos deve produzir particulares relações de solidariedade e cooperação”.

“A Obsessão da Portugalidade”, de Onésimo Teotónio Almeida (Quetzal)

A Obsessão da Portugalidade, editado este ano pela Quetzal, é uma recolha de ensaios que Onésimo tem vindo a escrever desde há trinta anos, na qual assume que, passadas mais de quatro décadas de vida americana, mantém vivo o interesse por uma cultura da qual, apesar da distância, continua a sentir-se parte. Que motivos encontra para o apego? “Continuo a considerar-me português e a sentir vontade de dialogar com os meus patrícios sobre a terra-base que nos coube. Da mesma maneira que continuo a sentir que nunca emigrei, apenas alarguei fronteiras”. Movimento que lhe permite olhar aqui para o “rectângulo” (como um dia chamou à nação, criando um termo usado amiúde em cafetarias e assembleias) com algum distanciamento, aquele que o ajuda a ter uma atitude crítica em relação aos seus costumes e vícios, às suas conquistas e aos seus deslumbres.

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Aqui que ninguém nos ouve

Defende o autor de Quando os Bobos Uivam que em Portugal, em vez do diálogo, predomina o monólogo. Perguntamos: continua a ser assim? “É difícil conversar-se. À mesa nos jantares isso é praticamente impossível. Quase ninguém ouve ninguém e não se deixa ninguém falar (nesse domínio posso mesmo generalizar)”. E nos debates organizados, como palestras, conferências e congressos? “Continua a abundar a intervenção do público não para dialogar mas para comentar, às vezes para fazer outra conferência”. Não existe aqui no pedaço o hábito de, nas sessões públicas, ouvir e responder directamente às questões enunciadas. “Ouvimo-nos a nós próprios, já que ninguém nos ouve”. Nem os psicólogos.

"A única coisa que une os portugueses é Portugal. O que está implícito é uma concepção de que nem o Estado domina a mente de ninguém. Cada um constrói a sua experiência de Portugal diferentemente."
Onésimo Teotónio Almeida, escritor e professor universitário

O título do livro tanto consagra a vocação do autor para escrever sobre Portugal como a de muitos outros escritores para o fazerem, em volumes e volumes que apresentam o país no título (é feita uma lista de algumas obras). São separadas visões da portugalidade, como as trazidas pelo Saudosismo, pela Renascença Portuguesa e pela Filosofia Portuguesa. E por intelectuais como Eduardo Lourenço. É notório – neste como noutros livros seus — que Onésimo tem empatia e admiração pelas reflexões sobre o assunto de Lourenço, autor do geracionalmente canónico O Labirinto da Saudade. Como que o defende de quem a certa altura, nas Ciências Sociais, criticou a sua concepção de portugalidade, achando-a vaga, do domínio do literário, sem correspondência com a realidade.

Faz mesmo o elogio da intuição e do raro sentido de formulação de um intelectual que assume situar-se, na temática da portugalidade, algures entre “o sentimento” de Teixeira de Pascoaes e o “olhar frio da razão” de António Sérgio. “(…) Há uma verdade de Eduardo Lourenço que gostaria de lembrar e desenvolver aqui: a única coisa que une os portugueses é Portugal. O que está implícito é uma concepção de que nem o Estado domina a mente de ninguém. Cada um constrói a sua experiência de Portugal diferentemente”. Um individualismo na experiência que não exclui um sentimento (comum) de pertença que se revela de forma aberta, por exemplo, em acontecimentos culturais e desportivos, quando é atribuído um prémio internacional a uma obra – ou literária ou cinematográfica ou arquitectónica — de um autor português.

É notório – neste como noutros livros seus — que Onésimo tem empatia e admiração pelas reflexões de Eduardo Lourenço

Essa “magnífica intuição de Eduardo Lourenço”, considera, é hoje explicada facilmente pelas ciências cognitivas. “Quando digo ‘Portugal’ ponho lá todas as minhas experiências portuguesas, aquilo que gosto e não gosto. O significado da palavra para mim é diferente do significado que lhe poderá dar um emigrante que trouxe da sua experiência na pátria muito más recordações (conheço casos e até já transformei alguns em contos literários)”. Mas isso, admite, sucede com toda a gente a propósito de tudo: com termos como pai, mãe e avó. O mesmo acontece quando alguém diz “América”. “A América é também a América de cada um”.

Alguma da crítica de Onésimo dirige-se a um Portugal que o autor, depois da adesão de Portugal à CEE, viu, a partir do seu posto de observação privilegiado (porque lhe permite a distância), “europeizar-se” à força, esquecendo-se das suas referências domésticas nos hábitos e idiossincrasias. Também se alude, com pertinência, ao mais recente novo-riquismo de linguagem que usa termos em inglês do dicionário do empreendedorismo ou traduções de expressões idiomáticas mais condizentes com ideologias de centro comercial. Portugal adere facilmente a modas e aderiu à moda de termos como “coaching”, “gadget”, “lifestyle” e “corporate”. No texto “O Paradigma Perdido – Ou as Mudanças na Nossa Escala de Valores”, Onésimo Teotónio Almeida escreve o seguinte:

“(…) A evolução semântica de alguns vocábulos da língua portuguesa, bem como a importação de terminologias e expressões idiomáticas anglo-americanas, indiciam alterações da Contra-Reforma prevalecente em Portugal até ao salazarismo se não mesmo a sua substituição pelo paradigma weberiano do protestantismo cultural”.

A minha pátria é a minha língua

A questão linguística é um dos pontos importantes em A Obsessão da Portugalidade. A segunda parte do livro intitula-se “Língua e Lusofonia” e nela se encontra um entendimento “impuro” da língua, que considera ser um pouco de muitas coisas. Um “repositório das experiências culturais de um povo e reflexo de mundividências diversas de um povo”. As línguas são entendidas como corpos vivos, que se transformam, que se adaptam, que ganham possibilidades: “As línguas são tão maleáveis ou fraternas quanto o forem os seus falantes”. A dado passo, num capítulo intitulado “Algumas reflexões sobre língua – o que ela não é nem pode ser”, cita Mia Couto quando este parafraseou Bernardo Soares: “A minha pátria é a minha língua portuguesa”. E reivindica “uma língua plural como os seus falantes, que tanto podem ser conservadores, como comunistas, ou liberais”.

"Todos nós portugueses temos essa questão connosco mesmos. Só que, sendo nós indivíduos, lidamos com a questão individualmente: há 10 milhões de ‘portugalidades’ (mais a diáspora). Não fizemos nada para nascer em Portugal, mas uma vez portugueses queremos fazer qualquer coisa com isso. O quê? Varia”.
Luciano Amaral, professor universitário

Em muitas das críticas de Onésimo Teotónio Almeida mora um apelo à importância de não radicalizar o discurso da globalização que apague os nossos naturais apegos e a forma como nos relacionamos com o sítio de onde vimos e onde nos fizemos. Até porque, como se escreve a dado passo, por muito que se queira ser global, “a ligação à terra em que se vive, mas sobretudo aquela em que se passam os anos formativos da vida, acaba por emoldurar um pano de fundo que afeta, mais ou menos intensamente, os seres humanos para toda a sua vida”. Não deixa de ser curioso ver que o açoriano Onésimo por vezes recorre à “açorianidade” (termo lavrado por outro intuitivo, tal como Lourenço, Vitorino Nemésio, sobre a qual tanto debateu, sobretudo nos anos 80) para pensar a portugalidade. Como é que relaciona o sentimento de ser açoriano com o sentimento de ser português? “A açorianidade está dentro da portugalidade como uma camada anterior (ou interior). Não se excluem nem entram em conflito, como ser lisboeta ou portuense não colide com ser português”. Faz uma analogia: são esferas como as bonecas russas, as matrioskas.

Após tanta dissecação e análise, é importante perguntar a Onésimo Teotónio Almeida, que assume que escreve estas palavras mais duras porque se destina a “plateias” portuguesas – e que quando fala a estrangeiros sobre o território português não se centra tanto em fragilidades e sombras – em que é que pensa quando pensa em Portugal. “O meu Portugal está pilhado de boas experiências. Nunca fui apanhado por qualquer sentimento de exílio ou coisa parecida. Se por vezes deixo passar oportunidades de revisitar Portugal é por falta de tempo, nunca por falta de gosto. Sempre que posso, saio de Lisboa e vou espraiar-me pelo país, que está cheio de lugares gostosos. Nunca passo em Portugal tempo bastante e nunca regresso aos Estados Unidos com a alma atestada de Portugal”. Reentra, diz, nos EUA “como se nada fosse”, pois também se sente em casa aí.

Onésimo Teotónio Almeida (foto: Rui Sousa)

Encontra alguma característica nova em Portugal, para além das que encontrou quando começou a escrever sobre o país? “Portugal abriu-se imenso ao mundo, modernizou-se, internacionalizou-se. Não é nada o mesmo Portugal que deixei. Só receio que continue a reflectir nessa modernidade uma antiga marca de facilidade. Adapta-se o mais fácil, o que dá estilo e o que dá prazer”. De novo, aqui, considera que não deve ceder ao vício da generalização por encontrar muita gente que o impressiona pelo profissionalismo. Ainda assim, há maleitas que continua a ver perdurar nas pracetas lusas: “Fala-se em demasia e pensa-se que assim se muda o mundo”. Imagine-se o que diria Onésimo se tivesse página de facebook.

A portugalidade de cada um

O livro de Onésimo Teotónio Almeida é um bom pretexto para perguntar a algumas pessoas, de áreas diferentes, de diversas vocações ideológicas, de temperamentos distintos, como é que se relacionam com a palavra “portugalidade”. Mas há mais motivos, recentes – e entre estes estão a polémica na Universidade Nova e as reacções nacionais, ora indignadas ora humorísticas, às figuras de estilo usadas pelo presidente do Eurogrupo para caracterizar os países do Sul da Europa.

Quando se pergunta a Luciano Amaral, professor universitário e colunista, se acha que existe uma ideia de portugalidade e, caso entenda existir, o que significa, o também historiador prefere, pela complexidade da questão, dar várias respostas. “A primeira seria a mais democrática e individual. É a ideia “O’neilliana”: ‘Portugal, questão que eu tenho comigo mesmo’. Todos nós portugueses temos essa questão connosco mesmos. Só que, sendo nós indivíduos, lidamos com a questão individualmente: há 10 milhões de ‘portugalidades’ (mais a diáspora). Não fizemos nada para nascer em Portugal, mas uma vez portugueses queremos fazer qualquer coisa com isso. O quê? Varia”.

Docente na Nova School of Business and Economics, Luciano Amaral faz uma especificação do termo e do conceito quando surge relacionado com projectos políticos e culturais. “Aí, parece-me que há dois grandes projectos actuais, que são um pouco contraditórios entre si. Como projecto politico, há o de Portugal enquanto país europeu, mais ou menos dissolvido na Europa, sendo que a Europa, a União Europeia, é um projecto político muito forte”. E, como projecto cultural, há o de Portugal como “parte (centro? Periferia (do Brasil)?) da ‘Lusofonia’”. O problema deste projecto, para ele, é que não se lhe consegue atribuir grande significado, para lá de uma comunidade linguística.

Luciano Amaral: “Não fizemos nada para nascer em Portugal, mas uma vez portugueses queremos fazer qualquer coisa com isso. O quê? Varia” (foto: Carlos Manuel Martins/Global Imagens)

O autor de Economia Portuguesa – As Últimas Décadas (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2010) em que é que pensa quando pensa em Portugal? “Não sei muito bem: antigamente pensava nas tascas, nos pedintes desdentados, no cinema chato (como o de Manoel de Oliveira), na Lisboa dos betos e dos pobres, na Beira Alta dos campónios e dos emigrantes, no Alentejo subdesenvolvido, e muitas outras coisas. Mas tudo isso está a desaparecer. Não quero dizer que seja pior. Digo simplesmente que já não consigo tirar um retrato que seja tão claro para mim”.

Luciano Amaral é também autor do livro Rica Vida (Dom Quixote, 2014), sobre a forma como o povo português tem sobrevivido às crises políticas e económicas — e às suas elites. No seu entendimento sobre os portugueses, pode considerar-se central essa ideia de sobrevivência? “É fundamental. Poucos países no mundo têm a mesma capacidade de sobrevivência. E, sempre que se pensou em suprimir o país, houve alguém que o recusou”. Isto revela, diz, que há algo de muito forte nessa vontade e capacidade de permanência. “O que talvez não saibamos é o quê. Julgo que ainda andamos a tentar encontrá-lo. Ainda andamos a tentar resolver esse mistério. O mistério da persistência de Portugal”. Onde voltamos à “questão que temos connosco mesmos”, de Alexandre O’Neill, e onde o individual e o colectivo se juntam: porquê a para quê ser-se português? “Talvez seja essa a portugalidade possível: a busca pela razão da nossa existência enquanto portugueses. Uma portugalidade em construção”.

Heroísmos e patifarias, grandezas e misérias

Investigador na área da Cultura Portuguesa e da Filosofia em Portugal, Rui Lopo entende a portugalidade de outra forma. “Literalmente, ‘portugalidade’ parece ser a categoria que indica a propriedade daquilo que haja de comum a tudo o que diga respeito a Portugal. Como a materialidade diz respeito ao que é material e a identidade remete para o idêntico”. Neste sentido, o ex-membro da direcção da Associação Agostinho da Silva e do grupo de estudo do seu espólio, prefere adoptar da história a visão crítica das contradições: heroísmos e patifarias, grandezas e misérias. “Objectarão: mas como se percebem contradições sem grelhas valorativas anteriores? Aí entra dilema analítico prévio, e aqui sem pretensões de evitar a circularidade e o paradoxo: é a história contraditória que me estruturou que me permite situar-me hoje em seu seio e na sua relação, mas em futuridade”.

“Penso em carvalhos e em pinheiros mansos, penso em montanhas e penso na praia, sobretudo a que vai de Sagres a Caminha, e no Benfica. Penso em incêndios no Verão, no Aquário Vasco da Gama e no Portugal dos Pequenitos, penso em Guimarães e nos Açores, Porto Covo e Vila do Conde"

Lopo, tradutor, colaborador do projecto de estudo do espólio do filósofo português José Marinho e actualmente a terminar a redacção de uma tese de doutoramento sobre a recepção filosófica do budismo na cultura europeia oitocentista, preferia que Portugal fosse “um projecto mais que um destino”. “Uma escolha, em vez de um fadário”, que se deseja reconciliado consigo mesmo, nas “mil opressões próprias e alheias de que foi sendo agente ou paciente”. E, refere, esse olhar para o “património”, que significa a herança, o que foi recebido dos “pais”, entendidos como antepassados guardadores e transmissores deste território e desta língua, possibilita olhar para trás e livremente optar para o que nele mais futuro transporte. “E foram as navegações e não as conquistas, foi a conversa com os outros e não a tentativa de os converter, foi o comércio dos homens e não a traficância. É o que falta cumprir que nos pode futurar e não o que se desfez”.

Entremos nos domínios da música, em que a “alma portuguesa” – título tanto de um livro de poemas de Teófilo Braga como de uma loja de design — se tem revelado de múltiplas formas, do fado à pop, passando pela electrónica e até pelo blues tuga (caso dos Dead Combo). Ouçamos Manuel Fúria, que neste momento lidera o projecto Manuel Fúria e os Náufragos, autores do recente e excelente Viva Fúria. Há anos que Fúria – desde os tempos de Os Golpes — tem trazido aos melómanos uma certa imagem de um Portugal mítico, com elementos como o mar, os montes, os cavalos, os lugares, a vida campestre, os bailes, a poesia (no caso do último disco, de Ruy Belo, ele próprio um poeta que desenhou um país, sobretudo rural, nos seus versos). De onde chega esse imaginário? “Uma parte considerável do meu trabalho tem a ver com identidade. Sobre a impossibilidade de uma identidade individual senão como parte de uma identidade colectiva e na radicalização dessa ideia como dispositivo artístico-ideológico: o próprio sujeito da canção dilui-se num eu colectivo tornando-se impossível distinção entre ele e Portugal”.

Manuel Fúria: “A intenção é destruir as fronteiras que temos em relação a nós próprios. Sempre foi”

Numa espécie de “processo de osmose, as dores do sujeito são as de Portugal e vice-versa” e já não se sabe quem é o quê. Esse é o sujeito das canções de discos como Cruz Vermelha Sobre Fundo Branco, dos Golpes, ou Manuel Fúria Contempla Os Lírios do Campo. O imaginário parte sempre de coisas portuguesas, “como se o ‘roque enrole’ fizesse já parte deste território físico e espiritual”, sem ser preciso invocar paternidade estrangeira (sendo que, como refere, essa ideia é assumidamente torcida e virada ao contrário neste último disco, Viva Fúria). “A intenção é destruir as fronteiras que temos em relação a nós próprios. Sempre foi”.

Em que é que Manuel Fúria pensa quando pensa em Portugal? “Penso em carvalhos e em pinheiros mansos, penso em montanhas e penso na praia, sobretudo a que vai de Sagres a Caminha, e no Benfica. Penso em incêndios no Verão, no Aquário Vasco da Gama e no Portugal dos Pequenitos, penso em Guimarães e nos Açores, Porto Covo e Vila do Conde. Penso também nos grandes Reis, Dom Afonso Henriques, Dom Dinis, Dom João I e Dom João II e Dom Carlos. Mas também penso nas fábricas do Vale do Ave e nos leões nas portas das casas dos emigrantes. E em Goa também”.

Fúria faz, no entanto, uma nota: “Devo dizer que me dou mal com o termo ‘portugalidade’”. Toda a reflexão que tem tentado provocar através do seu trabalho vem precisamente no sentido contrário à necessidade de encontrar uma palavra que abarque em si a prática própria de se “ser português” de um modo mais adequado com uma ideia do que deve ser o “ser português”. Diz: “Mesmo que acredite, como é o caso, existir um modelo português, no trato, nos rituais, nos costumes, na maneira de pensarmos sobre nós próprios e o estrangeiro, na intuição perante as coisas, nutro senão desprezo pela ideia de categorizar isso segundo uma disciplina própria, apesar de ser uma coisa muito portuguesa fazê-lo”.

“Falar da gastronomia sentindo orgulhosamente que é melhor do que em qualquer outro país que se visite, defender o vinho produzido por cá, exaltar a poesia, enaltecer a tradição da ourivesaria, dar a conhecer o fado (mesmo quem nada se relaciona com ele profissionalmente), dizer do sol e do mar, lembrar que o seu povo constrói e resolve, que sabe e gosta de receber, que se esforça para se aproximar dos outros”
Katia Guerreiro, fadista

As críticas de Manuel Fúria não se ficam por aqui: dirigem-se também ao gesto de abrir lojas “portuguesas”, fazer musica “portuguesa”, criar marcas de roupa com “valores portugueses”. É – citamo-lo – como se não o fôssemos, como se cada um de nós fosse um ocidental parido por geração espontânea e tivesse esta oportunidade de se relacionar com um património que só a portugalidade permite, do mesmo modo que poderia relacionar-se com Itália ou a Bulgária através da praxis própria ao país em causa, como se não tivéssemos nada a ver com isto (Portugal), como se pudéssemos escolher ser mais ou menos portugueses. Remata a sua reflexão com uma sentença: “Um país ideal, não possível, é-o. Ou seja, para se ser português no país que, a partir das ruínas da fantasia de um outro e daquele que há de vir, tento inventar, basta ser-se”.

O fado, o kuduro e os verbos redondos

A fadista Katia Guerreiro, que nasceu na África do Sul, não sabe se a portugalidade pode ser uma ideia ou um conceito. É, para ela, talvez mais uma forma de sentir o país que não tem forçosamente a ver com patriotismo. “Sentir o peito cheio e ter um brilho nos olhos a falar de Portugal no tudo de bom que se vive cá”. Ainda nas suas palavras — que procuram, mais do que tudo, valorizar: “Falar da gastronomia sentindo orgulhosamente que é melhor do que em qualquer outro país que se visite, defender o vinho produzido por cá, exaltar a poesia, enaltecer a tradição da ourivesaria, dar a conhecer o fado (mesmo quem nada se relaciona com ele profissionalmente), dizer do sol e do mar, lembrar que o seu povo constrói e resolve, que sabe e gosta de receber, que se esforça para se aproximar dos outros”. Portugalidade, para a autora de Até ao Fim, talvez seja resumir isto e mais a uma só palavra em jeito de conclusão de que “num país tão pequeno se faz e vive o melhor do mundo”.

Katia Guerreiro: “A nossa vivência de portugalidade não é essencialmente fadista, mas num qualquer momento o fado surge e a vida muda”

Sendo um dos nomes do fado português, perguntamos-lhe se considera que a vivência da portugalidade continua a ser essencialmente fadista ou se acha que o fado é apenas uma das várias manifestações artísticas da portugalidade. “O fado é uma das expressões artísticas com mais cunho de portugalidade. Abarca a língua portuguesa, a capacidade tão nossa de partilha de afectos e emoções, aliada à poesia, seja ela mais popular ou mais erudita, ou um trinar de guitarra que nos eleva o patriotismo. A nossa vivência de portugalidade não é essencialmente fadista, mas num qualquer momento o fado surge e a vida muda, porque este faz mudar a forma como se vivem emoções e sentimentos. A portugalidade passa a poder existir em estrangeiros que se deixam apaixonar por tudo o que possa querer dizer ‘ter Portugal dentro do peito’”. Garante que conheceu muitos casos em que tal sucedeu e todos os dias lhe surgem novos.

Mudemos de disco e de género musical. Do fado para o kuduro, dos Buraka Som Sistema, que trouxeram à tona uma Lisboa africana que a certa altura passou a conquistar o mundo. Um dos seus fundadores, Kalaf Epalanga, músico e escritor, neste momento a terminar um romance, veio para Lisboa nos anos 90 com o objectivo de estudar gestão, mas seguiu o universo da música, começando por dizer poemas, em registo spoken word, sobre fundo musical, e, ao assistir ao que muitos africanos e caribenhos faziam musicalmente em Londres, a partir da música dos lugares onde vinham, acabou por resolver fazer algo semelhante em Portugal. Assumir sonoridades africanas — que se ouviam, por exemplo, na Linha de Sintra — e transformá-las numa música que pudesse fazer dançar em discotecas como o Lux.

Sobre a palavra portugalidade, ocorre-lhe dizer o seguinte: “A que me é mais íntima oscila entre a necessidade e o afecto. Aqui, debaixo deste sol, a vida consegue ser menos dramática. O sol tem esse efeito, faz-nos sentir menos exilados”. À localização geográfica, Kalaf acrescentaria o fator língua. “Sim, gosto da ideia de portugalidade porque dentro desse espaço se fala esse português irresistível de verbos redondos, formas, estilos e tiques que se manifestam nos sotaques que lhe habitam”. Convoca-nos para olharmos para os obreiros dessa língua mestiça que nos une: o português. “E não me refiro só ao de Camões, mas também, ao de Manoel de Barros, ao do Mia Couto e de todos os que o reclamam para si e o mantêm vivo”.

"Antes da língua e do verbo, antes de ouvir na rádio a Amália a cantar canções tristes. Bem antes de ler num livro de História o nome de Diogo Cão e a sua chegada à Foz do Rio Zaire. Antes das mil formas de cozinhar o bacalhau descritas num velho livro de receitas. A ideia de Portugal surgiu-me desavisada"
Kalaf Ângelo, músico e escritor

O exercício de pensar em Portugal leva-o para territórios poéticos: “Bem antes da língua e do verbo, antes de ouvir na rádio a Amália a cantar canções tristes e da minha mãe me dizer que aquilo que ouvia se chamava fado. Bem antes de ler num livro de História o nome de Diogo Cão e a sua chegada à Foz do Rio Zaire. Antes das mil formas de cozinhar o bacalhau descritas num velho livro de receitas portuguesas na casa da minha avó. A ideia de Portugal surgiu-me desavisada”. A família de Kalaf festejou o regresso de um familiar de umas férias passadas em Lisboa. “A sala encheu-se de histórias, de fotografias de uma praça onde as pombas sem medo vinham comer na palma das mãos mostravam-se ao som do rasgar de papel de embrulho, por entre um cheiro novo, doce e frutado que invadia o ar”. Kalaf nunca mais se esqueceu do cheiro das maçãs de casca verde e azeda saborosas e muito distantes das que lhes chegavam da Huíla.

Em sua casa as crianças nunca se prenderam aos brinquedos. Por isso, qualquer livro de banda desenhada o deixava “nas nuvens”. Assume: “Aquela dúzia de livros Disney e Marvel fizeram de mim simplesmente o miúdo mais feliz de Benguela. De mim e de todos os miúdos lá da rua, porque esses objectos de culto pop não ficavam muito tempo na posse dos seus proprietários. Corriam o bairro todo até voltarem”. Muitos nunca voltavam. Só era possível obter esses livros através de Portugal. “E foi por essa via que começou a ganhar forma em mim a ideia de Portugal, o lugar de onde vinham os livros e que cheirava a maçãs granny-smith”.

Como é que relaciona a sua angolanidade com a sua portugalidade? De forma simples, responde. Correndo o risco da formulação cliché, sente-se um cidadão do mundo. Gosta da liberdade de movimentos que, nos últimos dez anos, tem exercido de forma intensa. Fala de Lisboa como sendo a mais africana das capitais europeias. “Se tivermos disponíveis para isso e com paciência, já que a cidade tem um ritmo só dela, chega a ser relativamente fácil nos sentirmos em casa aqui”. Quanto a Luanda, considera-a uma das cidades mais interessantes que conhece. É, para si, uma cidade urgente, muito criativa, que exige de cada um. Apesar de todas as viagens, não hesita em sublinhar de onde vem. “Independentemente da cidade onde me encontre, sou sempre um benguelense, nómada incorrigível, filho da minha mãe e curioso com o que ainda está para vir”.

Os emigrantes e os tuk tuk

Outro viajante, Tiago Salazar, escritor e jornalista, autor do romance, recentemente editado, A Escada de Istambul (Oficina do Livro, 2016), conta que deve ter esbarrado pela primeira vez com a ideia de portugalidade na escola primária, ao estudar os antigos povos que por aqui habitaram. Conserva a teoria desta terra como “um torrão apetecível”, “espécie de Éden revisitado”, onde pontuaram desde os celtas aos iberos, passando pelos suevos, alanos, visigodos, fenícios, antes dos domínios romanos e árabes, “todos à babugem de um poiso de veraneio”. Tiago tornou-se conhecido como escritor de viagens – é autor de livros como A Casa do Mundo e Viagens Sentimentais – e, durante os seus périplos, ganhou uma visão dos portugueses: “Viajar fez-me concluir que o português emigrado é um tipo orgulhoso do seu torrão deixado para trás, aonde sempre voltará, de peito feito, à conquista da terra escolhida como canteiro adoptivo, mas sem nunca perder de vista a pátria, por mais anafada que esteja a conta bancária”. Em lugares distantes, deu por si saudoso de um pão capaz, de uma sopa da avó, de “uma diatribe de bola, olho no olho, na tasca do senhor Abílio”, “do mar ao sair da porta”, “da luz coada do Verão quando ainda é Inverno”, “do burburinho das ruas estreitas”, “da capacidade notável de olhar o estrangeiro como um amor possível”.

“Ao passear hoje um turista dou por mim a pensar no poema ‘Invitation au Voyage’, de Baudelaire, e de como a minha ideia de portugalidade insiste em ser a de um lugar ao sol, onde povos sucessivos campearam para se instalarem”, diz Tiago Salazar

Hoje, o autor de Endereço Desconhecido também ganha a vida a transportar turistas num tuk tuk, o que lhe permite entender o país de uma outra maneira: “Ao passear hoje um turista dou por mim a pensar no poema ‘Invitation au Voyage’, de Baudelaire, e de como a minha ideia de portugalidade insiste em ser a de um lugar ao sol, onde povos sucessivos campearam para se instalarem, mas no final sobrou um gueto feliz, oásis de turistas em sobressalto, um dos poucos lugares do mundo onde é possível uma mesma rua alojar um muçulmano, um judeu e um ateu sem a noite acabar num paiol de pancadaria”.

“Penso em rojões e sopa de pedra e caralhotas, discussões pífias de futebol, em poetas e versejadores, em mandriões e mânfios e tanas e badanas e sacanas e manhosos mas tudo malta convencida de que é porreira e de bom coração, penso em operetas e óperas bufas, penso em quezílias de como a minha é maior do que a tua, penso na inveja endémica do que é diferente e fora do baralho"
Tiago Salazar, jornalista e escritor

Se pensar em Portugal o que lhe vem à ideia? Um caos, como o trânsito da cidade onde circula todos os dias. “Penso em rojões e sopa de pedra e caralhotas, discussões pífias de futebol, em poetas e versejadores, em mandriões e mânfios e tanas e badanas e sacanas e manhosos mas tudo malta convencida de que é porreira e de bom coração, penso em operetas e óperas bufas, penso em quezílias de como a minha é maior do que a tua, penso na inveja endémica do que é diferente e fora do baralho, penso em quem parte a loiça poder acabar todo partido, penso no Sporting entregue aos bichos, penso no Nuno Bragança e no Ernesto Sampaio que dizia ser esta uma terra de bimbos, mas a Ocidente não conhecer outra melhor”.

Num texto incluído no já referido volume Onésimo – Português Sem Filtro, “A Portugalidade Recuperável”, o autor escreve que um país emocionalmente exausto no desporto da má-língua colectiva e da descrença pode ter a necessidade de “se agarrar à tábua de salvação dos valores tradicionais (isto é, mantidos durante muito tempo)”. A portugalidade acaba, assim, nas suas palavras, por não ser um programa mas uma quase-lei que surge como um imperativo histórico e não como uma moral. “Nesse caso, porquê recear-lhe o nome? Porquê fechar-lhe os olhos? Desde que se destrincem as abstrusas confusões a que no passado a sujeitaram, ela poderá de facto aparecer de rosto lavado, sem bolor provinciano, e vir animar esta colectividade desiludida a juntar-se à Europa sem complexos de cantar fado (de Coimbra ou de Lisboa), de comer sardinhas em Alfama, de adorar uma bica e deleitar-se com uma frase de ‘fino recorte literário’”. Sem que isso implique, sublinha, a construção de muros sobre as inevitáveis estradas de acesso à Europa e ao mundo de hoje.

Nuno Costa Santos, 42 anos, escreveu livros como “Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco” ou o romance “Céu Nublado com Boas Abertas”. É autor de, entre outros trabalhos audiovisuais, “Ruy Belo, Era Uma Vez” e de várias peças de teatro.

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