Nos últimos dez anos, os crimes de abuso sexual de menores cometidos por milhares de padres (e ocultados durante décadas por dezenas de bispos em todo o mundo) transformaram-se numa das maiores e mais profundas crises que a Igreja Católica enfrentou na sua história. A dimensão do escândalo chocou o mundo. Não foram casos isolados de um ou outro padre abusador, mas esquemas complexos de encobrimento de milhares de crimes em diversos pontos do globo que têm vindo, progressivamente, a ser revelados — e muitos acreditam que ainda não se sabe tudo. Já a resposta da hierarquia da Igreja ao escândalo tem sido lenta e alvo de críticas. Sucedem-se os pedidos de desculpa, as promessas de tolerância zero e os encontros com vítimas. Mas, para muitos, faltam ações concretas.
“Pedidos de perdão não chegam, evidentemente. Pedir perdão não chega. É preciso acompanhar as vítimas e garantir que os crimes não voltam a acontecer, e é preciso responsabilizar quem cometeu os crimes”, diz ao Observador o padre José Maria Brito, diretor do Ponto SJ, portal de informação dos jesuítas em Portugal. Mas, para o jesuíta, também não é verdade que não se esteja a fazer nada além dos pedidos de perdão. “Estive dois anos em Boston já depois da crise dos escândalos, e quando fui para lá tive de ser sujeito a um processo de formação para ficar certificado. O processo tinha duas fases: na primeira tinha de conhecer a fundo as normas de conduta e fazer uma prova; na segunda, tive uma formação concreta, partindo de casos reais e muito focada nas nossas próprias debilidades afetivas, para perceber que momentos podem ser fragilizadores para a afetividade de um religioso”, lembra o sacerdote.
Há que distinguir, defendem várias fontes ouvidas pelo Observador, as ações tomadas pela hierarquia central da Igreja — o Vaticano — e as implementadas pelas comunidades católicas por todo o mundo. Na opinião do jesuíta José Maria Brito, “desde muito cedo, as igrejas locais atingidas pelos escândalos criaram uma série de procedimentos para minimizar o problema, tentaram que os padres fossem identificados e que se acabasse com a cultura de encobrimento”. A mesma opinião tem Alessandra Campo, investigadora italiana e coordenadora do Centro para a Proteção de Menores da Pontifícia Universidade Gregoriana, a mais importante instituição de ensino superior da Santa Sé: “Há cada vez mais comunidades a desenvolver políticas para gerir o problema e isto significa que há cada vez mais consciência do problema”.
Em entrevista ao Observador a partir de Roma, Alessandra Campo destaca que a Igreja está hoje mais bem preparada para reagir a possíveis novos escândalos, uma vez que já criou mecanismos para acompanhar as vítimas, colaborar com a justiça e condenar internamente os agressores. “Claro, no passado foram cometidos erros na forma como lidámos com o problema. É objetivo, não podemos dizer que não é verdade”, assume. Mas, “ao trabalhar em vários países, vejo como a atitude está a mudar em diferentes dioceses, em diferentes contextos. Vejo o compromisso e vontade autêntica de várias pessoas na Igreja de contribuir positivamente para combater os abusos de menores”, defende a académica, sublinhando, porém, que esta ação direta nas comunidades locais tem menos impacto mediático do que as palavras do Papa ou da hierarquia da Igreja.
As ações mais concretas, defende o padre José Maria Brito, têm de partir das comunidades locais, guiadas pelo exemplo do Vaticano. “Aquilo que se faz a nível macro, que o Papa vai fazendo na renovação das estruturas do Vaticano, tem de servir como exemplo, mas por si só não resolve os problemas. A dimensão daquilo que aconteceu na Igreja foi de tal maneira preocupante que não há nenhum Papa ou nenhuma comissão que consiga resolver todos os problemas. Ou este tipo de trabalho e procedimentos são depois reproduzidos a nível das igrejas locais e das congregações, para que as pessoas sintam que podem ser ouvidas e que não há o perigo de se criar uma cultura de secretismo, ou então é muito difícil”, argumenta.
“Tolerância zero”
A linha defendida publicamente pelo Papa Francisco sobre qual deve ser a resposta da Igreja aos casos de abusos sexuais por parte do clero tem sido clara: tolerância zero para quem comete os crimes e para quem os oculta. “Assumamos, clara e lealmente, a determinação ‘tolerância zero’ neste campo”, escreveu o Papa Francisco numa carta enviada aos bispos de todo o mundo em dezembro do ano passado. Na carta, o Papa lembrou “o sofrimento, a história e a dor dos menores que foram abusados sexualmente por sacerdotes”, que “tinham à sua responsabilidade o cuidado destas crianças” e que “destruíram a sua dignidade”, e repetiu o pedido de perdão, atacando tanto quem cometeu os crimes como quem os ocultou: “Solidarizamo-nos com a dor das vítimas e, por nossa vez, choramos o pecado: o pecado que aconteceu, o pecado de omissão de assistência, o pecado de esconder e negar, o pecado de abuso de poder”.
Porém, já havia sido Bento XVI, o Papa que teve de dar a primeira resposta aos escândalos, quem começara a anunciar a política de tolerância zero para lidar com os casos de pedofilia. A polémica tinha manchado a imagem da Igreja Católica em 2002 quando a célebre investigação do The Boston Globe revelou um dos maiores escândalos de pedofilia da história da Igreja ao provar que o cardeal norte-americano Bernard Law tinha ocultado centenas de casos de abusos e protegido dezenas de padres pedófilos. Mas em 2009 um relatório explosivo revelou que o problema estava longe de se ficar por ali: durante o século XX, mais de duas mil crianças foram violadas e agredidas por membros do clero em orfanatos católicos na Irlanda. A revelação abalou a Igreja em todo o mundo. Novamente. O relatório, com 2.500 páginas e centenas de testemunhos, havia sido preparado ao longo de nove anos pela Comissão de Inquérito sobre o Abuso de Crianças na Irlanda e trouxe o assunto dos abusos sexuais para o topo da lista de problemas da Igreja.
Poucos meses depois da divulgação daquele documento, um novo relatório comprovou que a hierarquia eclesiástica conspirou durante décadas com as autoridades civis irlandesas no sentido de ocultar os casos e preservar a reputação da Igreja num dos países mais católicos da Europa. No início de 2010, o Papa Bento XVI escreveu uma carta aos católicos irlandeses na qual deixou bem clara qual a sua posição face aos escândalos que começavam a vir a público: tolerância zero e punições severas. No documento, mostrou-se “profundamente perturbado” com os “atos pecaminosos e criminais” — deixando antever que sobre os transgressores não cairia apenas a justiça divina, mas também a civil — e sublinhou que, perante “o pavor e a sensação de traição” experimentados pelas vítimas, a resposta das autoridades eclesiásticas foi “muitas vezes inadequada”.
As palavras mais duras do Papa foram dirigidas aos padres que abusaram sexualmente das crianças e jovens. “Traístes a confiança que os jovens inocentes e os seus pais tinham em vós. Por isto deveis responder diante de Deus omnipotente, assim como diante de tribunais devidamente constituídos. Perdeste a estima do povo da Irlanda e lançastes vergonha e desonra sobre os vossos irmãos”, afirmou Bento XVI, que deixou também fortes críticas aos bispos irlandeses: “Não se pode negar que alguns de vós e dos vossos predecessores falhastes, por vezes gravemente, na aplicação das normas do direito canónico codificado há muito tempo sobre os crimes de abusos de jovens. Foram cometidos sérios erros no tratamento das acusações”, declarou o Papa.
Aquele foi um momento de viragem na Igreja Católica. O escândalo ganhou dimensões tais que se tornou incontrolável. A partir dali, mais do que duplicou o número de padres expulsos da Igreja por decisão do Vaticano. Nos dois anos seguintes, ainda durante o pontificado de Bento XVI, viriam a ser expulsos da Igreja 384 padres na sequência de denúncias de pedofilia. Outros cerca de 400 padres receberam sanções menos graves, como a redução ao estado laical, a proibição do exercício público do ministério ou a obrigatoriedade de se recolher em oração e penitência para o resto da vida.
O Papa Bento XVI — que, nos últimos anos do seu pontificado, se encontrou pessoalmente com dezenas de vítimas de abusos sexuais — acabaria por renunciar ao pontificado em 2013 no meio de um dos momentos mais conturbados da Igreja, em que os casos de pedofilia se juntavam aos escândalos financeiros em torno do Banco do Vaticano revelados no Vatileaks. Francisco herdou o pesado fardo de limpar a imagem da Igreja Católica e os abusos sexuais foram a primeira prioridade. Logo nas primeiras semanas de pontificado, após um encontro com o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, órgão do Vaticano que tutela o acompanhamento da questão dos abusos sexuais, o Papa pediu ao cardeal Müller que desse “continuidade à linha estabelecida por Bento XVI”, agindo “com determinação em relação aos casos de abusos sexuais”. Em julho de 2014, o Papa reforçou a mensagem ao convidar vítimas de abusos sexuais para uma missa na sua residência no Vaticano, onde lhes pediu “humildemente” perdão.
“A tolerância zero significa que todos temos de interiorizar que, diante dos casos que conhecemos e que achamos que não são conformes àquilo que é um ministro da Igreja, esses casos têm de ser imediatamente identificados”, defende o padre José Maria Brito. Sublinhando a necessidade de evitar os “julgamentos em praça pública” baseados numa suspeita, o jesuíta explica que “aquilo que a psiquiatria nos diz é que na maioria das vezes as crianças não mentem”. Por isso, “se há algum sinal que vem de uma criança, é para levar a sério”.
De certa forma, admite o sacerdote, a própria política de tolerância zero já tem contribuído para a resolução do problema. A esmagadora maioria dos casos que têm vindo a público, incluindo os que constam do recente relatório do estado norte-americano da Pensilvânia que dá conta de abusos cometidos por 300 padres sobre pelo menos mil crianças ao longo de 70 anos, “são muito anteriores ao momento em que se começou a declarar a tolerância zero”. Isto não quer dizer, adverte José Maria Brito, que “já se tenham resolvido todos os problemas” e que não haja abusos sexuais na Igreja ocorridos depois de 2002. “Mas não estamos onde estávamos antes”, garante.
Comissão de especialistas
Depois das condenações, dos pedidos de perdão e dos encontros com vítimas que marcaram os primeiros meses do pontificado, a primeira decisão de peso tomada pelo Papa Francisco foi anunciada ainda em 2013: a criação de uma comissão de especialistas para assessorar o Papa na questão dos abusos sexuais. A ideia surgiu numa reunião do Conselho de Cardeais (C9), o órgão consultivo criado pelo Papa para o ajudar no governo da Igreja Católica, e foi aprovada de imediato por Francisco, que confiou o trabalho de organizar a comissão ao cardeal norte-americano Seán Patrick O’Malley, arcebispo de Boston. Nas declarações que prestou aos jornalistas logo no dia da reunião em que a ideia foi aprovada pelo Papa, O’Malley destacou que Francisco estava decidido a “continuar nas linhas seguidas pelo Papa Bento XVI” e que a Comissão para a Proteção dos Menores iria avaliar os procedimentos implementados atualmente na Igreja e apresentar ao Papa propostas para reforçar os procedimentos seguidos não só pela Cúria Romana mas também pelas conferências episcopais e ordens religiosas de todo o mundo.
Em março de 2014, a comissão foi formalmente criada e os primeiros membros nomeados. Eram oito homens e mulheres — padres, religiosos e leigos — oriundos de diversos países a que mais tarde se juntariam outros nove elementos. Nessa altura, o Papa Francisco disse aos membros, num documento que lhes dirigiu: “A tarefa específica da Comissão é propor-me as iniciativas mais oportunas para proteger os menores e os adultos vulneráveis, de forma a que possamos fazer tudo o que é possível para assegurar que crimes como os que ocorreram nunca mais se repitam na Igreja”. No mesmo documento, o Papa pediu aos membros da Comissão que unissem “os seus esforços aos da Congregação para a Doutrina da Fé, para a proteção de todas as crianças e adultos vulneráveis”.
Durante os primeiros anos, a Comissão levou a cabo dezenas de iniciativas. De acordo com o site oficial do organismo, só nos primeiros três anos os membros da Comissão participaram em mais de 150 eventos formativos nos seis continentes e na Santa Sé. Mas, em março de 2017, três anos depois de ter sido criada, a Comissão mergulhou numa crise profunda quando Marie Collins, uma mulher irlandesa sobrevivente de abusos sexuais que integrava o organismo, decidiu abandonar a Comissão. Numa carta aberta que foi publicada no National Catholic Reporter, Collins denunciou que os organismos da Santa Sé estavam a recusar colaborar com a Comissão e não estavam a implementar medidas propostas pelos elementos da Comissão e aprovadas pelo Papa Francisco.
Vaticano: Membro da Comissão para Proteção de Menores demite-se por falta de cooperação
Entre os principais obstáculos ao trabalho da Comissão, a irlandesa destacou a falta de recursos, a lentidão dos avanços e a resistência cultural. “O problema mais significativo tem sido a relutância de alguns membros da Cúria do Vaticano em implementar as recomendações da Comissão, apesar da aprovação do Papa”, escreveu Marie Collins. “Será esta relutância motivada por políticas internas, pelo medo da mudança, por um clericalismo que incute uma crença de que ‘eles sabem melhor’, por uma mentalidade fechada que vê os abusos como um inconveniente ou por um apego às antigas atitudes institucionais?”, questionou a irlandesa. “Não sei a resposta, mas é devastador ver que em 2017 estes homens ainda conseguem colocar outras preocupações à frente da segurança das crianças e dos adultos vulneráveis”, lamentou.
Por exemplo, no que diz respeito à recomendação de criar um tribunal para julgar os bispos que tivessem sido negligentes ou ocultado casos de abusos, que foi aprovada pelo Papa, a Congregação para a Doutrina da Fé nunca chegou a implementar a medida, alegando “dificuldades ‘legais’ não especificadas”. Mas o ponto definitivo, escreveu a irlandesa, foi a recusa por parte da Congregação para a Doutrina da Fé em implementar “uma das recomendações mais simples que a Comissão apresentou até hoje”: a obrigatoriedade de que todas as cartas enviadas por vítimas recebam uma resposta. “Para mim é impossível ouvir declarações públicas sobre a grande preocupação na Igreja pelo cuidado daqueles cujas vidas foram arruinadas pelo abuso e, ao mesmo tempo, ver em privado como uma congregação do Vaticano recusa até reconhecer a existência das cartas das vítimas.”
Em 2017, numa entrevista ao Observador, o antigo prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o cardeal alemão Gerhard Müller, recusou as acusações de Marie Collins. “Fomos acusados e eu não sei porquê”, disse Müller, sublinhando que a congregação levou “muito a sério” as palavras de Collins. “Todos queriam trabalhar com esta Comissão. Se alguém não queria continuar naquele trabalho, podia sair, mas não acusar outro grupo de pessoas, que nada tiveram a ver com isso”, afirmou. Mas a verdade é que, a partir daquele momento, a utilidade e a eficácia da comissão criada pelo Papa passaram a ser questionadas: continuavam a vir a público novos casos de pedofilia na Igreja e a resposta parecia continuar igual. A medida mais aguardada — o tribunal para julgar os bispos que protegeram padres que abusaram sexualmente de menores — mantinha-se sem data à vista e a Comissão acabaria por desvanecer.
Só mais tarde, em fevereiro deste ano, dois meses depois do fim do mandato da comissão anterior, é que o Papa Francisco decidiu dar uma nova força à Comissão, confirmando o cardeal Seán O’Malley no cargo e nomeando novos membros. Na altura, a psiquiatra francesa Catherine Bonnet, que tinha feito parte da comissão original, disse ao jornal Le Monde que estava preocupada com a falta de respostas por parte do Vaticano — e do Papa Francisco em concreto — às propostas apresentadas. Em setembro de 2017, exemplificou a psiquiatra, a comissão tinha apresentado ao Papa a proposta de levantar o segredo pontifício sobre os casos de abuso sexual e a abolição do prazo de prescrição, mas não houve nenhuma resposta por parte do Papa. Os novos membros prosseguem agora a missão de “tornar a Igreja numa casa segura para crianças, adolescentes e adultos vulneráveis”, como explica o resumo da última assembleia plenária da comissão, em abril deste ano. Resta saber até que ponto o organismo terá uma efetiva capacidade de mudança dentro da Cúria Romana.
Melhor formação para os padres
No complexo sistema educativo pelo qual os seminaristas têm de passar, que privilegia a formação teológica e filosófica, a dimensão afetiva e sexual, parte integrante do desenvolvimento humano, é frequentemente deixada para segundo plano. “A formação humana dos futuros padres e, no geral, a formação dada aos religiosos deve ter em conta um conjunto de elementos que são muito importantes e que podem ter sido negligenciados no passado”, assume ao Observador a investigadora italiana Alessandra Campo, coordenadora do Centro para a Proteção de Menores da Universidade Gregoriana. “A sexualidade, a maturidade afetiva e a educação sexual. Todos esses aspetos raramente foram abordados, enquanto deviam fazer parte da formação”, defende Alessandra Campo.
O Centro para a Proteção de Menores (CCP) que coordena é, aliás, uma das iniciativas com que a Igreja Católica procura reverter esta tendência. Criado em 2012 em Munique, o projeto resultou de uma parceria entre a Universidade Gregoriana, a arquidiocese de Munique e a Universidade de Ulm. Em 2014, depois de uma fase piloto a funcionar na Alemanha, o centro mudou-se para Roma, onde hoje tem as suas instalações. “A missão do Centro para a Proteção de Menores é, basicamente, chamar a atenção para o problema do abuso de menores. É através da promoção do conhecimento e das competências sobre o assunto que podemos prevenir o abuso. O trabalho que fazemos é baseado na ligação muito importante entre a formação e a prevenção”, resume a investigadora, que coordena uma rede internacional de instituições da Igreja que implementam um processo formativo desenvolvido pela equipa do CCP.
Além do curso e-learning que é implementado por instituições católicas em cerca de 30 países e que já formou cerca de duas mil pessoas — entre padres, religiosos, professores de escolas católicas e vários leigos –, o Centro leciona também um curso de um semestre sobre proteção de menores e prepara-se para lançar, a partir de outubro deste ano, um mestrado sobre o mesmo assunto, lecionado numa parceria entre as várias faculdades da Universidade Gregoriana. Os alunos destes cursos são padres, religiosos e leigos enviados por dioceses e congregações de todo o mundo para Roma para depois trabalharem como responsáveis pelo acompanhamento de jovens e crianças em várias instituições da Igreja.
“O objetivo [da formação no CCP] é dar o melhor entendimento possível sobre o que é o abuso de menores e sobre como se relacionar com as vítimas de modo a lidar com o problema. Por exemplo, o programa e-learming inclui unidades curriculares dedicadas à definição de abuso de menores. O que é o abuso sexual de menores, o que é o trauma, quais são as consequências provocadas pelo abuso, quais são os sinais e indicadores, como reconhecer uma vítima, como reconhecer um possível perpetrador, qual o acompanhamento clínico para as vítimas, qual o tratamento para os perpetradores, como se relacionar com as comunidades”, explica Alessandra Campo, sublinhando a importância de acompanhar de perto a comunidade onde o crime aconteceu, seja ela uma família, uma paróquia, uma escola ou uma congregação religiosa. “O abuso não afeta apenas a vítima — que é a maior vítima. Também há vítimas secundárias, que são todas as pessoas que são afetadas por este facto horrível.”
Nas formações, em Roma ou nas instituições parceiras de todo o mundo os alunos aprendem ainda sobre assuntos de natureza teológica e direito canónico. Mas, sobretudo, aprendem “sobre os erros que foram cometidos no passado na forma de lidar com o problema e sobre como evitar repetir os mesmos erros”, sublinha a especialista italiana, destacando ainda a necessidade de refletir sobre “as consequências espirituais dos abusos” e sobre o cuidado pastoral a dar às vítimas. Segundo explica ao Observador o reitor da Universidade Gregoriana, o jesuíta português Nuno Gonçalves, o centro “nasceu como resposta da universidade à problemática dos abusos, sobretudo na área da prevenção”, e destaca que os alunos são enviados para Roma por dioceses ou institutos que “perceberam que é um tema importante e que precisam de ter pessoas preparadas para o enfrentar”.
Aliás, a última revisão da Ratio Fundamentalis, o documento da Igreja que especifica como deve ser feita a formação dos padres católicos, já inclui um apelo concreto sobre este assunto. “Deverá ser dada máxima atenção ao tema da da proteção dos menores e dos adultos vulneráveis, vigiando com atenção para que aqueles que pedem a admissão a um Seminário ou a uma casa de formação, ou que já apresentaram o pedido para receber as Ordens, não tenham, por qualquer modo, incorrido em delitos ou situações problemáticas neste âmbito”, lê-se no documento, onde se acrescenta: “No programa, tanto da formação inicial como daquela permanente, devem ser incluídas lições específicas, seminários ou cursos sobre a proteção dos menores” e também sobre “o tráfico de menores, o trabalho infantil e os abusos sexuais sobre menores ou sobre os adultos vulneráveis”, em colaboração com a Pontifícia Comissão para a Proteção dos Menores.
Em Portugal também se estão a dar passos neste sentido. Segundo explica ao Observador o padre Alexandre Palma, membro da equipa formadora do Seminário dos Olivais (Patriarcado de Lisboa) e professor na Universidade Católica de Lisboa, nos seminários em Portugal fala-se da sexualidade e de como viver o celibato, e essas questões têm sido “cada vez mais consolidadas” ao longo dos últimos anos. Além disso, descreve o sacerdote, os seminaristas têm acompanhamento na área da psicologia no que toca às questões da sua maturidade afetiva, seja no processo de entrada no seminário seja durante o percurso formativo. “Mas não se pode cair na obsessão de achar que esse é o único tema de que se deve falar”, adverte Alexandre Palma, sublinhando que aquela é uma dimensão que faz parte da formação dos seminaristas e que está integrada neste processo formativo.
Também do lado das congregações religiosas tem havido uma evolução no processo formativo. De acordo com o padre jesuíta José Maria Brito, as casas de formação religiosas “não podem ser uma espécie de colégio interno em que os formandos andam a brincar às escondidas com os formadores, tem de haver um clima de transparência”. “Nós, na nossa própria formação, temos momentos em que falamos da afetividade, do celibato. Alguns desses momentos até são organizados em conjunto com outras ordens religiosas. Não se pode dizer que falar do celibato e da afetividade seja um assunto tabu na vida religiosa”, garante o padre. “Temos é de perceber se temos de ser mais exigentes na forma de falar sobre isto, e se calhar aí temos de fazer uma avaliação séria.”
Sistema integrado em Portugal
À resposta da hierarquia e das entidades formativas, há iniciativas implementadas a nível local em instituições da Igreja em todo o mundo. Um dos exemplos mais significativos pode encontrar-se em Portugal: o Sistema de Proteção e Cuidado (SPC) de menores e adultos vulneráveis implementado pela província portuguesa da Companhia de Jesus em 30 instituições, entre escolas, colégios, centros universitários e centros sociais. “É um sistema implementado nas 30 obras da Companhia de Jesus que trabalham com crianças e adultos vulneráveis que permite avaliar práticas e identificar outras situações de falta de bom trato que ocorram fora das nossas instituições”, explica ao Observador o padre Filipe Martins, responsável nacional pelo sistema integrado.
O projeto nasceu em 2017 enquadrado na resposta global da Igreja e, especificamente, da Companhia de Jesus, ao problema dos abusos sexuais praticado por membros do clero, e deverá ficar totalmente concluído em outubro deste ano. Segundo explica Filipe Martins, a origem do projeto está numa carta enviada pelo superior geral dos jesuítas em 2015 a todas as províncias da Companhia, pedindo que cada comunidade estabeleça normas de boas práticas para todos os que trabalham com menores. “Em 2017, o provincial [líder dos jesuítas em Portugal, padre José Frazão Correia] decidiu que tínhamos um ano para criar um sistema em todas as nossas obras que trabalhem com menores ou com adultos vulneráveis”, recorda o sacerdote.
A primeira fase consistiu na criação de um manual de boas práticas, preparado por uma equipa multidisciplinar composta por especialistas em várias áreas, não necessariamente ligados à Igreja ou à Companhia de Jesus. Depois, os quase mil funcionários — religiosos ou não — das instituições dos jesuítas que trabalham com públicos vulneráveis receberam formação intensiva sobre os conteúdos incluídos no manual, nomeadamente sobre como identificar os sinais de maus tratos, qual o código de conduta na relação com os menores e qual o procedimento a seguir em caso de suspeitas de abusos nas instituições portuguesas. “Mas a ideia é que isto não seja apenas uma formação que se faz uma vez e um manual que fica na gaveta”, adverte o padre Filipe Martins. Por isso, cada uma destas instituições nomeou um delegado que trabalha em proximidade com o delegado nacional para garantir uma resposta adequada a cada situação.
Uma das principais ferramentas implementadas nas instituições é um esquema que orienta a atuação dos membros da Companhia de Jesus e dos funcionários quando se deparam com uma denúncia ou uma suspeita de abusos sobre um menor ou uma pessoa vulnerável. De acordo com o esquema distribuído, o delegado da instituição deve ser o primeiro a iniciar o tratamento da denúncia e, caso esta configure a possibilidade de crime, a primeira ação é a comunicação imediata às autoridades civis. Só depois se dá seguimento ao procedimento interno. O sistema inclui ainda a possibilidade de envio de denúncias anónimas, através de um formulário disponível no site da Companhia de Jesus e que, em breve, vai estar também disponível nas páginas de Internet de todas as instituições que participam no programa. Até hoje, afirma o padre Filipe Martins, nenhuma queixa foi ainda enviada através do sistema.
É suficiente?
Mesmo assim, ainda há muito por fazer, quer a nível da hierarquia da Igreja quer a nível local, “para fazer as pessoas, até na sociedade civil, saberem e perceberem verdadeiramente quão grande o problema é e quão terríveis as consequências são para as vítimas”, afirma Alessandra Campo. “Temos sempre de nos lembrar que o abuso sexual é também abuso de poder. Por isso, a questão é se há algo, em determinado contexto, que promova o exercício do abuso de poder que possa levar ao abuso sexual”, destaca a coordenadora do Centro de Proteção de Menores da Gregoriana.
“Além disso, claro, há ainda muito que pode ser feito para evitar que os abusos sejam ocultados, muito que pode ser feito para que as vítimas sintam que podem falar, que podem revelar os abusos, que são bem vindas e protegidas como tal pela Igreja. Mas o facto de cada vez haver mais vítimas que falam sobre isso provavelmente significa que agora há condições diferentes para isso acontecer. O facto de o Papa Francisco se encontrar com vítimas tão frequentemente é um sinal importante”, acrescenta Alessandra Campo.
Para o padre José Maria Brito, é preciso “fazer um caminho de aprofundamento, quer ao nível de melhorar ainda mais a formação afetiva dos padres quer, sobretudo, no modo como se percebe a autoridade na Igreja, que é como um serviço e não como um poder ou um prestígio”. “A ideia de que o padre é um mediador entre Deus e os homens não pode servir para dar ao padre, ao bispo ou ao cardeal um estatuto de exceção, como se isso o revestisse de uma espécie de aura. O padre tem um lugar na Igreja, de serviço, de pastor. Tem de o fazer numa posição de serviço”, afirma o sacerdote, sublinhando que se a Igreja opta por uma via de protecionismo dos bispos, “em que a imagem de um bispo não admite que ele possa ser julgado”, então “estamos a encravar os processos”.
“Todos os que cometeram têm de ser responsabilizados judicialmente e também dentro da Igreja. Não haverá forma de nos regenerarmos se não mostrarmos que independentemente da posição que a pessoa ocupa na Igreja ela pode ser responsabilizada. Temos de assumir que fomos e somos Igreja pecadora, que cometeu um pecado grave”, defende José Maria Brito. Nesse campo, a evolução nos últimos anos é assinalável, concorda Alessandra Campo: “O simples facto de estarmos a falar sobre isto agora é muito importante e é novidade. Isto significa que muito já foi feito, que o abuso de menores já não é um tabu, que podemos falar sobre o abuso, e isso é um passo importante”.
Ao mesmo tempo, é preciso continuar a melhorar a formação dos padres e dos religiosos nos seminários e nas casas de formação da Igreja, sobretudo ao nível das relações humanas. “A afetividade de um padre, de um religioso ou de uma religiosa tem características particulares que tem de ser atendidas”, defende o padre José Maria Brito.
“Se vai haver mais escândalos? É difícil prever e dizer. O que posso dizer é que agora há mais meios para reagir melhor aos escândalos. A Comissão Pontifícia e o Centro para a Proteção de Menores são apenas dois exemplos”, argumenta Alessandra Campo. Por isso, defende a académica italiana, “o ponto não é perguntar se vai haver mais escândalos. O ponto é: estamos prontos para reagir e para assegurar a salvaguarda das crianças? Estamos a trabalhar na direção certa para permitir que reagimos de forma apropriada e a agir para que seja cada vez mais difícil que os abusos aconteçam?”, questiona Alessandra Campo. Para José Maria Brito, a resposta é claramente positiva, mas depende mais do empenho de cada comunidade católica do que da hierarquia do Vaticano: “O que é importante é que se criem formas de, caso existam mais casos, as pessoas os poderem contar. Que as pessoas sintam que há um clima na Igreja em que não correm riscos em contar a sua história. Temos de criar um clima de segurança afetiva e isso não se resolve a nível macro. Têm de ser as estruturas locais.”