É possível que o armagedão nuclear que tem pesado no horizonte de grande parte do globo terrestre seja colocado em stand by enquanto Donald Trump e Kim Jong-un saboreiam cada um o seu hamburguer. Pelo menos foi assim que o Presidente dos EUA imaginou um hipotético encontro com o Líder Supremo da Coreia do Norte, num discurso na campanha para as eleições presidenciais de 2016.
“Devíamos comer um hamburguer na mesa de conferências”, disse Donald Trump, em junho de 2016. “O que é que importa? Eu falo com quem tiver de ser? Quem sabe, há uma possibilidade de 10% ou 20% de eu conseguir convencê-lo a deixar o raio dos mísseis nucleares. Quem é que haveria de querer que ele tenha mísseis nucleares? E há uma possibilidade. Eu só vou arranjar um bom negócio para nós todos.”
Se puxarmos a fita para a frente, em fast-forward, vemos que os últimos tempos não foram fáceis. Desde que Donald Trump tomou posse, em janeiro de 2017, a Coreia do Norte já fez 17 testes com mísseis balísticos, três dos quais invadiram o espaço aéreo do Japão, onde literalmente soaram os alertas. Enquanto isso, o presidente dos EUA prometeu “fogo e fúria como o mundo nunca viu” à Coreia do Norte, caso continuasse na sua investida nuclear. A promessa não impediu a Coreia do Norte de continuar a expandir o seu programa nuclear, nem Kim Jong-un de parar as suas ameaças — tudo isto apesar da onda de sanções decretadas a Pyongyang, inclusive de um aliado de longa data, a China. A ameaça chegou ao ponto de, no estado norte-americano do Havai, ter sido decretado um alerta real para um ataque nuclear que, afinal, não era tão real quanto isso.
A escalada de tensões parecia imparável. Porém, num curto espaço de tempo, três acontecimentos demonstraram que, com ou sem hamburguers, existe vontade de impedir um armagedão nuclear. O primeiro, o mais simbólico de todos, foram os Jogos Olímpicos de Inverno de PyeongChang, na Coreia do Sul, onde a irmão do ditador norte-coreano representou o seu país e nos quais as duas Coreias se juntaram para competir como uma só equipa no hóquei de gelo feminino. O segundo, deu-se após a visita de uma delegação sul-coreana a Pyongyang, mandatada pelo presidente Moon Jae-in, que conseguiu chegar a acordo para fazer uma conferência entre os dois países, numa zona desmilitarizada no lado norte-coreano da fronteira.
O terceiro, e talvez o mais significativo, deu-se esta quinta-feira à noite. Uma delegação sul-coreana deslocou-se à Casa Branca para entregar em mãos um convite de Kim Jong-un dirigido a Donald Trump. Pela primeira vez, em maio e num local ainda a definir, o líder de um dos países mais fechados do mundo quer falar com o presidente dos EUA. Ou, consoante os mimos que eles trocaram entre si, o “Homem Foguete” pediu para falar com o “Velho Senil”.
Mas será que se vão entender? Ao Observador, vários especialistas fazem uma análise algo cética dos desenvolvimentos que possam resultar de uma cimeira entre os EUA e a Coreia do Norte — e dividem-se na atribuição dos louros por este feito histórico. No entanto, são unânimes a apontar a singularidade deste momento.
Donald Trump e Kim Jong-un vão reunir-se em maio para cimeira nuclear
A cimeira vai acontecer por causa de Trump ou apesar dele?
Donald Trump prometeu e, pelos vistos, vai cumprir. Durante a campanha eleitoral, prometeu que iria sentar-se à mesa com Kim Jong-un e fazer uso daquilo que diz ser uma das suas principais qualidades: a arte de negociar. Agora, o líder supremo da Coreia do Norte pediu a Donald Trump que se sentassem para falar. Mas será que este desfecho se dá por causa do presidente dos EUA — e da sua política agressiva contra a Coreia do Norte, do ponto de vista militar e económico — ou apesar dele?
“É uma mistura dos dois fatores”, responde ao Observador Chad O’Carroll, diretor da consultora Korea Risk Group e especialista na Coreia do Norte. “Mas o facto de a administração de Trump ter feito as ameaças militares mais claras e ter imposto o programa de sanções mais restritivo das últimas décadas à Coreia do Norte certamente teve um papel neste desenvolvimento.”
Chad O’Carroll, que vive na capital da Coreia do Sul, Seul, explica que as sanções económicas contra a Coreia do Norte têm tido efeitos negativos na economia do país, cuja economia depende em grande parte de exportações. Para isso, contribuiu o afastamento da China, maior aliado da Coreia do Norte, de Pyongyang — um feito consumado no Conselho de Segurança das Nações Unidas, já durante a administração de Donald Trump.
Nas sanções que resultaram daquele órgão das Nações Unidas, consta a proibição do envio de trabalhadores norte-coreanos para o estrangeiro, uma prática relativamente comum nalguns países do Médio Oriente e também de África — inclusive em Angola e em Moçambique, para onde Pyongyang enviava trabalhadores para construir monumentos revolucionários e estátuas de líderes políticos. Também a exportação de carvão, outra fonte de riqueza, foi bloqueada. “Tudo isto sentiu-se de forma evidente na economia norte-coreana”, sublinha Chad O’Carroll.
Também Scott Snyder, diretor do programa de políticas EUA-Coreia do Council on Foreign Relations, admite algum mérito ao Presidente Donald Trump. “É evidente que ele tem algum mérito, por toda a pressão que exerceu à Coreia do Norte. A prova disso é que Kim Jong-un, ao dar este passo, fá-lo para tentar manter a situação controlada na parte que lhe toca”, diz ao Observador.
Benjamin R. Young, investigador da George Washington University e especialista na História das relações internacionais norte-coreanas, refere que Donald Trump é uma clara razão de preocupação para a Coreia do Norte. “Trump é um líder pouco ortodoxo e isso preocupa Pyongyang”, diz ao Observador. “Acho que eles não têm um entendimento muito desenvolvido de como o atual Presidente dos EUA funciona. Querem testá-lo num cenário de negociações.”
Para já, a estratégia da Casa Branca deverá passar pelas mesmas linhas que orientam a política norte-americana na Coreia do Norte desde que Donald Trump tomou posse. No Twitter, já depois de o acordo ter sido negociado, Donald Trump sublinhou: “Estão a ser feitos grandes progressos, mas as sanções vão continuar até haver um acordo”.
Kim Jong Un talked about denuclearization with the South Korean Representatives, not just a freeze. Also, no missile testing by North Korea during this period of time. Great progress being made but sanctions will remain until an agreement is reached. Meeting being planned!
— Donald J. Trump (@realDonaldTrump) March 9, 2018
Quase 12 horas depois, a secretária de imprensa da Casa Branca, Sara Huckabee Sanders, tornou a insistir na ideia reforçada pelo Presidente. “Esperamos que seja feita a desnuclearização da Coreia do Norte. Ate lá, vai continuar a haver todas as sanções e pressão máxima”, sublinhou.
.@POTUS greatly appreciates the nice words of the S. Korean delegation & Pres Moon. He will accept the invitation to meet w/ Kim Jong Un at a place & time to be determined. We look forward to the denuclearization of NK. In the meantime all sanctions & maximum pressure must remain
— Kayleigh McEnany 45 Archived (@PressSec45) March 9, 2018
Porquê agora, Kim?
O discurso que resulta da Casa Branca procura reforçar a ideia de que a estratégia de Donald Trump resultou, obrigando o ditador norte-coreano a curvar-se perante a pressão militar e económica. Porém, os especialistas ouvidos pelo Observador lançam algumas dúvidas em relação à assunção de que Kim Jong-un parte fragilizado para a cimeira de maio.
“Kim Jong-un parte de uma posição de força”, diz ao Observador Benjamin R. Young. “Ele quase não tem oposição interna e ainda agora finalizou o seu arsenal nuclear. Enquanto isso, a Coreia do Sul tem uma administração esquerdista que parece querer serenar Pyongyang.”
Também Chad O’Carroll sublinha que, após 17 testes balísticos em pouco mais de um ano, a Coreia do Norte não está tão fraca quanto possa parecer. “Tudo isto prova que todos os testes balísticos da Coreia do Norte compensaram”, refere. “Dizer ao mundo que tinha capacidade para atacar a partir do seu país, podendo até chegar à região continental dos EUA, foi uma maneira de Pyongyang se colocar numa posição de credibilidade, que lhe faltava até aqui.”
O discurso de Ano Novo de Kim Jong-un apontou em duas direções: a glorificação do programa nuclear, que deu como concluído e pronto a usar; a vontade de falar com a Coreia do Sul, embora a tenha descrito como “fascista”.
“Os EUA continentais estão ao alcance de um ataque nuclear nosso e o botão nuclear está sempre em cima da minha secretária. Os EUA têm de perceber de forma clara que isto não é apenas uma ameaça, mas sim uma realidade”, disse Kim Jong-un, numa declaração que levou Donald Trump a dizer que tinha um botão maior — e que, ao contrário do norte-coreano, o dele funciona.
Além disso, Kim Jong-un defendeu que fosse lançada uma “ofensiva revolucionária generalizada para atingir uma nova vitória em todas as frentes”. A “rampa de lançamento” dessa ofensiva, sublinhou, seriam as “forças nucleares da República Popular e Democrática da Coreia”.
A ambição nuclear de Kim Jong-un parece ser um elemento indissociável da sua liderança. No seu discurso de Ano Novo, de 30 minutos, Kim Jong-un referiu a palavra “nuclear” 24 vezes. Perante tudo isto, será possível que, a partir de maio, o Líder Supremo da Coreia do Norte admita abrir mão dos seus mísseis?
Essa é a esperança (pelo menos anunciada) da Casa Branca — tanto Donald Trump como Sarah Huckabee Sanders insistiram no termo “desnuclearização”. E também da delegação sul-coreana que esteve reunida com Kim Jong-un no início da semana e esta quinta-feira com Donald Trump. Chun Eui-Yong, conselheiro do Presidente da Coreia do Sul para a Segurança Nacional, também utilizou aquela palavra quando anunciou à imprensa a cimeira de maio.
“Na nossa reunião, disse ao presidente Trump que o líder da Coreia do Norte, Kim Jong-un, disse estar comprometido com a desnuclearização e que expressou a sua vontade de se encontrar com o Presidente Trump assim que possível”, disse o responsável sul-coreano.
Porém, essa possibilidade é encarada como improvável pelos analistas. “A Coreia do Norte não vai aceder a uma desnuclearização, o mais certo é que reduzam a longo prazo os testes de mísseis balísticos, talvez aceitem suspender o seu programa nuclear para fazer novas armas. Até podem admitir inspeções feitas pelo estrangeiro. Mas não é de todo provável que admitam desfazer-se das suas armas, isso não está no horizonte”, diz Chad O’Carroll.
“Se Kim Jong-un tinha o seu programa nuclear num estado tão avançado, porque é que haveria de parar agora? Ele pode suspendê-lo, mas isso não significa que vai acabar com ele”, acrescenta Scott Snyder. “Não é provável que os EUA consigam Kim Jong-un a desistir do programa nuclear, nos atuais termos.”
Os EUA estão preparados para este desafio?
A administração de Donald Trump tem merecido críticas à esquerda e à direita pelo seu desinvestimento na diplomacia. O plano orçamental do Presidente para 2019 prevê uma redução de 29% de fundos destinados ao Departamento de Estado, equivalente ao Ministério dos Negócios Estrangeiros.
E os cortes que já se fazem sentir refletem-se numa redução do corpo diplomático norte-americano, um pouco por todo o mundo. Um dos lugares afetados por essa realidade é a Coreia do Sul, onde os EUA deixaram de ter um embaixador desde a véspera da tomada de posse de Donald Trump.
Poderá esta realidade afetar a maneira como Donald Trump se vai sentar perante Kim Jong-un, e a preparação demonstrada para falar com o líder norte-coreano? Chad O’Corrall acredita que esta questão não será um impedimento para Washington D.C. conseguir o que quer de Pyongyang. “Isto já não depende do Departamento de Estado, isto depende do presidente [Trump] e das pessoas à sua volta. Eles estão preparados para isto.” Também Benjamin R. Young refere que isso “não preocupa muito”, sublinhando que a Casa Branca vai “recorrer a especialistas e a pessoas de think-tanks que conhecem bem a Coreia do Norte”.
Já Scott Snyder demonstra algumas reticências. “A capacidade diplomática dos EUA é hoje menor do que antes. Mas ainda há pessoas capazes de falar com Trump sobre este tema. É preciso é que ele esteja disposto a ouvi-las”, diz. E conclui: “É bom que as oiça. Porque se tudo isto falhar, passamos ao que Donald Trump chamou de ‘Fase 2’. E isso é algo que não convém a ninguém.”