Leia outra vez o título desta entrevista: “Prevejo um terramoto político nas próximas europeias”. É isto que Marisa Matias faz (por duas vezes) quando fala do quadro que poderá sair das eleições para o Parlamento Europeu, uma previsão fundamentada na “profunda crise” em que mergulharam os grupos políticos fundadores do projeto europeu.
Agora repare-se na resposta da mesma Marisa Matias quando se pergunta se a “geringonça” é para continuar: “Não faço futurologia”. É isto que diz (também por duas vezes), para se escapar a uma tomada de posição sobre os cenários pós-legislativas em Portugal. “Se houver vontade para isso, há sempre espaço para diálogo.” E mais não diz.
No Observador também não fazemos futurologia, mas se fizéssemos, arriscaríamos dizer que a eurodeputada do Bloco de Esquerda, que está terminar o segundo mandato, é a mais provável cabeça de lista do partido para as eleições de Maio de 2019. “Não ponho essa hipótese de fora, mas essa escolha não será minha.” Certo é que há hoje “mais muros para derrubar”, numa Europa onde o espaço vazio “tem vindo a ser ocupado por uma narrativa muito racista, muito xenófoba, muito nacionalista.”
O discurso de Marisa Matias não engana ninguém sobre qual é o seu lado da barricada, mas a dirigente do Bloco, que já foi descrita como alguém que “come a vida às dentadas”, orgulha-se de ter amigos em todos os quadrantes políticos e não esquece o gesto de Carlos Coelho, o eurodeputado do PSD, que lhe telefonou no dia em que recebeu a notícia da morte de João Semedo: “Hoje não podes jantar sozinha”.
Mesmo antes de começarmos a gravar no terraço do Observador, outra previsão: “Eu sou muito desastrada. Tenho a certeza de que vou deixar cair o copo ao chão.” (Não deixou.)
[Veja no vídeo o best of da entrevista a Marisa Matias no terraço do Observador]
Escolheu um vinho branco, seco. É a bebida do seu verão?
Eu basicamente consumo duas bebidas, sobretudo água. E vinho. E gosto mais de vinho tinto do que de branco, mas no verão um branco fresco, sequinho, acho que vai bem com tudo.
Não é adepta de cocktails, de gins, das bebidas da moda.
Não, sou uma chata nessas coisas, não tenho graça nenhuma. É mesmo vinho, nas várias vertentes. Só não gosto é de vinhos doces.
E também é o que consome em Bruxelas?
Sim, sim, ao jantar, por exemplo, quando estou a cozinhar.
Em Bruxelas, aliás, onde o verão chegou mais cedo que a Lisboa.
As alterações climáticas são mesmo uma realidade. Tem estado verão em Bruxelas e com temperaturas inacreditáveis e em Estrasburgo também, há meses. E aquela sensação estranha de estar em Bruxelas e não se conseguir respirar com o calor e depois aterrar em Lisboa ou aterrar no Porto e ter a sensação de frio, sinceramente este ano está tudo trocado.
Tem estado estranho, literalmente, na questão do clima. E também com aquilo que se passa na política, em Bruxelas, na Europa e pelo resto do mundo. Acha que isso vai ter reflexo nas próximas eleições europeias?
Acho que vamos ter uma espécie de terramoto político porque temos estado numa crise permanente das instituições políticas, dos partidos políticos, das próprias políticas, ao longo das últimas décadas e, em particular, nos últimos anos.
Mas o que é que explica este estado de coisas?
Eu acho que começou a ser mais notada a enorme discrepância que havia entre as maiorias políticas que representavam as maiorias sociais. Não havia coincidência. E isso criou muito descontentamento, muitos espaços vazios, muito afastamento entre os cidadãos e as instituições e os partidos políticos. E isso favoreceu a criação de uma espécie de nova verdade, que é a solução está em ser anti-partidos para estar do lado das pessoas. Eu acho que não há nenhuma contradição entre uma coisa e outra, nem acho que os partidos exclusivamente sejam capazes de dar conta da política. Mas criou-se este mito de que só com movimentos dos cidadãos e não com partidos, é que se poderia chegar a alguma solução. E nós estamos a ver o resultado disso, um pouco por toda a Europa.
Partidos como o Bloco de Esquerda e outros na esquerda europeia assumidamente mais radical, não deixaram também esse flanco aberto?
Todos deixaram, sem exceção. Houve muitos espaços na política que foram deixados vazios e esses espaços estão a ser ocupados mais substancialmente, e infelizmente, por movimentos populistas e de extrema-direita. Mais do que por outros. Há uma crise do sistema político, uma crise do sistema partidário e, obviamente, se há tanto espaço vazio e ele é ocupado. E tem sido ocupado por uma narrativa muito racista, muito xenófoba, muito nacionalista. Todas as esferas da política e todos os partidos sem exceção têm uma responsabilidade nisso e não souberam ocupar esses espaços por via da democracia, da inclusão, da igualdade, da integração e não do afastamento, da exclusão, do ódio e do medo.
Está a falar daquilo que se tem passado em relação ao problema da imigração?
E não só. Mas no que diz respeito à imigração, tem sido uma das maiores tragédias políticas que temos vivido nos últimos anos. Baseia-se sistematicamente em mentiras e numa retórica de medo com dados factuais que são imprensa falsa, literalmente. Há, de facto, uma ideia instalada de que a imigração em si mesma é uma coisa má. Nós somos um país de imigração e as migrações fazem parte da história da humanidade.
Mas essa ideia de que fala, tem aceitação até entre alguns portugueses que emigraram para países como França ou Estados Unidos. Como é que explica isso?
Porque, de facto, essa narrativa de pôr uns contra os outros funcionou também em algumas comunidades migrantes, dizendo, “não é de vocês que estamos a falar, vocês são os migrantes bons, nós estamos a falar dos outros que são os maus”. E normalmente baseia-se em questões de diferença cultural ou de diferença religiosa. Não é por incapacidade de absorção, até porque há uma necessidade profunda de imigração no espaço da União Europeia.
Mas se há essa necessidade, como é que o discurso anti-imigração tem feito caminho entre os europeus?
Repare: nós tivemos uma crise enorme, tivemos desigualdades a aumentar, o desemprego a aumentar, a pobreza a aumentar. E as pessoas a perceberem cada vez mais que a política não lhes estava a dar resposta, a política representativa, os governos, não lhes estavam a dar resposta. Nestas circunstâncias, tentar ter um discurso de integração com a apresentação de alternativas para combater o desemprego e as desigualdades, que seja inclusivo e que possa ser uma forma de tratar toda a gente por igual – e eu penso que devemos ter e mantê-lo e lutar por ele – demora muito tempo, porque é preciso explicar como é que fazemos isto. Os partidos de extrema-direita, pelo contrário, o que fazem é muito simples: a culpa do desemprego é porque há imigrantes e eles roubam o vosso posto de trabalho.
Mas a verdade é que esse discurso chega lá. E portanto, a minha pergunta é como é que outras forças que pensam de forma diferente conseguem chegar também a esses eleitores.
Com uma defesa intransigente da democracia e da igualdade, da justiça e dos valores que são valores comuns, e por alguma coisa se dizem valores universais.
Defesa intransigente quer dizer o quê?
Defesa intransigente é trazer mais democracia, é torná-la mais intensa, é fazer com que as pessoas possam participar mais, naquilo que é a construção de um coletivo e não de um contra o outro. Eu também vi muitos exemplos contrários aqueles de que estávamos a falar. Por exemplo: quando começaram a chegar à UE as primeiras vagas de refugiados – que são muito poucos em comparação com o que os países vizinhos dos países em conflito recebem, mas que foi transformado como se fosse uma espécie de invasão – , eu estava no festival das migrações no Luxemburgo, um país muito pequeno mas com mais nacionalidades do que os Estados Unidos. Eles fazem um festival das migrações espantoso e, nesse ano, percebi que a comunidade que se estava a organizar mais para acolher refugiados, neste caso sírios, era a comunidade portuguesa. Eles também imigrantes, embora numa situação diferente, imigrantes económicos sobretudo, que acolheram refugiados que estavam a fugir da guerra e fizeram tudo o que estava ao seu alcance para poder acolhê-los da melhor forma. Portanto, não é tudo linear, e o que temos de perceber é que esses espaços de solidariedade e da igualdade ainda não foram destruídos.
Há notícias que dão conta dos planos de Steve Bannon, ex-homem de Trump, para se instalar em Bruxelas, precisamente para ajudar a dinamizar e a intensificar os movimentos da extrema-direita europeia.
É muito frustrante o que está a acontecer, mas torna-se mais desafiante. Sobretudo para quem está na política não por uma questão de satisfação pessoal, mas para tentar mudar alguma coisa que seja mais coletiva e que signifique mais para mais pessoas. É quando há mais lutas para fazer e mais debates para fazer e mais muros para derrubar.
Portanto as próximas europeias vão ser um desafio maior.
Tal como eu disse, eu prevejo uma espécie de terramoto político nas eleições europeias de 2019, porque as famílias políticas ditas convencionais e as que foram fundadoras do próprio projeto da União Europeia estão em profunda crise e terão uma redução muito drástica daquilo a que estão habituadas em termos de representação no Parlamento Europeu. Seja a social democracia, seja a democracia cristã – se pensarmos na social democracia, com a exceção de Portugal, não haverá, provavelmente, nenhum outro país onde a social democracia se mantenha com o mesmo número de eleitos que tem até agora. Em muitos dos países desaparece, como em França, por exemplo. O Reino Unido já não está e, portanto, não haverá deputados trabalhistas. Em Itália, onde também se movem para outros espaços políticos mais próximos dos liberais. Na Grécia também praticamente deixam de existir, nos países nórdicos, nos países de leste a mesma coisa. E vai haver também reduções em relação à democracia cristã.
Significa que as forças que são frontalmente contra o projeto europeu, vão ocupar em maior número o coração desse projeto?
É o que se prevê, se houver uma correspondência com aquilo que têm sido as eleições nacionais. E o que nós temos visto são forças de extrema direita e movimentos populistas a ocupar esses espaços. Veremos qual vai ser a reconfiguração política no quadro das instituições europeias e do Parlamento Europeu.
Admite que possa acontecer uma situação semi-absurda, em que forças da extrema esquerda europeia e da extrema direita europeia acabem a votar ao lado uns dos outros?
Serão sempre razões muito diferentes para a crítica em relação ao projeto europeu, as que vêm da esquerda e as que vêm da extrema direita são sempre muito diferentes. Não coincidem em nada.
Mas o voto pode ser o mesmo.
Em algum momento pode haver um voto igual, mas que não tem nada a ver com o tipo de política. Aliás, eu creio que outra das razões pelas quais a extrema-direita ganhou tanto espaço foi porque a direita, de certa maneira, quis apropriar-se do discurso da extrema direita no sentido de evitar que eles crescessem. Não só não evitaram, como lhes deram mais gás. Aliás basta olharmos para a última decisão do Conselho Europeu em relação à questão das migrações, dos centros de detenção, para percebermos que não é preciso a extrema direita estar ainda em maioria no espaço europeu para já ter medidas que são profundamente racistas e xenófobas e muito influenciadas por essa linha política.
Então e neste contexto, a Marisa Matias está com vontade de um novo mandato, se o Bloco de Esquerda a escolher como candidata?
Ainda não decidimos. Eu acho, e acredito mesmo, que as pessoas não se podem eternizar nas mesmas coisas.
Mas também não está lá propriamente há 30 anos.
Certo, e o Parlamento Europeu é uma máquina muito pesada e muito difícil de perceber e de manobrar. Os tempos reais de exercício das tarefas e para conhecermos os cantos à casa não são os mesmos de outras escalas. É mais complexo, exige trabalho fora e dentro da União Europeia. Tenho dossiers do Médio Oriente, das Honduras, para além do trabalho nas Comissões Parlamentares. Ainda assim acho que deve haver sempre um espaço de renovação. Não sei ainda, sinceramente, qual é esse limite.
Mas tem vontade, tem trabalho em mãos.
Não ponho essa hipótese de fora, mas essa escolha não será minha. Eu acho que há sempre trabalho para fazer e isso não quer dizer que se fique a fazê-lo sempre e que não venham outras pessoas. Tem de haver mais pessoas disponíveis para fazer estas coisas.
Mas a Marisa também está.
Também estarei, se for essa a escolha do Bloco de Esquerda.
Quando falávamos da representação das forças políticas tradicionais, entre os partidos socialistas não haverá muitos casos como António Costa. Não só é Primeiro-Ministro, como é Primeiro-Ministro de um governo que tem o apoio de forças que durante muito tempo foram antagonistas, como continua com sondagens muito favoráveis. Isso dá-lhe algum estatuto especial na Europa?
Nos primeiros meses do governo do Partido Socialista, e com esta atual conjuntura de maioria parlamentar com o apoio de outras forças de esquerda, houve uma tentativa de esconder o que se estava a passar. Não se falava de Portugal no Parlamento Europeu, nas instituições europeias. O que se falava era para dizer mal ou para ameaçar a solução que se tinha encontrado em Portugal. E nós assistimos até a alguns momentos bem dramáticos dessa história nomeadamente quando se tentou aplicar sanções a Portugal por incumprimento de défice excessivo, com valores de défice inferiores a França, por exemplo. Quem viveu esses momentos na política, no Parlamento Europeu, não se esqueceu da frase “mas a França é a França”.
Era desconfiança?
Não tinha a ver com o valor do défice, era uma espécie de vacinação. Fizeram essa vacina com a Grécia, tentaram fazer o mesmo com Portugal.
Mas entretanto a atitude já não é bem essa.
Quando começou a haver resultados do ponto de vista económico, a política de recuperação de rendimentos – e não a de austeridade – que trouxe mais estabilidade ao país, isso transformou Portugal num exemplo. Então passámos de um momento político em que havia que esconder o que se estava a passar em Portugal, não fosse isso dar ideias, para um exagero em sentido contrário, uma espécie de farol como se fosse tudo perfeito. E não é.
Não é tudo perfeito, falta o quê para que esta solução funcione sobre rodas e não num mecanismo de “geringonça”?
Nós estamos a falar de uma solução, que trouxe estabilidade ao país, mas que tem uma relação de forças muito díspar. Obviamente que há muitas coisas que fazem falta e esta solução prova que não há nenhuma contradição entre convergência e identidade porque os partidos continuam a manter a sua identidade, os seus programas políticos…
Alguns dirigentes do PS parecem pensar o contrário. Dizem que, precisamente em termos de Europa, é preciso convergências que não há agora.
Conseguiu-se provar ao longo destes anos que se pode ter posições muito diferentes relativamente à União Europeia e isso não implicar que não possa haver um acordo ou vários acordos.
Mas não admite que PS e Bloco de Esquerda, por exemplo, coincidam em termos de Europa…
Eu acho difícil, neste momento, coincidirmos. A não ser que o PS mude de posição.
O Bloco não vai mudar?
Se a União Europeia estivesse a fazer um caminho mais positivo e de integração, podia ser que houvesse espaço para mudar. Mas o que se está a fazer é abandonar a política de coesão, quando temos mais dificuldades do que alguma vez tivemos, do ponto de vista macro-económico e do ponto de vista social. Está a abandonar-se uma política de investimento público, que é uma espécie de tabu. Não se fez nenhuma correção, das que eram necessárias, à política da moeda única. Continuamos com um conjunto de problemas que são estruturantes e que estão a ser agravados. Está a desvalorizar-se a coesão económica, social, territorial. Está a trocar-se investimento público por segurança, financiamento do negócio do armamento e a política do medo. E portanto, é muito difícil mudar de posição quando o caminho que está a ser seguido é agravar aquilo que eram já dimensões negativas do projeto europeu.
Esqueçamos então a questão europeia, acredita que é possível renovar uma solução deste género depois das próximas legislativas?
Eu não faço futurologia, o que eu acho é que esta solução trouxe estabilidade ao país. Acho que as pessoas percebem isso. Mesmo com as diferenças políticas e programáticas que existem entre os diferentes partidos.
Mas foi uma solução circunstancial, que teve a ver com uma série de fatores que não se repetem, ou acha que se fez aqui história e que essa história tem condições para continuar?
Como lhe disse, não faço futurologia. Acho que há sempre espaço para diálogo. Sempre. Se houver vontade para isso, há sempre espaço para diálogo. Agora, havia um contexto e havia condições muito específicas. Era preciso mesmo libertar este país do governo da troika, que queria ir para além da troika.
Mas se é isso, está feito.
Está feita uma parte, mas não foi feito tudo o que era preciso fazer. Nós continuamos com um investimento público muito baixo. Há desentendimentos – e não será por acaso – entre as forças da maioria parlamentar, em áreas como o Serviço Nacional de Saúde, que está sub-financiado, que está a rebentar pelas costuras e que é uma das pedras basilares da democracia portuguesa, se não mesmo um dos melhores resultados do processo democrático. Há que mantê-lo, acarinhá-lo e não destrui-lo. E não tentar compatibilizar o que é incompatível. Não podemos ter um bom SNS e ao mesmo tempo estar a pagar tanto a serviços privados. Há é que garantir que temos pessoas qualificadas, bem pagas, um serviço financiado. E pessoas atendidas de forma universal e gratuita. E depois há outras áreas, na educação pública, na cultura, há muitas áreas onde há trabalho a fazer.
Qual é que foi a sua maior desilusão política? A Grécia, o Syriza e Alex Tsipras, sendo que se empenhou muito naquela vitória?
Foram uma desilusão, como é óbvio. Não deixo de ser amiga dele por causa disso. Mas foi uma desilusão muito grande.
E diz-lhe isso, quando fala com ele?
Sim, digo. Porque há coisas que não entendo. Eu percebo todas as dificuldades, percebo todas as limitações, percebo as ameaças, percebo a posição difícil em que estiveram e estão, e aliás, enquanto conversamos estamos no meio de uma tragédia muito grande dos incêndios, com mortos, e nada lhes correu bem. Mas há opções políticas que eu tenho muita dificuldade em perceber e que não custavam dinheiro ao orçamento. E isso, é uma desilusão.
Mas não é a sua maior desilusão.
Não.
Qual é então?
(pausa) Há tanta coisa por cumprir…
Isso é mais frustração.
Sim é frustração, mas eu também não sei muito bem fazer a linha divisória. Cada frustração acaba por ser uma desilusão. Eu sei que é uma coisa muito recente e que não é comparável com tanta coisa que ainda está por fazer, muito provavelmente. Mas eu gostava que o João (Semedo) tivesse assistido a uma votação da morte digna no Parlamento. E que não houvesse cinco votos de diferença que não a permitiram. É frustração completa e total. Também me frustra imenso o que ainda está por fazer em setores fundamentais como o da saúde, o emprego e as questões laborais. Continuamos a ter uma política de salários baixos e uma política de precariedade como regra em muitos setores da sociedade e a não permitir que as pessoas possam ter futuro e sonhar com futuro. Isso é uma frustração permanente.
Há um amigo seu que a descreveu em tempos como uma pessoa que “come a vida às dentadas”. O que é que isto quer dizer?
Gosto muito daquilo que faço, das várias coisas que já fiz. E nada disso é incompatível com tentarmos ser felizes e gostarmos de viver e gostarmos de estar com pessoas. Talvez seja isso. E achar mesmo que a vida tem de ser completa. Não acredito que tenhamos outra e, portanto, temos de aproveitar esta. E talvez porque também não sei parar. Acho que tinha a ver com isso.
Tem amigos de outros quadrantes políticos?
Sim, tenho amigos de vários quadrantes políticos e tentamos não falar de política.
Porquê? A conversa podia azedar?
Falamos de política no contexto diário, no contexto de trabalho. Mas…
Mas a amizade é outra coisa.
É outra coisa. Amizade é estar sozinha no gabinete, no dia em que se recebe a notícia da morte do João Semedo e perder-se o chão e ter de se continuar a fazer coisas, ao mesmo tempo que se tenta arranjar um voo para Portugal e ter um colega, de um partido político diametralmente oposto, o Carlos Coelho do PSD, a telefonar e a dizer “hoje não podes jantar sozinha”.
E nesse dia não jantou sozinha.
Não jantei sozinha nesse dia.
Já disse algumas vezes que o seu único medo é perder pessoas. E já perdeu duas figuras que lhe eram próximas, Miguel Portas e agora João Semedo. Como é que se supera essas perdas num meio tão exigente como o da política?
São dois casos de pessoas que nos deixaram muito para fazer. E também se supera, de certa forma, tentando dar continuidade a muitos dos projetos que tentaram começar e que não terminaram. No caso do João Semedo, as duas últimas lutas não as ganhou ainda, nomeadamente a defesa do SNS e o direito a morrer com dignidade. O João lutou muito por elas até ao fim da sua vida, mas não assistiu a nenhuma dessas vitórias. Acho que tentar ganhá-las é uma maneira de superar essas perdas que são sempre muito difíceis.
Ficou supreendida com a quantidade de homenagens e testemunhos positivos que se ouviram sobre ele quando João Semedo morreu?
Quem conhecia o João nunca poderia ficar surpreendido com esse mar de elogios, de tantos quadrantes políticos diferentes. Porque o João também gostava muito de viver, se havia característica dele é que não era minimamente sectário. E era muito verdadeiro na relação com as pessoas, quando estava bem-disposto e quando estava mal-disposto. E isso sente-se. Há pessoas de quem é fácil gostar e eu creio que o João era uma dessas pessoas. E depois tinha uma consistência inabalável, estudava muito, não dizia coisas por dizer, era discreto, mas era forte. Até porque foi um defensor de causas fraturantes. Embora eu ache que a maioria social, em Portugal, defenda o Serviço Nacional de Saúde e o direito a morrer com dignidade, que a maioria política não defendeu.
Chegou a cozinhar alguma vez para ele? Sei que é um dos seus hobbies.
É bem possível, é bem possível.
Qual é sua especialidade? O que é que lhe sai melhor?
Sai-me quase tudo bem! O que eu gosto mesmo de fazer é feijoada, rancho, favas com chouriço, ervilhas com ovos escalfados.
Portanto, coisinhas leves para o verão.
Super leves. Sopa de couves com carne, leves, sim. E já fiz várias dessas coisas para pessoas de outros países, para perceberem o que é a cozinha portuguesa.
Faz mostras gastronómicas?
Faço, quando tenho tempo ou quando alguma coisa correu muito mal, e preciso de espairecer, faço quantidades enormes de comida e depois chamo pessoas para comerem, porque não sou capaz de dar conta de tudo.
E como é que corre?
Corre bem, e as pessoas vão para casa com tupperwares e tudo. Faço com os meus amigos ou colegas, o que a minha mãe fazia comigo.
Para terminar, com quem é que não iria passar férias?
Não iria passar férias com Viktor Orban seguramente, nem com Assad, nem com Trump. Também acho que não me convidariam, não teriam seguramente grande consideração por mim. Não passaria com ninguém do grupo de Visegrado, ou com Erdogan. E Matteo Salvini também não me chama muito a atenção.
Nota: Esta entrevista foi gravada dias antes de rebentar a polémica Ricardo Robles