Já são três os erros no despacho de indiciação do processo Influencer que o Ministério Público (MP) apresentou no Tribunal Central de Instrução Criminal. Sendo que um deles — o mais recentemente conhecido —, sobre uma reunião na sede do PS no Largo do Rato, entre o consultor Lacerda Machado, o administrador da Start Campus Afonso Salema e o ex-chefe de gabinete de António Costa Vítor Escária, que afinal aconteceu no gabinete deste último na casa oficial do primeiro-ministro, até foi validado pelo juiz de instrução Nuno Dias Costa. Três erros que têm causado impacto na opinião pública e levam a interrogações sobre a solidez dos indícios do caso que levou à queda do governo.
Afinal, que erros são esses e qual o seu impacto nos inquéritos criminais que são titulados por três procuradores no Departamento Central de Investigação e Ação Penal e por um procurador-geral adjunto no Supremo Tribunal de Justiça?
1Qual foi o primeiro erro do Ministério Público?
Um dos artigos do despacho de indiciação que o MP apresentou no Tribunal Central de Instrução Criminal, e que o juiz Nuno Dias Costa deu como “fortemente indiciado”, prende-se com os contactos que Diogo Lacerda Machado contratualizou com o principal acionista do data center de Sines, Afonso Salema, para “exercer influência e pressão sobre membros do Governo” e outros titulares de cargos políticos e públicos.
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O primeiro erro prende-se com o artigo 87, no qual se descreve uma conversa que ocorreu a 31 de agosto de 2022 entre Salema, CEO da Start Campus, e Lacerda Machado sobre códigos de atividade económica para os data centers — revelado pela CNN Portugal.
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Salema sugeriu a Lacerda Machado que este abordasse o Governo sobre a necessidade de suscitar esse tema junto da Comissão Europeia, tendo o ex-melhor amigo de António Costa respondido o seguinte:
Tá bem. Eu vou decifrar essa, se é economia ou finanças. Vou começar por aí e depois logo lembro como tomamos a iniciativa de suscitar e sugerir. Se for finanças, eu falo logo com o Medina ou com o António Mendes, que é o Secretário de Estado. Se for economia, arranjo maneira depois de chegar ao próprio António Costa.”
Na audição da escuta é claro que Lacerda Machado diz “António Costa Silva” e não António Costa. Ou seja, está referir-se ao ministro da Economia e não ao primeiro-ministro. Mas na transcrição faltou o “Silva” e assim a confusão instalou-se, quando a escuta foi conhecida publicamente, com todos a considerarem que estava em causa o primeiro-ministro.
Qual a importância deste erro?
Manuel Magalhães e Silva, advogado de Lacerda Machado (e que também já defendeu o primeiro-ministro), afirmou à comunicação social que “foi a defesa” quem detetou o erro e que “Diogo Lacerda Machado deu sinal ao Ministério Público que havia esse lapso e o Ministério Público reconheceu.”
Ao que o Observador apurou junto da investigação, trata-se de uma gralha na transcrição da escuta para o despacho de indiciação, visto que os investigadores tinham a noção clara de que, na escuta, Lacerda Machado estava a referir-se ao ministro da Economia, António Costa Silva.
Até porque Lacerda Machado costumava referir-se ao primeiro-ministro, pela proximidade entre ambos (foi padrinho do seu casamento e amigo de longa data), apenas como “António”, como a investigação do MP e da PSP detetou ao longo do tempo em que escutou Lacerda Machado, e não como “António Costa”. Isso é possível verificar numa outra escuta, que surge no artigo 186 do despacho de indiciação, onde Lacerda se refere apenas ao primeiro nome do primeiro-ministro.
Certo é que o juiz de instrução criminal acabou por não considerar o conteúdo desse artigo 87, onde consta o lapso dos nomes, como estando fortemente indiciado.
2 A portaria erradamente citada
A 9 de setembro de 2022, o arguido Rui Oliveira Neves, advogado sócio da Morais Leitão e administrador da Start Campus, solicitou a alguém ainda não identificado a preparação de um requerimento e de “um projeto de despacho para o secretário de Estado da Energia a autorizar que a concessão da REN Gás permita também a exploração de cabos de fibra para ligação a data center e coisas do género”.
Tal rascunho de portaria deveria ser entregue ao então secretário de Estado João Galamba — o que terá alegadamente acontecido duas semanas depois.
A portaria em questão seria alegadamente, segundo cita o Ministério Público no despacho de indiciação, a Portaria n.º 248/2022 de 29 de setembro que, por sua vez, alterava vários artigos da Portaria n.º 96/2004 de 23 de janeiro.
De acordo com o jornal Expresso, que detetou o erro, a Portaria nº 248/2022 nada tem a ver com o projeto da Start Campus nem com o projeto de uso dos terrenos dos gasodutos da REN para a passagem de cabos de fibra. O que está em causa nesta portaria referida pelo Ministério Público no despacho de indiciação é a uma autorização para que nos terrenos de antigas centrais termoelétricas e hidroelétricas pudessem vir a ser desenvolvidos projetos diferentes das originais, e com fontes de energia diferentes das tradicionais.
O erro da Portaria é relevante?
Sim, até porque não se percebe muito bem o que aconteceu.
Ou os três procuradores que investigam este caso enganaram-se na numeração da portaria em causa. Ou então verificou-se um erro grosseiro.
Certo é que, uma vez mais, o juiz de instrução não deu este facto referido pelo Ministério Público no despacho de indiciação como fortemente indiciado.
3A reunião que não foi na sede do PS mas sim na residência oficial do PM
O último erro do despacho de indiciação conhecido prende-se com o local de uma reunião relevante entre Afonso Salema, Diogo Lacerda Machado e Vítor Escária.
No artigo n.º 187 do despacho de indiciação, e tal como o Observador noticiou, estava apontada uma reunião no dia 22 de dezembro de 2022, às 17 horas, na sede nacional do Partido Socialista, no Largo do Rato, em Lisboa. Diogo Lacerda Machado terá contactado com Vítor Escária e combinado com este um encontro com Afonso Salema.
De acordo com o Expresso, o ex-chefe de gabinete do primeiro-ministro terá negado, no âmbito do interrogatório liderado pelo juiz Nuno Dias Costa no último sábado, que alguma vez se tenha encontrado com Lacerda Machado e Salema na sede nacional do PS.
O Expresso cita fontes presentes no interrogatório que garantem que os procuradores admitiram o erro e justificaram o mesmo com o facto de um dos intervenientes na conversa, alvo de escuta, ter dito que estava a passar pelo Largo do Rato.
E a reunião entre Lacerda, Escária e Salema ocorreu?
Sim, mas noutro local: a residência oficial do primeiro-ministro.
Vítor Escária, o ex-chefe de gabinete de António Costa, confirmou ao juiz de instrução Nuno Dias Costa que tinha tido quatro encontros com Lacerda e Salema na residência oficial de São Bento sobre o investimento de 3,5 mil milhões de euros da Start Campus no data center em Sines.
Uma dessas reuniões foi precisamente a de 22 de dezembro de 2022.
Estes erros colocam em causa a prova indiciária reunida contra os arguidos?
É verdade que os erros que constam do artigo 87 (a escuta mal transcrita) e os artigos 314 a 327 (portaria erradamente citada) não foram considerados como fortemente indiciados pelo juiz de instrução criminal titular dos autos. Mas os erros não têm todos o mesmo peso.
Por exemplo, o erro relacionado com a escuta mal transcrita é praticamente irrelevante no que diz respeito à prova indiciária recolhida.
Já o erro relacionado com a portaria é claramente importante, porque o alegado favorecimento do ministro João Galamba poderá não se ter sido concretizado.
No que diz respeito ao erro sobre o local da reunião de 22 de dezembro de 2022 ocorrida entre Diogo Lacerda Machado, Vítor Escária e Afonso Salema o facto de a mesma ter ocorrido na residência oficial do primeiro-ministro é relevante e reforça, na perspetiva dos investigadores, os indícios recolhidos.
Aliás, quando saiu da reunião, cerca de 60 minutos depois, Salema informou Rui Oliveira Neves, advogado na Morais Leitão e seu colega na administração da Start Campus, de que a conversa tinha sido com “o Escária. O Costa queria aparecer mas como chegámos atrasados, não conseguiu juntar-se”.
Os investigadores suspeitam que “o Costa” será o primeiro-ministro António Costa.
Na reunião terão sido acordadas, segundo o Ministério Público, diversas ações entre Vítor Escária e Afonso Salema para alegadamente pressionar diversas entidades públicas, nomeadamente a Câmara de Sines.
Certo é que neste caso o juiz Nuno Dias Costa, mesmo depois de conhecido o erro no interrogatório de Vítor Escária e de este ter sido, segundo o Expresso, reconhecido pelos procuradores, deu como fortemente indiciado os factos do artigo 187 do despacho de indiciação em que o Ministério Público descrevia o local errado da reunião.