Começou esta quinta-feira e deverá prolongar-se por alguns meses. No primeiro dia do julgamento da Operação Vórtex, só o empresário Francisco Pessegueiro prestou declarações. Durante as cerca de quatro horas de sessão — entre atrasos, pausas e hora de almoço –, Pessegueiro assumiu que estabeleceu um “acordo de cavalheiros” com os antigos presidentes da Câmara de Espinho Joaquim Pinto Moreira (PSD) e Miguel Reis (PS) para a aprovação de projetos imobiliários pelos serviços da autarquia.
Pelo meio, o empresário ainda disse que quem trabalhava consigo nos projetos imobiliários — o arquiteto João Rodrigues e o promotor imobiliário Paulo Malafaia — estava a par do dinheiro alegadamente pedido pelos presidentes da Câmara Municipal de Espinho. Sobre a entrega do dinheiro, Pessegueiro recusou qualquer teoria montada pelo Ministério Público, e sobre os encontros com Pinto Moreira para entregar 50 mil euros em notas disse não ter “memória” de que tal tivesse acontecido.
Como prometido, o empresário assumiu quase tudo — mas as quatro horas que passou a prestar depoimento não foram suficientes e, esta sexta-feira, Francisco Pessegueiro deverá voltar a ser chamado para responder a mais perguntas sobre a investigação aos alegados negócios entre os autarcas (e funcionários da câmara) e um grupo de empresários de Espinho.
Esta quinta-feira, porém, ainda não tinha arrancado a primeira sessão do julgamento da Operação Vórtex, marcada para as 9h30, e à porta do Tribunal de Espinho já Miguel Reis, ex-autarca de Espinho e cuja demissão aconteceu logo no dia seguinte à sua detenção pela Polícia Judiciária, desmentia Francisco Pessegueiro.
O empresário garante que foram os autarcas que exigiram dinheiro em troca da aprovação dos projetos imobiliários: “Nunca pedi dinheiro. Seria estranho pedir dinheiro apenas a um empreiteiro [a Francisco Pessegueiro]”, antecipava o socialista. “Foram relatadas coisas [na acusação do Ministério Público] que nunca aconteceram, que estão muito longe da verdade”, acrescentou às primeiras horas da manhã.
Segundo a acusação do Ministério Público, os oito arguidos individuais deste processo — há ainda cinco empresas acusadas — estiveram todos envolvidos na aprovação de projetos imobiliários na zona de Espinho. Mas, esta quinta-feira, Francisco Pessegueiro procurou distanciar-se de vários dos envolvidos — pelos menos, daqueles de quem falou durante esta primeira sessão. No entanto, admitiu a “generalidade” dos factos da acusação.
“Foi pedido, mas não foi entregue.” O que assumiu em relação a Pinto Moreira?
Francisco Pessegueiro assumiu muitos dos pontos da acusação — ainda não foram vistos em sede de julgamento todos os pontos –, mas encontrou uma justificação diferente daquela que é dada pelo Ministério Público para enquadrar alguns dos factos que constam no despacho.
A propósito dos três projetos relacionados com a construção de um lar, de um hotel e do ‘Nascente 32’ para um hospital, Francisco Pessegueiro explicou em tribunal que “tomou um café” com Joaquim Pinto Moreira, quando este era presidente da Câmara Municipal de Espinho, em 2020. Lembra-se de que “era inverno, estava frio e estava sol” e que, por isso, ficou na esplanada de um café (que não fica, aliás, muito longe do tribunal onde esta quinta-feira decorreu a primeira sessão de julgamento). Disse lembrar-se ainda do tempo que fazia e do espaço onde se encontraram, mas garantiu não ter memória do dia em que o tal encontro aconteceu.
Terá sido nessa altura que, segundo Francisco Pessegueiro, Pinto Moreira lhe terá pedido dinheiro em troca da aprovação dos projetos: 25 mil euros pelo lar e 25 mil euros pelo ’32 Nascente’. Em relação ao hotel, não terá ficado definido um valor. “E aceitou pagar?”, questionou o coletivo de juízes. “Estava hierarquicamente inferior e precisava da câmara. A probabilidade de os meus projetos entrarem numa gaveta e não saírem mais era muito elevada”, respondeu. “Estava num beco sem saída.” Francisco Pessegueiro admitiu que aceitou pagar, mas garantiu que o dinheiro nunca foi entregue. E acrescentou: “A senhora procuradora, na altura [do inquérito], perguntou-me: ‘Porque é que não fez queixa?’ Ia ter problemas, ia ter um processo-crime por difamação”, disse ainda.
“Nunca foi entregue ao dr Pinto Moreira o que quer que seja”, sublinhou. Mas o coletivo insistiu:
– Nunca foi entregue dinheiro?
– Não.
– Mas foi uma coisa que foi combinada?
– Foi pedido, mas não foi entregue.
Outra das questões exploradas foi precisamente o processo do projeto imobiliário Urban 32 — cujo terreno foi comprado por Pessegueiro por 400 mil euros e vendido mais tarde, já com projeto aprovado, por um milhão e 850 mil euros, com a ajuda de Paulo Malafaia, que terá atuado como intermediário no negócio. Terá sido com este projeto, acredita o Ministério Público, que Pinto Moreira recebeu 50 mil euros. De acordo com a acusação, Francisco Pessegueiro terá, no dia 27 de novembro de 2020, estado com Joaquim Pinto Moreira — quando este ainda era presidente da Câmara Municipal de Espinho — no café Pastelo, em São Félix da Matinha (freguesia do concelho de Vila Nova de Gaia). Nesse encontro, o empreiteiro terá dado 50 mil euros a Pinto Moreira, mas, em tribunal, Francisco Pessegueiro negou ter dado qualquer dinheiro a Pinto Moreira.
E sobre Paulo Malafaia e João Rodrigues?
Na sessão da manhã, o empreiteiro ainda teve tempo para falar sobre a sua relação com Paulo Malafaia. E quis criar um distanciamento do promotor imobiliário, que esteve consigo na altura das aprovações e serviu como intermediário na venda de um terreno com projeto aprovado no valor um milhão e 850 mil euros. Disse, por isso, ao coletivo que não sabia bem quais os restantes projetos de Paulo Malafaia, nem quais os procedimentos que escolhia — ou se eram legítimos ou não.
Para demonstrar que pouco conhecimento tinha sobre os negócios de Paulo Malafaia, Francisco Pessegueiro disse ao coletivo de juízes, presidido pelo juiz Carlos Azevedo: “Quando lhe perguntava alguma coisa, respondia ‘Eu não te vou responder, porque se te responder vou mentir-te’”.
Mas foi mais longe: em relação ao projeto imobiliário chamado 32 Poente, quando questionado pelo coletivo de juízes sobre o seu interesse naquele negócio, Francisco Pessegueiro atirou os interesses para Paulo Malafaia e puxou para si a vertente da beneficência. “Isto foi, sinceramente, numa vertente de deixar marca na cidade — o nome do meu pai — e, de alguma forma, as pessoas não nos verem só como um grupo de economia, mas também de benfeitoria”. O juiz Carlos Azevedo quis então esclarecer e a bola ficou do lado de Paulo Malafaia:
– Quem era o verdadeiro interessado [na aprovação do projeto 32 Poente]? Era o Paulo Malafaia?
– Isso.
– Mas era ele que controlava os procedimentos?
– Isso.
– Ele pagava-lhe?
– Isso.
Mas não foi só sobre Paulo Malafaia que Pessegueiro falou. O empresário começou por dizer que tinha uma relação com o arquiteto João Rodrigues que ia para lá do trabalho e que era já de amizade, mas logo a seguir admitiu que foi João Rodrigues quem lhe apresentou o promotor imobiliário Paulo Malafaia. “Conheci o Paulo Malafaia na sala de reuniões do arquiteto João [Rodrigues]. Foi apresentado como um amigo/cliente do João. Ele tinha um terreno na Foz, no Porto, e estava interessado em vendê-lo. Mas a construtora [de Pessegueiro] não tinha capacidade financeira, porque estava em insolvência técnica. Em 2019, 2020.”
“Se se parece com um pato, nada como um pato e grasna como um pato, então provavelmente é um pato”
Já durante a tarde, num dos momentos em que prestava depoimento, Francisco Pessegueiro garantiu que João Rodrigues estava a par do esquema: saberia, disse o empresário, que os autarcas tinham pedido dinheiro pela aprovação dos projetos. Nessa altura, a defesa de João Rodrigues quis saber se era mesmo verdadeira a amizade entre o arquiteto e Francisco Pessegueiro. Durante o inquérito, Pessegueiro disse que João Rodrigues não sabia que Joaquim Pinto Moreira tinha pedido dinheiro para despachar a aprovação dos projetos. E esta quinta-feira acabou por dizer que “foi das primeiras pessoas” com quem falou.
À partida, essas comunicações estarão nas escutas recolhidas durante a investigação e na declaração inicial de Francisco Pessegueiro e, por isso, o juiz Carlos Azevedo cortou a palavra à defesa de João Rodrigues, uma vez que não foi reproduzida em sede de julgamento essa prova que consta no processo, não podendo ser ainda objeto de análise. Nesse momento, o juiz aproveitou para relacionar as escutas com o que Francisco Pessegueiro tem dito em tribunal: “Se se parece com um pato, nada como um pato e grasna como um pato, então provavelmente é um pato.”
Aliás, continuando ainda com as escutas e transcrições de mensagens, a procuradora do Ministério Público quis saber o significado de algumas mensagens enviadas por Francisco Pessegueiro ao arquiteto João Rodrigues, quando este lhe enviou um vídeo de Joaquim Pinto Moreira e que para o MP torna evidente que estavam a falar de um eventual pagamento a Pinto Moreira e que, também por isso, o arquiteto estaria a par da situação.
“Queres dizer mais gordo”, “tipo conde” e “$$$ faz milagres”, lê-se nas mensagens enviadas por Francisco Pessegueiro. Mas a justificação foi logo dada, na tentativa de afastar qualquer suspeita: “Eu não entreguei rigorosamente nada ao dr. Pinto Moreira. Foi, salvo erro, no dia em que ele apareceu de pera. Foi um bocadinho, desculpe, motivo de chacota entre mim e o João”.
Francisco Pessegueiro volta a ser ouvido esta sexta-feira, a partir das 9h30, no Tribunal de Espinho.