Entrou na redação de capacete na mão e blusão motard, como é sua imagem de marca ao fim do dia nos corredores parlamentares. O líder parlamentar comunista só não acelera em duas rodas nos caminhos políticos e trava logo quando se trata da posição comunista no próximo Orçamento: “Essa decisão dependerá da resposta global aos problemas colocados”. E lê com atenção um desenho que diz que se está a preparar no Parlamento, em que o PS parece já contar com um ovo no dito cujo, para recuperar uma expressão de Jerónimo de Sousa. “O ovo poderá ser o PSD”, atirou João Oliveira no programa Vichyssoise, na rádio Observador. E aí olha para o retrovisor para apontar ao Orçamento Suplementar onde diz que “o PS fez a opção de ter a viabilização do Orçamento Suplementar assegurada pelo PSD e pelo BE. E fez essa opção consciente do que estava a fazer”. Neste poderá também ser assim, diz o comunista que aguarda por respostas para que a negociação com o Governo possa avançar para a especialidade do Orçamento.
O facto de já acabar as frases de António Costa no Parlamento é sinal de que é mesmo amor para a vida toda?
Não, é mesmo sinal de uma grande capacidade do primeiro-ministro de aproveitar os apartes e nisso confesso que sou dos mais incontidos na Assembleia da República. Acho que é só isso que revela, verdadeiramente.
Mas já quase lhe lê os pensamentos…
A circunstância em que apreciamos o debate entre terceiros permite uma apreciação mais objetiva daquilo que vai na cabeça de cada um. E sobretudo quando se trata de fazer essa caracterização, tenho uma dificuldade grande em conter-me nos apartes e o primeiro-ministro tem uma grande capacidade de aproveitar os apartes alheios.
Então não quer dizer que ainda têm muito caminho para fazerem juntos, como disse o primeiro-ministro nessa altura.
Depende do sentido do caminho, depende de para onde o caminho vai.
É para a esquerda ou não? Não tem sido?
Na nossa perspetiva o caminho tem de ser esse, nas opções do PS já tenho mais dúvidas que seja verdadeiramente esse o caminho que veem à frente.
Neste Orçamento está a ser?
Diria que estamos muito longe de poder dizer isso. Aliás, a perceção que fizemos do Orçamento confirma que não é propriamente essa a perspetiva das opções em relação ao que o PS está a querer fazer. Há um aspeto muito revelador disso que é: apontar para um défice de 4,3% na situação em que está o país hoje é muito pior do que para um superavit orçamental em 2020.
Disse recentemente que é na especialidade que se tem de clarificar o sim ou sopas em relação às propostas. Foi um lapso freudiano ou o PCP tudo fará para que o OE chegue à fase de especialidade?
Não, quer dizer que nos preparámos para todas as eventualidades.
Mas só chegará à especialidade se o aprovarem na generalidade…
Não há nenhum grupo parlamentar na Assembleia da República que possa começar a tratar da especialidade do Orçamento a partir do momento em que há a votação na generalidade. A possibilidade de haver especialidade tem de começar a ser trabalhada antes.
E já têm trabalhado para a especialidade?
A partir do momento em que começamos a discutir questões como o suplemento de insalubridade, penosidade e risco, não estamos a discutir uma coisa no éter. Estamos a discutir uma proposta em concreto. A mesma coisa sobre a proposta relativa aos trabalhadores dos serviços essenciais. Temos uma noção exata do que queremos, temos redações em concreto que achamos que devem ser aprovadas. A partir do momento em que fazemos essa discussão nessa base, estamos a discutir já redações em concreto. Na verdade, o que se trata nesta apreciação na generalidade é até onde vai a resposta que o Orçamento pretende dar. A proposta que o Governo apresentou na Assembleia da República é muito limitada e muito parcial em relação à consideração das questões a tratar. Em relação às apresentadas pelo PCP, o número das que são carreadas para a proposta de lei é muito parcial e limitado e a solução dada fica muito aquém.
Se o Orçamento ficar como está o PCP viabiliza o Orçamento?
Já dissemos que essa decisão dependerá da resposta global aos problemas colocados. Isso implica questões que passam diretamente pelo Orçamento e outras indiretamente. A questão dos CTT é absolutamente decisiva, temos o contrato de concessão de serviço público postal a terminar no final do ano, a questão tem de estar resolvida a 1 de janeiro, pode ter alguma ligação indireta ao OE, mas é uma questão que tem de ter resposta por parte do Governo. O mesmo para as questões relacionadas com o aumento geral dos salários, que envolvem a questão relativa ao salário mínimo nacional, em relação aos salários da administração pública, em relação a medidas que é preciso tomar para que o aumento dos salários seja mais generalizado. Terá uma ligação indireta pelo Orçamento do Estado, passa por outras decisões, mas é relevante para perceber qual a resposta global que o Governo está a procurar dar aos problemas do país.
Quando Luís Marques Mendes diz que o PCP ia viabilizar o Orçamento precipitou-se?
Já ouvi desse comentador as duas coisas e portanto não me parece que haja propriamente uma base muito sólida na apreciação que vai sendo feita nos domingos à noite em relação à posição do PCP que permita sequer um comentário a sério sobre isso.
O Bloco diz que precisa de garantias escritas para deixar passar o Orçamento nesta fase da generalidade. Do que é que o PCP precisa?
Identificámos um conjunto muito alargado de questões. Mas a bola está do lado do Governo. A responsabilidade está do lado do Governo. A decisão sobre a forma como o Orçamento pode ser aprovado e com quem o PS quer aprovar o Orçamento é da exclusiva responsabilidade do PS e do Governo. Vai ter de ser o PS a fazer a opção sobre quem quer ao seu lado a viabilizar o OE. Se quer que o Orçamento seja viabilizado pelo PCP tem de encontrar uma resposta global aos problemas do país. No estado em que está hoje o país não podemos fazer esta discussão em torno de quatro ou cinco questões que deem respostas a quatro ou cinco problemas. A realidade do país e dos problemas que temos pela frente são muitíssimo agravados. Essa tem de ser uma resposta coincidente com a realidade dos problemas.
Teme que o PS caia na tentação da direita e se vire para o PSD se a esquerda falhar?
As declarações de intenções que resultam das intervenções do PS nos últimos dias indiciam a forte possibilidade de se repetir aquilo que aconteceu com o Orçamento Suplementar, com a desconsideração que o PS quis fazer de um conjunto de questões que eram absolutamente essenciais porque tinham o conforto da viabilização do Orçamento pelo PSD. Que acabou por ser feita pelo PSD e o BE. A partir da abstenção que fizemos da proposta de Orçamento Suplementar e o que o Governo admitiu inscrever nessa proposta, admitimos a viabilização com uma abstenção nossa na generalidade com a perspetiva de que, na especialidade, fosse afastado o que é negativo e fossem consideradas respostas que na proposta inicial não tinham sido.
E, como não foi assim, o PCP votou contra.
E o PS fez a opção de ter a viabilização do Orçamento Suplementar assegurada pelo PSD e pelo BE. E fez essa opção consciente do que estava a fazer.
É por essa experiência recente que o PCP teve que pergunto se nesta altura precisam de mais garantias para que esse processo não se repita.
Não sei qual o efeito que a viabilização do Suplementar pelo PSD e o BE a meio deste ano possa ter tido no posicionamento de cada um dos partidos. Agora o que sei é que o posicionamento do PCP continua a ser exatamente o mesmo. Os critérios que utilizamos para apreciar a intervir em qualquer Orçamento são exatamente os mesmos. Em relação ao PCP, será de quem o PS pode esperar menos incoerências e alterações de posições. A discussão que temos feito com o Governo em relação ao OE são muito claras. Identificámos um conjunto de problemas reais, dos serviços públicos de forma muito alargada e tratámos de discutir soluções para cada um. É verdade que não é um conjunto pequeno de soluções. Aliás, a nota pública de 46 matérias não esgotam o conjunto de matérias que fomos abordando.
Mas estava à espera que o Governo atendesse a 46 medidas?
Tratámos de discutir soluções e propostas concretas para cada um. Haverá matérias em que houve aproximação e outros nem sequer constam do texto do OE. Verificamos que houve uma escolha do Governo sobre matérias a considerar e mesmo nessas matérias entendeu fazer um caminho muito limitado e parcial. Nem sequer tive a ilusão de que o PS apresentasse um Orçamento do PCP.
Na quinta-feira, em entrevista ao Observador, Duarte Cordeiro sugeriu que o Bloco de Esquerda era matematicamente dispensável. É caso para dizer que o Governo já conta com o ovo no dito cujo? Ou seja, que já conta com o voto do PCP (mais PEV e PAN)?
Não, o ovo poderá ser o PSD. Essa afirmação do secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares pode corresponder exatamente à aritmética do orçamento suplementar. Eu diria que a grande preocupação nisso é em que estado é que fica o país.
Acha que está a haver uma negociação paralela do Governo do PSD? O Presidente da República avisou várias vezes que o PSD devia ser o plano ‘b’ do Governo caso tudo falhasse à esquerda. É isso que está a acontecer?
Não faço ideia, e não quero fazer especulações. Isso é uma coisa que o Governo tem de clarificar. Mas vimos no Orçamento Suplementar que, de facto, o Bloco de Esquerda teria sido dispensável, ainda que se tenha colocado na posição de viabilizar o Orçamento Suplementar. Mas preocupa-me que esse tipo de considerações seja feita porque isso corresponde a uma aritmética negativa, de coligação negativa, que aconteceu no Orçamento Suplementar. E isso é prejudicial para o país.
A posição que o BE venha a tomar pode condicionar a do PCP?
O que é que aconteceu no Orçamento Suplementar? Se quer prova cabal de que nós tomamos as nossas decisões em função dos nossos critérios tem exemplo do Suplementar: o Bloco de Esquerda viabilizou e nós não.
Mas aqui é ao contrário. O BE parece disposto a não viabilizar o orçamento, e nesse caso o PCP seria fundamental. Daí a pergunta: isto não condiciona o PCP? Se o PCP ficasse ao lado do Governo não seria sempre responsabilizado pelo rumo da governação?
Deixe-me fazer um esforço de elegância na resposta que lhe posso dar: não comento as intenções dos outros partidos, muito menos quando se trata daquilo que parece das intenções dos outros partidos.
Parece, não são?
A pergunta estava feita na lógica de ‘parece que o Bloco pretende chumbar o orçamento’. Eu não faço considerações sobre o posicionamento dos outros, muito menos sobre aquilo que os outros parecem.
Então falemos das vossas opções. Se o PCP ajudar a chumbar este Orçamento, o país muito provavelmente teria de ser governado em duodécimos. Estão dispostos a assumir essa responsabilidade, porque também a terão?
É ao contrário. Esses problemas podem ser muito relevantes e prementes mas colocam-se ao Governo. É o Governo que tem a chave na mão.
Mas também se coloca a um partido que esteve com o Governo nos últimos cinco anos na aprovação do Orçamento. O PCP não tem responsabilidades nisto?
Em cada um dos cinco orçamentos anteriores, não houve uma circunstância diferente daquela em que estamos hoje. Nós nunca demos por garantida a aprovação de nenhum orçamento. Se em cada um dos orçamentos tomámos a decisão de votar como votamos, fizemo-lo em função da apreciação que em cada um dos orçamentos foi possível fazer em relação à resposta que davam aos problemas que eram identificados em cada momento. Nos últimos 6 anos votámos das três formas possíveis: a favor, abstenção e voto contra. O posicionamento do PCP é exatamente o mesmo. Se há alguma expectativa que o PCP se deixe condicionar ou comover com ameaças ou chantagens de crises políticas criadas artificialmente, venham elas do PR ou do primeiro-ministro, isso é um erro de apreciação redondo. É um erro de amador.
Ainda sobre a questão dos duodécimos, na visão do PCP é um drama o país entrar no próximo ano sem orçamento?
Se o Governo fizer essa opção em vez de fazer a opção em alternativa, que é de encontrar um orçamento que dê resposta aos problemas do país, julgo que o Governo faz mal. O Governo tem todas as condições para fazer um orçamento que dê resposta aos problemas do país. Tem todas as condições e nem sequer lhe faltam recursos: vem aí a ‘bazuca’ europeia que pode dar suporte a um conjunto de respostas que o país necessita. Para que é que o Governo havia de fazer a opção de criar uma crise política se tem essas condições todas? Não vejo motivo para isso. Tenho dificuldade em compreender.
O PCP pode chegar às autárquicas do próximo ano como o partido que viabiliza orçamentos do PS ou tem de cortar já esse mal pela raiz?
Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Não se mistura.
Não há esse cálculo no PCP?
Nós não tomamos decisões em relação a questões tão relevantes como o Orçamento do Estado em função dos calendários eleitorais. Aliás, até temos presidenciais antes das autárquicas. Misturar as duas coisas seria um erro.
A questão é que as autárquicas são umas eleições mais sensíveis para o PCP e o próprio Jerónimo de Sousa já se comprometeu com a meta de reconquistar as 9 câmaras que perdeu para o PS. A batalha vai ser dura entre o PS e o PCP. Daí perguntar se é fácil explicar aos militantes do PCP esta aproximação ao PS.
As autárquicas têm 308 quadros políticos de disputa, porque nos 308 municípios há 308 enquadramentos diferentes de disputa das eleições autárquicas e o quadro em que nós intervimos é radicalmente diferente de norte a sul do país. Ao contrário do que acontece em eleições de cariz mais nacional. Era um erro absoluto misturar um posicionamento no OE em função de um quadro eleitoral qualquer, sobretudo do quadro eleitoral autárquico.
O PCP tem tido algumas dificuldades nas duas últimas eleições autárquicas. Qual é a meta para estas? Recuperar Almada é um desafio suficiente?
É alargar tanto quanto possível o peso eleitoral do PCP de norte a sul do país.
E a recuperação destes bastiões do PCP?
É óbvio que há municípios onde os objetivos de reconquistar maiorias são objetivos mais evidentes, mas eu não isolava este ou aquele concelho. Julgo que há um sentimento mais alargado do que o desses 9 municípios de populações que acham necessário ter uma gestão CDU.
Imagino que o PCP tenha especial necessidade de colocar figuras de peso à frente de candidaturas autárquicas. Admite que possa vir a ser candidato nas próximas autárquicas?
Essa questão nunca se colocou até agora.
É uma estreia, então, a pergunta…
Não consigo dar-lhe resposta a essa expectativa.
Imagino que Évora esteja bem entregue, Beja acho que não devo fazer a pergunta…
Évora está bem entregue, Beja é um dos concelhos que precisa de retomar o rumo.
Não gostaria de ser candidato em Beja, por exemplo?
No meu partido sabe-se que não é uma questão de gostos, não somos nós que escolhemos as tarefas e os desafios, isso resulta de uma apreciação mais coletiva.
João Ferreira foi mais uma vez escolhido para encabeçar um desafio eleitoral. Gostava de ser secretário-geral-adjunto de João Ferreira?
Não tenho pretensões nenhumas a qualquer tipo de responsabilidade na direção do meu partido. Registo a criatividade da questão, que é de facto inesperada, mas não tenho qualquer pretensão a qualquer tipo de cargo de dirigente do meu partido. Incluindo esse.
O partido pode decidir que sim, e aí tem uma palavra a dizer, ou não?
Eu compreendo que esta talvez seja das coisas mais difíceis de explicar, mas no meu partido habituei-me, de facto, a encarar essas discussões em função de critérios que são completamente opostos ao que é comum na nossa vida política. Porque nós fazemos essa discussão em função das necessidades que se colocam à intervenção do partido, às necessidades que se identificam na direção do partido, ou na Assembleia da República, e é em função dessas necessidades que procuramos encontrar quem melhor se adequa a elas. E, em regra, a ambição ou a pretensão pessoal para desempenhar esta ou aquela responsabilidade, normalmente é um fator de exclusão do candidato que se posiciona com esse tipo de ambições.
Está a ser estratégico, então.
Ao contrário, acho que é muito saudável fazermos a escolha com o método com que fazemos do que nos deixarmos embalar pelos caudilhos como vemos nos outros partidos, às vezes. Com os resultados que isso tem.