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Os bastidores da guerra pelos votos dos emigrantes. Do acordo de cavalheiros ilegal entre todos os partidos ao corte do jurista do PSD

Um acordo de cavalheiros que todos sabiam ser ilegal, as suspeitas vindas de Angola, queixas ignoradas, votos misturados, instrumentalização da CNE. O filme que obrigou à repetição de eleições.

Duas reuniões, avanços e recuos, o mau exemplo que vinha de Angola, interpretações diferentes da lei, ameaças de impugnação e um desfecho inevitável. A confusão em torno da contagem dos votos dos emigrantes, que acabou com a anulação de mais de 150 mil boletins do Círculo da Europa, começou com um “acordo de cavalheiros” manifestamente “ilegal” – como viria a concluir o Tribunal Constitucional – que o PSD cedo rejeitou e que acabou por fazer escola na generalidade das mesas de voto.

A 18 de janeiro os partidos foram convocados para uma reunião da secretaria-geral do Ministério da Administração Interna, em Lisboa. Não apareceram todos. Marcaram presença apenas as comitivas da Iniciativa Liberal, PSD, Aliança, Bloco de Esquerda, Livre, Volt, CDU e PS. O propósito inicial deste primeiro encontro foi discutir questões logísticas, como o local para a contagem de votos, quantas mesas e quantas pessoas eram necessárias para a operação. Mas acabou por se discutir muito mais.

O que descobrimos sobre os 157 mil votos deitados ao lixo

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"Aceitar como válidos todos os boletins cujos envelopes permitam a identificação clara do eleitor e descarga nos cadernos eleitores desmaterializados, mesmo que o envelope não contenha cópia do cartão de cidadão ou bilhete de identidade, já que a 'remessa pelo eleitor de cópia de documento de identificação serve, afinal e apenas, como reforço das garantias do exercício pessoal do voto' (CNE, 2019)."
O que os partidos, Iniciativa Liberal, PSD, Aliança, Bloco de Esquerda, Livre, Volt, CDU e PS, presentes numa primeira reunião na CNE acertaram entre si

Assim que os responsáveis da Administração Interna explicaram o essencial da operação – o esboço do plano, pelo menos –, deixaram a sala e começou uma nova discussão. Por iniciativa de João Pina (PS) e Mariana Carneiro (BE) foi levantada a questão que viria a provocar toda a polémica: contar ou não todos os votos, mesmo aqueles que não trouxessem cópia do Bilhete de Identidade ou Cartão de Cidadão. É isso mesmo que consta da ata dessa reunião a que o Observador teve acesso. Preto no branco e de forma unânime, todos concordaram:

Aceitar como válidos todos os boletins cujos envelopes permitam a identificação clara do eleitor e descarga nos cadernos eleitores desmaterializados, mesmo que o envelope não contenha cópia do cartão de cidadão ou bilhete de identidade, já que a ‘remessa pelo eleitor de cópia de documento de identificação serve, afinal e apenas, como reforço das garantias do exercício pessoal do voto’ (CNE, 2019).”

Mais uma vez: esta orientação foi aceite por IL, Aliança, BE, Livre, Volt, CDU, PS e PSD. Os sociais-democratas, representados por Maria Emília Preto Galego e Lélio Raimundo Lourenço, concordaram com os argumentos apresentados e juntaram-se aos demais para aprovar novas regras para a contagem dos votos.

Um acordo que quase um mês depois seria destruído pelo Tribunal Constitucional, que constatou o óbvio: os partidos não têm competência para imporem um entendimento desta natureza sem alterarem a lei eleitoral e que se quisessem que todos os votos contassem deveriam ter o cuidado de alterar a lei quando tiveram oportunidade — e esta situação estava identificada há muito tempo e muito antes destas legislativas.

Uma das fontes presentes na reunião de 18 de janeiro admite que na altura todos perceberam que a questão não teria respaldo na lei, daí que fosse necessário um “acordo de cavalheiros” para que não houvesse nenhum protesto.

Os elementos dos partidos consideraram que, ao aceitarem os votos sem cópia do cartão do cidadão, estaria a ser respeitado o espírito da lei porque há uma verificação feita através de um código de barras no envelope do voto. “Isso torna o cartão do cidadão supletivo, uma segunda confirmação”, diz outra fonte.

Mas o plano só funcionaria se nenhum partido mudasse de posição, daí que tenha sido procurado um consenso à porta fechada: se ninguém contestasse os votos seriam todos contados, com ou sem cartão do cidadão. Isso esteve muito longe de acontecer. O PSD voltaria atrás com a decisão.

A contagem do voto dos emigrantes

Andre Kosters/LUSA

A outra reunião que desfez o acordo de cavalheiros e o exemplo de Angola

As conversas não ficaram por aqui. A 4 de fevereiro, cinco dias depois de contados os votos no continente e nas ilhas mas antes da contagem dos votos da emigração, há uma nova reunião com responsáveis do MAI, dos partidos e, desta vez, da Comissão Nacional de Eleições (CNE).

Nesta reunião, o PSD fez-se representar novamente por Emília Galego, mas substituiu Lélio Lourenço por Francisco Figueira. É este último quem avisou os demais partidos: depois de consultar os serviços jurídicos do partido, o PSD decidiu rejeitar votos que não viessem acompanhados por BI ou Cartão de Cidadão por entender que tal violaria manifestamente a lei eleitoral.

Ou seja: no espaço de 20 dias, o PSD mudou radicalmente de opinião. A intervenção de Francisco Figueira na reunião de 4 de fevereiro causou um enorme burburinho — o social-democrata terá dito que era jurista e que não poderia aceitar que se fosse contra a lei. O representante do PS, João Pina, acusou-o de imediato de estar a “roer a corda” e a violar um acordo de cavalheiros.

Ao ouvir a expressão, Francisco Figueira, segundo relatos de fontes presentes na reunião, terá alegado que não existiam condições para garantir a legalidade dos votos, uma vez que tinham circulado no Facebook e em grupos de WhatsApp várias fotografias com boletins de voto em centros de correio em Angola.

Francisco Figueira terá até mostrado aos outros elementos essas fotografias através do seu telemóvel em determinado momento da reunião. Alguns dos restantes membros contestaram que existissem “milhares de votos” nessas circunstâncias, já que em Angola tinham votado menos de 800 pessoas (curiosamente o PSD venceu nas mesas de Angola com 47,56% dos votos e o PS teve apenas 29,18%).

No espaço de 20 dias, o PSD mudou radicalmente de opinião. A intervenção de Francisco Figueira na reunião de 4 de fevereiro causou um enorme burburinho. O social-democrata terá dito que era jurista e que não poderia aceitar que se fosse contra a lei. O representante do PS, João Pina, acusou-o de imediato de estar a “roer a corda” e a violar um acordo de cavalheiros.
A mudança de posição do PSD aconteceu numa segunda reunião

O ponto dos que se opuseram ao PSD era: não ia ter impacto na votação. Mais um detalhe: a votação em Angola, utilizado como argumento para a mudança de posição, nem conta para esta repetição (a votação do Círculo de Fora da Europa não foi contestada, por isso o Tribunal Constitucional não a analisou e não será repetida, mesmo que tenha votos que não cumpram as regras descritas na lei).

Segundo fontes que estiveram presentes nessa reunião, a CNE, no entanto, corroborou o entendimento do PSD e deixou claro que os votos teriam de estar acompanhados por uma cópia do documento de identificação para serem considerados válidos.

O que explica que a primeira comitiva do PSD tenha dito uma coisa e a segunda tenha dito outra? De acordo com o que apurou o Observador junto de fontes ligadas aos sociais-democratas, os primeiros enviados não terão percebido exatamente o que estavam a acertar naquela primeira reunião.

Vários dos elementos dos outros partidos presentes nessa reunião contestam que seja essa a situação. Um deles, de um pequeno partido, diz mesmo ao Observador que “o PSD é useiro e vezeiro destas situações e já em 2019 fez o acordo de cavalheiros e depois rompeu-o”.

De acordo com o que apurou o Observador junto de fontes ligadas aos sociais-democratas, os primeiros enviados não terão percebido exatamente o que estavam a acertar naquela primeira reunião. Vários dos elementos dos outros partidos presentes nessa reunião contestam que seja essa a situação. Um deles, de um pequeno partido, diz mesmo que “o PSD é useiro e vezeiro destas situações e já em 2019 fez o acordo de cavalheiros e depois rompeu-o”.

Porquê as acusações de dolo?

Os votos seriam contados nos dias 8 e 9 de fevereiro. Sabendo o que poderia acontecer, o PSD deu instruções aos seus delegados nas mesas para que lavrassem protestos quando e se percebessem que estavam a ser contados votos sem documento de identificação.

De acordo com fontes envolvidas no processo de contagem dos votos, os protestos do PSD foram sendo ignorados pelos responsáveis pelas mesas. Segundo a lei eleitoral, sempre que há protestos desta natureza os boletins de voto devem ser colocados à margem até que se tome uma decisão sobre a validade dos mesmos.

Ora, apesar dos protestos do PSD, os votos sem cópia de documento de identificação não só não estavam ser postos de parte como estavam a ser colocados em urna, misturando válidos e nulos e tornando impossível distinguir quais eram quais. E isto estava a acontecer no Círculo da Europa e de Fora da Europa. O PSD pediu então que fosse interrompida a contagem de votos e foi mais uma vez ignorado.

Acontece que a CNE sempre rejeitou o sentido dessa interpretação abusiva da lei e das recomendações emitidas. "Só consegue ler isso quem aproveitar o bocadinho que lhe aproveita", diria João Manuel Rosa de Almeida, secretário da CNE, na conferência desta quarta-feira.  E foi precisamente isso que transmitiu aos partidos ainda antes das legislativas.

Nesse mesmo dia, 8 de fevereiro, a própria CNE emitiu um aviso às mesas a dizer que não se podiam misturar os votos. No dia seguinte, e de acordo com queixas dos sociais-democratas não desmentidas pelos demais partidos, a prática manteve-se: votos, com ou sem documento de identificação, estavam a ser introduzidos em urna.

O que explica esta prática reiterada? Diferentes interpretações das recomendações da CNE. Em 2019, os responsáveis concluíram que a “remessa pelo eleitor de cópia de documento de identificação serve, afinal e apenas, como reforço das garantias do exercício pessoal do voto”.

Acontece que a própria CNE sempre rejeitou o sentido dessa interpretação abusiva da lei e das recomendações emitidas. “Só consegue ler isso quem aproveitar o bocadinho que lhe aproveita”, diria João Manuel Rosa de Almeida, secretário da CNE, na conferência desta quarta-feira.  E foi precisamente isso que transmitiu aos partidos ainda antes das legislativas e durante a contagem dos votos, como se pode ler aqui:

“– Os envelopes brancos são abertos para verificação e separação do seu conteúdo;
— Para que o voto seja válido, o envelope terá de conter cópia do documento de identificação do eleitor (n.o 6 do art. 79.o-G).
— Em caso de incumprimento, a competência para deliberar cabe, em exclusivo, às mesas.
— Caso entendam que os votos são nulos ou se houver protesto, não abrem o envelope verde, que fica apenso à ata, juntamente com o branco com toda a documentação que continha, para ser remetido à assembleia de apuramento geral.
— Das decisões das assembleias de apuramento geral cabe recurso para o Tribunal Constitucional, no prazo de 24 horas.”

Simplificando: de acordo com a deliberação da CNE, a partir do momento das reclamações do PSD, os boletins de voto sem cópia de um documento de identificação deveriam ter sido imediatamente colocados de parte para avaliarem mais tarde; não foram porque nas mesas houve responsáveis que entenderam misturar deliberadamente os votos.

Duas cabeças, duas sentenças. Europa vs. Fora da Europa

Os protestos do PSD chegaram às assembleias de apuramento geral de votos, o último recurso antes do Tribunal Constitucional. E aí houve mais uma vez duas interpretações completamente diferentes, que estão na origem de duas realidades diferentes: no Círculo da Europa, 80% dos votos foram anulados; no Círculo Fora da Europa, o número de votos anulados foi residual.

No primeiro caso, João Tiago Machado, porta-voz da CNE e eleito pelo Parlamento em representação do CDS, entendeu que a decisão de contabilizar todos aqueles boletins que chegaram sem documento de identificação, tendo sido misturados com os demais, violava a lei e decidiu-se pela anulação dos votos.

Não havendo mais reclamações, os votos do círculo de Fora da Europa foram efetivamente considerados válidos. “Não importa se está bem se está mal, está consolidado”, assumiria na tarde desta quarta-feira João Manuel Rosa de Almeida.

No segundo caso, Marco Paulo Teles Gonçalves Fernandes, assessor do secretário de Estado-adjunto da Administração Interna e indicado pelo Governo, teve outro entendimento: os votos que tinham sido misturados em urna, deviam ser contabilizados como válidos, com ou sem cópia de documento de identificação; os que vinham separados dos demais, e não tivessem cópia de BI, então sim, deveriam ser considerados nulos.

Ora, aos queixosos — no caso, o PSD — só restava uma alternativa para anularem o círculo Fora da Europa: entrar um recurso junto do Tribunal Constitucional. Os sociais-democratas, sabendo que a situação poderia atrasar a tomada de posse do Parlamento, e conscientes de que não alteraria o resultado final das eleições, decidiram não fazer mais nada.

Não havendo mais reclamações, os votos do círculo de Fora da Europa foram efetivamente considerados válidos, mesmo que muitos fossem manifestamente ilegais. “Não importa se está bem se está mal, está consolidado”, assumiria na tarde desta quarta-feira João Manuel Rosa de Almeida.

João Tiago Machado da Comissão Nacional de Eleições fala em conferência de imprensa sobre as eleições para a Assembleia da República em Lisboa, 16 de fevereiro de 2022. TIAGO PETINGA/LUSA

João Tiago Machado, porta-voz da CNE

TIAGO PETINGA/LUSA

O desfecho do Tribunal Constitucional

Então, onde é que entra a decisão do Tribunal Constitucional? O que aconteceu foi que alguns partidos, nomeadamente o Volt, decidiram mesmo recorrer aos juízes do Palácio Ratton para contestarem a decisão do Círculo da Europa de anular os tais 157 mil votos. Estes partidos — não o PSD — queriam que todos os votos contassem.

O resto da história é conhecido: o Tribunal Constitucional não só disse que estes partidos não tinham razão, como destruiu o acordo informal que esteve na origem de tudo e ordenou a repetição das eleições neste círculo eleitoral.

Em paralelo, será ainda avaliada pelo Ministério Público a queixa-crime do PSD contra aqueles que, sabendo dos protestos do partido e das deliberações da CNE, decidiram não só misturar votos em urna que poderiam ser considerados mais tarde irregulares, como validar essa decisão.

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