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A guerra comercial entre os Estados Unidos e a China está cada vez mais intensa. Os semicondutores (também conhecidos como chips) têm um lugar de destaque na disputa, que tem vindo a receber novos capítulos à medida que a presidência de Joe Biden se aproxima do fim. O mais recente data de 23 de dezembro, quando Washington, após vários anos com o foco principal nos circuitos integrados mais avançados de Pequim, virou as atenções para os chips mais maduros, e por isso mais presentes na economia, conhecidos como legacy.
Nesse dia, os EUA anunciaram a abertura de uma investigação à China por suspeitas de práticas anti-concorrenciais, concebidas para alcançar um “domínio na indústria dos semicondutores”, em especial dos mais maduros, que são usados em várias indústrias, como a automóvel, a de defesa ou a aeroespacial, e em produtos utilizados no dia a dia, como telemóveis ou máquinas de lavar a roupa.
Desta forma, os norte-americanos acusaram os chineses, através de um comunicado, de adotarem “habitualmente políticas e práticas não mercantis”, permitindo às suas empresas “prejudicar significativamente a concorrência e criar dependências perigosas na cadeia de abastecimento de semicondutores fundamentais”.
Após a investigação, que deverá ser concluída no prazo de seis meses a um ano, poderão ser implementadas restrições de importação ou novas taxas sobre os produtos da China, antecipa o Financial Times. A decisão será tomada pelo governo de Donald Trump, Presidente eleito dos EUA que toma posse no dia 20 de janeiro e que durante a campanha eleitoral deu indícios de que pretendia reverter os esforços do antecessor para impulsionar o fabrico de semicondutores em solo norte-americano. Mas poderá não ser bem assim.
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Lei dos chips em risco? Trump não vai revogá-la, dizem especialistas
A promessa de que iria reverter várias das medidas promulgadas nos últimos quatro anos por Biden caso regressasse à Casa Branca foi recorrente durante a campanha eleitoral de Trump. Um dos pacotes legislativos em risco com a possível vitória, que veio a confirmar-se, é o “Chips and Science Act”, aprovado em 2022 com apoio bipartidário para incentivar os fabricantes de semicondutores a fixarem a produção em solo norte-americano.
Em outubro, durante uma participação de praticamente três horas no podcast The Joe Rogan Experience, do comediante Joe Rogan, Trump criticou a legislação, classificando-a como “muito má”. “Investimos milhares de milhões de dólares para que as empresas ricas venham para cá, peçam dinheiro emprestado e aqui construam empresas de chips. E elas não nos vão dar as boas empresas”, acrescentou, argumentando que aumentar as taxas sobre importações da China para valores muito elevados atrairia esses negócios para os Estados Unidos sem que fosse preciso gastar “10 cêntimos”.
Poucos dias depois, o também republicano Mike Johnson, que é presidente da Câmara dos Representantes dos EUA, indicou que era “provável” que o partido revogasse a lei quando chegasse ao poder. Contudo, segundo a CNBC, acabou por voltar atrás e dizer que, afinal, o “Chips Act não está na ordem do dia para ser revogado”.
A menos de um mês da tomada de posse da administração Trump, os especialistas acreditam que, apesar das críticas, o novo Presidente norte-americano não irá além de um ajuste ao texto da lei, deixando a maior parte intacta. Chris Miller, autor do livro A Guerra dos Chips (traduzido para português em julho de 2023), defende que o republicano não vai revogar a legislação, mas afirma que a “implementação pode mudar”. Ou seja, acredita que podem ser feitas pequenas alterações ao documento, ainda que “alguns dos contratos já estejam fechados”, o que pode ser um entrave.
Destacando a importância do “Chips and Science Act”, o especialista lembra, em declarações escritas enviadas ao Observador, que “atualmente Taiwan produz 99% dos chips de IA [inteligência artificial] do mundo”, que são os mais avançados, pelo que “há um amplo consenso nos EUA de que devem ser tomadas medidas para diversificar a cadeia de abastecimento”.
A opinião é seguida por Adam Posen, presidente do think tank americano Peterson Institute for International Economics, que afirma que Trump poderá tentar alterar a lei para “distribuir o dinheiro de forma um bocadinho diferente” da que foi estabelecida pelo antecessor, mas não deverá fazer mais do que isso. O especialista considera, em declarações à CNBC (sendo que não respondeu às questões enviadas pelo Observador), que essa postura espelharia a que foi adotada anteriormente por Joe Biden, que quando tomou posse manteve as taxas do republicano a produtos importados da China, incluindo semicondutores, em vigor.
Os últimos capítulos da disputa entre EUA e China
A investigação anunciada a 23 de dezembro pelo governo norte-americano reforça a pressão à indústria de semicondutores da China. Os fabricantes chineses de chips continuam atrás dos líderes do setor, que estão maioritariamente sediados em Taiwan, mas têm capacidade para produzir os mais antigos, os tais legacy, em grande escala.
Os EUA estimam que Pequim poderá ser responsável por mais de 40% da capacidade global desses chips até 2032. Num memorando, que foi analisado pelo The New York Times, o Departamento do Comércio norte-americano prevê ainda que a China possa dominar a cadeia de fornecimento dos semicondutores mais maduros até 2030, o que, acredita, pode pôr em risco a segurança nacional dos EUA.
Por outro lado, num outro documento partilhado nos primeiros dias deste mês, o mesmo departamento indicava que o crescimento da produção de semicondutores mais maduros na China “já começou a causar pressão sobre os preços que pode enfraquecer as posições competitivas dos fornecedores de chips dos EUA”. Estima-se que mais de dois terços dos produtos feitos por empresas norte-americanas usem semicondutores produzidos em fábricas chinesas.
Antes da última investigação, que foi aberta perto do Natal e que tem como alvo os chips mais maduros, as ações levadas a cabo pelos norte-americanos procuravam, na sua maioria, atingir os circuitos integrados mais avançados, em particular aqueles que incorporam inteligência artificial — um setor que tem crescido ao longo dos últimos anos.
No início do mês, a 2 de dezembro, Washington evocou preocupações de “segurança nacional” para anunciar novas restrições à exportação de chips com o objetivo de reduzir a capacidade da China para criar uma indústria de semicondutores mais avançada e de combater a utilização de chips de inteligência artificial em aplicações militares.
As novas restrições, que visam 140 empresas chinesas (como a Piotech e a SiCarrier). As empresas norte-americanas que queiram vender para a China passam a ter de solicitar licenças especiais de exportação. Medidas deste género não são inéditas. Em outubro de 2022 e no mesmo mês de 2023, outros controlos para restringir as vendas à China já tinham sido aplicados. De acordo com a CNN, os norte-americanos temem que Pequim utilize a inteligência artificial para obter vantagem militar e acreditam que as restrições podem ajudar a atrasar os avanços do país no desenvolvimento de chips que utilizem essa tecnologia.
Gina Raimondo, secretária do Comércio norte-americana, classificou os novos controlos como “inovadores e abrangentes”, salientando que são os “mais rigorosos alguma vez aplicados pelos EUA para diminuir a capacidade da República Popular da China de fabricar os chips mais avançados que utiliza na sua modernização militar”.
Por sua vez, a China condenou a decisão dos EUA e acusou o país de “generalizar o conceito de segurança nacional, abusar de medidas de controlo de exportação e implementar intimidação unilateral”, prometendo adotar “as medidas necessárias” para salvaguardar os seus “direitos e interesses”.
A resposta da China, com a Nvidia à mistura
A 3 de dezembro, apenas 24 horas após serem conhecidas as novas restrições dos EUA, a China retaliou e impôs uma proibição de exportação a vários metais e minerais, que são essenciais para o fabrico de semicondutores, aos norte-americanos. Assim, Pequim vai deixar de enviar gálio, germânio, antimónio e outros materiais super-resistentes para os Estados Unidos.
Mas a retaliação não ficou por aí. Uma semana depois, a China anunciou a abertura de uma investigação à Nvidia, tecnológica norte-americana que está na vanguarda do desenvolvimento de chips de inteligência artificial e que tem um valor de mercado de mais de três biliões de dólares (ficando apenas atrás da Apple). A empresa foi colocada sob escrutínio devido a alegadas infrações à lei anti-monopólio chinesa na aquisição da israelita Mellanox Technologies.
Segundo a Euronews, a Nvidia, que viu o valor das ações cair 2,6% aquando da abertura da investigação, é suspeita de violar os compromissos a que tinha ficado sujeita quando a compra, realizada em 2020 por 7 mil milhões de dólares (6,6 mil milhões de euros), foi aprovada por Pequim. Uma das condições impostas pelo regime chinês terá sido que a israelita Mellanox partilhasse informações sobre novos produtos com empresas concorrentes 90 dias antes de estes serem lançados.
Um especialista chinês em legislação anti-monopólio, que falou com o Financial Times sob condição de anonimato, não tem dúvidas de que “esta investigação parece ser uma ação política e não legal” e aponta o principal motivo: “Nunca antes a imprensa estatal assumiu a liderança no anúncio de uma investigação”, afirma, notando que foi a imprensa chinesa a avançar em primeira mão a notícia.
Já a Nvidia disse, após ser notificada, ter “todo o gosto em responder a quaisquer perguntas que os reguladores possam ter” sobre a sua atividade e salientou que trabalha “arduamente para fornecer os melhores produtos” em “todas as regiões” em que está presente.
O “Chips Act” norte-americano e a “luta da Intel”
O “Chips and Science Act” foi promulgado em agosto de 2022 com o objetivo de financiar a investigação e incentivar a construção de fábricas para impulsionar a produção de semicondutores em território norte-americano. Cada vez mais preocupado com a dependência de chips estrangeiros, Biden comprometeu-se com um investimento de quase 53 mil milhões de dólares para aumentar a competitividade dos EUA face à China e a Taiwan.
Ao longo dos últimos dois anos, avança a CNBC, a aplicação da legislação tem sido lenta e a maior parte dos fundos ainda não foi distribuída. Isto porque as empresas beneficiárias têm de cumprir determinados critérios, que podem incluir a construção de fábricas ou a angariação de clientes, antes de receberem o financiamento.
A primeira concessão concretizada foi a da empresa Taiwan Semiconductor Manufacturing Company (TSMC), que em novembro recebeu 11,6 mil milhões de dólares em subsídios e empréstimos do governo norte-americano para apoiar os seus planos de construção de três fábricas de chips na região do Arizona. Poucos dias depois, foi a vez da norte-americana Intel receber 7,9 mil milhões de dólares.
Quais são as principais fabricantes mundiais de chips?
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As características distintas dos semicondutores fabricados por cada uma das grandes empresas que fazem parte desta indústria dificultam a elaboração de um ranking exato das maiores produtoras.
Há consultoras que publicam online listas das principais fabricantes de chips sem explicarem qual foi o critério que utilizaram. A britânica MRL Consulting Group, por exemplo, considera que estas são as cinco principais empresas, mas não explica porquê: TSMC, Samsung, Intel, Nvidia e Broadcom.
Existem outros rankings disponíveis online que ordenam as empresas tendo em conta um critério específico: o valor de mercado. É o caso da Statista, que apresenta a seguinte lista com base em dados do passado dia 15 de novembro:
- Nvidia, empresa norte-americana com um valor de mercado de mais de três biliões de dólares;
- TSMC, empresa sediada em Taiwan que é líder no fabrico de chips de última geração. Vale mais de 977 mil milhões de dólares;
- Broadcom, norte-americana com um valor de mercado superior a 795 mil milhões de dólares;
- ASML, a única empresa europeia na lista. Com sede nos Países Baixos, tem um valor de mercado superior a 272 mil milhões de dólares;
- Samsung, sul-coreana especializada em chips de memória que vale mais de 256 mil milhões de dólares.
O especialista Chris Miller destaca ao Observador a importância do “Chips Act” ao salientar que, atualmente, as grandes empresas dos Estados Unidos “dependem todas da importação de chips fabricados em Taiwan”, o que representa uma “vulnerabilidade” face às “ameaças da China à segurança de Taiwan”. Contudo, afirma que o “principal desafio” que Trump vai enfrentar é outro: “É a luta da Intel, que já foi o maior fabricante de chips do mundo, mas que agora está a enfrentar grandes dificuldades”.
No verão, a Intel anunciou o despedimento de cerca de 15 mil trabalhadores e, meses depois, apresentou o maior prejuízo trimestral em 56 anos de história. No terceiro trimestre deste ano, o prejuízo da empresa foi de 16,6 mil milhões de dólares.
De acordo com o Business Insider, as dificuldades apresentadas pela firma norte-americana já levaram a administração Biden a debater sobre se a empresa deveria receber apoio financeiro adicional ou fazer uma fusão do seu negócio com o de uma entidade concorrente. A secretária do Comércio norte-americana, Gina Raimondo, terá também instado as lideranças da Google, Microsoft, Apple e Nvidia a comprarem semicondutores à Intel.
Um porta-voz da Intel afirmou, ao mesmo site, que os resultados financeiros demonstravam o “processo tangível” que a empresa está a fazer na sua estratégia para superar as dificuldades e mostrou-se “ansioso por trabalhar com o Presidente eleito Trump e a sua administração para promover a liderança tecnológica e industrial dos Estados Unidos”.