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Está quase a voltar o festival de Paredes de Coura: e com ele, os mergulhos diurnos no rio Coura e os concertos vistos ao fim da tarde e durante a noite na colina. A 28ª edição, que chegou a estar apontada para 2020 e 2021 mas só agora acontece (culpa da Covid-19), começa esta terça-feira e prolonga-se até à noite de sábado e madrugada de domingo.
O menu musical é relativamente longo, com 64 atuações ao longo de cinco dias, mas não tão longo quanto noutros festivais porque o Paredes de Coura — que começou em 1993 — tem apenas dois palcos. O que poderia ser uma desvantagem é na verdade um dos trunfos para quem é visitante habitual, já que reduz substancialmente as dores de cabeça na hora de escolher que concertos ver e de quais é preciso abdicar e diminui os metros percorridos de palco para palco.
O festival começa na terça-feira com um dia exclusivamente dedicado à música portuguesa e prossegue depois durante mais quatro dias, com alguns históricos (como os Pixies), poucos, mas sobretudo com artistas e bandas internacionais emergentes.
Ao longo dos anos, a identidade do festival foi-se construindo cada vez mais com aposta em bandas e músicos internacionais em ascensão (em alguns casos) ou em momento de afirmação (noutros), mas este ano essa dimensão é reforçada em detrimento da aposta em referências históricas da música independente — basta comparar, por exemplo, com o cartaz da edição anterior (2019), de que faziam parte bandas como os New Order, Suede e Spiritualized e artistas como Patti Smith. De entre as mais de 60 atuações previstas, destacamos dez que considerámos imperdíveis.
[Oiça aqui a antevisão ao festival de Paredes de Coura, feita no programa “Isto Não Passa na Rádio” da Rádio Observador:]
Bruno Pernadas
Terça-feira, 22h45, palco Vodafone FM
Poderíamos ter escolhido muitos outros, entre os 20 artistas e bandas nacionais que vão assegurar o primeiro dia de concertos do festival. Nestas contas há quem saia prejudicado pelo horário a que vai tocar (por exemplo Benjamim, que se estreia em Paredes de Coura) ou cuja atuação possa ser simbolicamente menos impactante por já ter estado noutros festivais de verão (caso de Rita Vian, que passou pelo Primavera Sound e pelo Alive). E há quem não seja destacado pela simples razão de que foi necessário fazer escolhas.
Com Bruno Pernadas, vamos sempre bem. A sua mini-orquestra pop, por ele comandada, é capaz de viajar do jazz às melodias pop mais psicadélicas, do afrobeat (por exemplo, em “Lafeta Uti”) a toadas mais orientais e sul-americanas. A Coura, o imaginativo músico que consegue pôr o globo nas suas canções levará o mais recente álbum Private Reasons, mais uma impressionante coleção de sons e ritmos que dá gosto ouvir ao vivo.
Sam the Kid com Orquestra e Orelha Negra
Terça-feira, 23h30, palco Vodafone
Foram demasiados os anos que passaram sem concertos a solo de Sam the Kid: uma década, mais coisa menos coisa. Nesse período, foi possível vê-lo com os Orelha Negra (a tocar o repertório da banda que integra), com Beware Jack no projeto Classe Crua e em dupla com Mundo Segundo. Em 2019, o histórico rapper e produtor português voltou aos concertos inteiramente ancorados nos temas dos seus discos clássicos e na sua produção lírica — entre os quais, o marcante Pratica(mente) — nos Coliseus, com acompanhamento musical de luxo, garantido por uma orquestra e os elementos dos Orelha Negra.
Quem já o viu neste formato sabe que é um concerto a não perder, uma parte muito relevante da história do hip-hop português contada ao vivo com toda a pompa e circunstância musical merecidas. Mas até simbolicamente este será um concerto especial: foi com Sam the Kid que o hip-hop português começou a ouvir-se em força em Coura, no longínquo 2002, ano em que o rapper e produtor editou Sobre(tudo) mas ainda quatro anos antes de revelar Pratica(mente). Foi também o primeiro grande festival em que Sam the Kid atuou, precisamente há 20 anos.
Porridge Radio
Quarta-feira, 19h15, palco Vodafone FM
Ao longo dos quase 30 anos de história deste festival, mas especialmente nos últimos 20, o Paredes de Coura foi solidificando uma identidade que passa por apresentar em Portugal bandas internacionais emergentes ou em momento de franca afirmação. Hoje, porque a concorrência e a oferta são muito maiores, não será tão fácil a uma banda indie apanhar a boleia da crítica e dar o salto para o estatuto de consensual, mas a identidade do Paredes de Coura não se perdeu: continua a ser ali que vemos parte do que de mais entusiasmante está a germinar e a crescer na música.
O concerto dos ingleses Porridge Radio é o melhor exemplo disso. Já com concertos futuros marcados para novembro, para o Super Bock em Stock (Lisboa) e Centro Cultural Vila Flor (Guimarães), a banda, que tem em Dana Margolin uma carismática vocalista e guitarrista, vai chegar a Coura no momento perfeito, depois da edição de dois álbuns que ajudam a provar que o rock britânico está num momento pujante: Every Bad (2020) e sobretudo o novíssimo Waterslide, Diving Board, Ladder to the Sky (2022), um disco cheio de canções que apetece ouvir ao vivo como “Back to the Radio”, “End of Last Year”, “Rotten”, “Jealousy”, “The Rip” e o tema que dá título ao disco. Se somadas a temas como “Born Confused” e “Sweet”, do disco anterior, ou o mais antigo “7 Seconds”, que cresce na sua versão ao vivo, dão garantias de um grande concerto.
BadBadNotGood
Quarta-feira, 21h15, palco Vodafone
Cinco anos depois, mas apenas com duas edições pelo meio (por culpa da Covid-19), os canadianos BadBadNotGood regressam a Paredes de Coura. Quando ali atuaram em 2017, estreando-se em Portugal e provando mais uma vez a atenção dos organizadores ao que vai emergindo na música independente mundial, os BadBadNotGood já levavam uns bons anos de atividade, tendo até cinco álbuns já editados, quatro apenas da banda e um colaborativo com o rapper Ghostface Killah.
O álbum anterior que levaram a Coura em 2017, IV, ajudou a projetar este “jazz inclusivo” dos BadBadNotGood, que se enrola com frescura com a música eletrónica de dança e com o formato da canção pop, sobretudo a mais soul. As próprias colaborações nesse álbum (entravam no disco Samuel T. Herring dos Future Islands, Kaytranada, Colin Stetson, Mick Jenkins…) ajudaram à afirmação mediática e popular dos BadBadNotGood. Desta vez, trazem Talk Memory, de 2021, com mais colaborações (Arthur Verocai, Terrace Martin, Karriem Riggins, Laraaji…) que mantém a toada de crescimento artístico com tons um pouco mais épicos e enérgicos, em alguns momentos mais rock, outros mais vigorosamente jazzísticos e até free-jazz.
Idles
Quarta-feira, 23h10, palco Vodafone
Não é sequer preciso ser um fã assolapado dos Idles para apreciar a loucura rock e punk que é um concerto da banda britânica. O grupo britânico que nos últimos anos se impôs no meio musical, como atestam os cinco concertos já dados em Portugal (o último dos quais este ano no Coliseu dos Recreios), tem álbuns elogiados pela crítica como Joy As An Act of Resistance (2018) e o recente Crawler (2021).
É porém ao vivo que mais se destacam, com atuações suadas e aceleradas, eletricidade prego a fundo e uma consciência comunitária e intervenção social que se ouvem da melhor forma: sem travões. Chateados com o estado do mundo, que querem ver melhor, distribuem pancada rock com amor e amor com fúria punk. Sempre imprevisíveis, sempre a fazer de um concerto uma festa ímpar, estão entre os nomes maiores do cartaz.
The Comet is Coming
Quinta-feira, 19h45, palco Vodafone
É sabido que o chamado “novo jazz britânico” anda nas bocas do mundo. E o que é certo é que já teve um grande mérito: fazer ritmos mais ou menos jazzísticos circularem por festivais de verão de dimensão relevante e por salas de concertos que não apenas os pequenos clubes de jazz. Isso deve-se, por um lado, à força e energia com que esses ritmos estão a ser tocados no Reino Unido e à forma como estão a ser misturados com outras estéticas, como o rock e a eletrónica. Mas também, não há que negar, à capacidade das editoras britânicas projetarem os seus artistas face a selos discográficos de outros países europeus.
Os The Comet Is Coming estão entre os grupos que mais crescimento têm tido desde que este movimento musical, digamos, começou a ganhar maior pujança e internacionalização. O álbum Trust In The Lifeforce Of The Deep Mystery, de 2019, é um bom caleidoscópio de funk, jazz, psicadelismo e groove. Guiados pelos comandantes desta nave ritmada — o saxofonista Shabaka Hutchings, o teclista Dan Leavers e o baterista Max Hallett —, os The Comet Is Coming estarão em Coura na quinta-feira para um concerto que pode surpreender os festivaleiros menos dados ao jazz. Afinal, esta é uma música vigorosamente daqui, de agora e com uma energia contagiante.
L’Eclair
Quinta-feira, 22h10, palco Vodafone FM
Esqueçam os discos, que o melhor é mesmo ir para o concerto à descoberta. Até porque tudo isto cresce — e de que maneira — ao vivo. Em abril, vimo-los pela primeira vez no festival Tremor, em São Miguel, e saímos impressionados. A banda, formada na Suíça, é uma máquina de ritmo ao vivo, misturando de tudo um pouco, desde o funk ao afro-disco, passando pelo jazz e por batidas eletrónicas. É gente que se diverte à brava a dar um concerto e que impressiona pela energia e pela música, de tons psicadélicos, espécie de Khruangbin a 200 à hora, sem pausas e capazes de fazer o público embrenhar-se na dança.
Estão entre os candidatos ao prémio “boa surpresa, não conhecia” do festival, a par de outros projetos como os franceses L’Impératrice ou os italianos Nu Genea, também eles alinhados com o balanço festivo e dançante que assenta tão bem ao calor e ao escapismo de um festival de verão.
Arlo Parks
Sexta-feira, 20h, palco Vodafone
Mais uma estreia em Portugal e também britânica, tal como os Porridge Radio, mas neste caso com honras de palco principal e de lugar cimeiro do cartaz. Anaïs Oluwatoyin Estelle Marinho, que escolheu para nome artístico Arlo Parks, é uma das grandes figuras do presente e futuro da música do Reino Unido. E chega a Portugal com apenas um disco completo (Collapsed in Sunbeams, 2021), mas que teve tanto impacto que venceu a categoria de Melhor Álbum na última edição dos Prémios Mercury, anuais e os mais prestigiados da música britânica.
Quando o disco saiu, em janeiro de 2021, escrevíamos aqui que Arlo Parks deixou a adolescência para trás, abriu o coração e fez um disco para nos abalroar. Com uma escrita poética e muito trabalhada e com uma voz afinada, Arlo Parks já era um fenómeno antes mesmo do disco de estreia, graças a algumas canções anteriores muito promissoras, reveladas previamente. Uns meses depois da edição do disco, o diretor do festival de Paredes de Coura, João Carvalho, revelava ao Observador que se não fosse o adiamento motivado pela Covid-19, Arlo Parks estaria em Coura em 2021. A estreia foi retardada um ano, mas este tem tudo para ser mais um daqueles concertos que marca a história do festival.
Yves Tumor & It’s Band
Sábado, 22h, palco Vodafone FM
Uma das figuras mais inclassificáveis e difíceis de decifrar da pop mundial, Yves Tumor é um músico, compositor e cantor nascido nos Estados Unidos da América, cujas canções parecem saídas de um planeta novo: experimental, incorporando elementos antigos da soul, do rhythm and blues e do rock psicadélico mas enquadrando-os numa moldura eletrónica q.b.
Ainda que no seu primeiro álbum com a editora Warp, Safe in the Hands of Love (2018), já revelasse crescimento artístico face ao que mostrara no início da carreira, o último disco completo que editou (2020), Heaven to a Tortured Mind, foi uma surpresa. Revelou um cantor e compositor cada vez com canções mais apuradas, com temas melodicamente interessantes mas cheios de força, energia e subversão — os melhores exemplos são os singles “Gospel For a New Century” e “Kerosene!”. Em palco tudo deverá crescer porque Tumor é um performer puro e certamente será capaz de pôr o público em polvorosa com a sua figura arrojada, andrógina, glam, apreciadora de alguma tensão e que nos canta sugestivamente, com malícia boa: “Come and light my fire baby”.
Slowthai
Sábado, 22h50, palco Vodafone
Falávamos de figuras peculiares, que escapam às convenções e àquilo que convencionalmente ainda se associa à “normalidade”? De personalidades que em palco apresentam ainda uma postura subversiva, (positivamente) incendiária, que, de língua de fora para a pose bem comportadinha, parecem querer que no seu concerto o mundo fique virado do avesso? Eis mais um caso, que ainda por cima atua logo a seguir a Yves Tumor: Slowthai.
Tal como Tumor, também este Tyron Kaymone Frampton é um espalha-brasas, um bom diabo que gosta de alguma agitação. É, no entanto, uma figura com outro reconhecimento mediático e popular e com uma estética musical bastante diferente. Rapper que concilia um hip-hop cantado, festivo e em alguns casos até explosivo e com aroma trap com uma agradável inconveniência punk (que o diga a antiga primeira-ministra Theresa May), o rapaz de 27 anos que escolheu Slowthai como nome artístico tem dois álbuns completos editados, Nothing Great About Britain, de 2019 (que o projetou de imediato), e o mais recente Tyron, lançado no ano passado. Resta saber se conseguirá contornar em palco o facto de algumas das suas melhores canções (como a recente “feel away”) serem colaborações com outros artistas.