Se Arlo Parks fosse como a maioria dos comuns mortais, por esta altura estaria a participar na discussão sobre as vantagens e desvantagens do ensino online, a pensar que isto de crescer é bonito e é uma chatice, que neste terceiro ano de faculdade (tem 20 anos) uma pandemia tinha-lhe roubado os rally-tascas, as paixonetas de universidade, as aulas interessantes e as aborrecidas.

Na verdade, se Arlo Parks fosse como o comum dos mortais da sua idade não seria sequer Arlo Parks — estaria a responder a professores por Zoom pelo nome de batismo Anaïs Marinho, ocupada, como tencionava antes da música se intrometer na sua vida como um ofício sério e profissional, com as disciplinas do curso de literatura inglesa que queria estudar.

Tudo isto aconteceria se Anaïs Oluwatoyin Estelle Marinho não fosse Arlo Parks, uma cançonetista de 20 anos que Michelle Obama tem na sua playlist, que a super-pop-star pós-adolescente Billie Eilish — apenas um ano mais nova do que Anaïs — dizia há poucos meses andar a ouvir e a adorar, que o rapper e cantor britânico Loyle Carner (um dos seus heróis) apadrinhou, a quem Lilly Allen deu a bênção e que a princesa do indie-rock tristonho Phoebe Bridgers ouviu e convidou para tocarem juntas “Kyoto” e fazerem uma versão de “Fake Plastic Trees” dos Radiohead:

Não foi preciso chegar a esta sexta-feira e à edição do seu primeiro álbum, momento em eras distantes decisivo para a afirmação mediática e popular de um artista, para Arlo Parks ser um fenómeno. Todos esses elogios já tinham vindo antes, a horda de fãs já se avolumava por todo o lado (no Reino Unido então Parks já era uma estrela do indie).

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Era como se na verdade este primeiro álbum já fosse, para muitos, um pró-forma: porque Arlo Parks já revelara em antecipação várias das canções de Collapsed In Sunbeams e com grande sucesso — “Hurt”, “Caroline”, “Black Dog”, “Green Eyes” e “Eugene” tornaram-se êxitos na internet antes de serem incluídas na rodela de vinil e no CD — e porque uma rapariga que na mesma entrevista cita tudo isto (prepare o fôlego) tem os críticos e analistas a venerá-la: Sylvia Plath, Zadie Smith, D’Angelo, Beach House, Eliott Smith, Radiohead, Otis Redding, James Blake, The Streets, Frank Ocean, Sufjan Stevens, “Plantasia”, Angel Olsen, Rosalía, Erykah Badu, Sly and the Family Stone, Parliament, Funkadelic, Yves Tumor, Adrianne Lenker, Aldous Harding.

Não é só por isto que Collapsed In Sunbeams é um êxito antes de o ser: apressadas para contornar a concorrência, as publicações do Reino Unido multiplicaram-se em críticas e desfizeram-se em elogios nos dias anteriores ao disco de estreia de Arlo Parks sair. No The Guardian, escrevia-se que este é uma estreia “diarística” e “quase-perfeita”. Na New Musical Express davam-se cinco estrelas em cinco e escrevia-se que esta coleção de histórias musicais perdurará “nas décadas por vir”. No The Independent, descrevia-se isto como “um raio de luz num ano sombrio”.

A capa do álbum de estreia de Arlo Parks, “Collapsed in Sunbeams”

O hype é real, veio para ficar. Arlo Parks não é, não será porventura nunca, uma Billie Eilish — uma coisa é a veneração indie, outra é a histeria de massas  —, mas não há grandes dúvidas de que há algo na sua fórmula musical, na sua proposta de canção, que a distingue e a destaca. Mesmo que seja ainda notório que o seu impacto é por agora maior no Reino Unido do que nos EUA, mesmo que seja no Reino Unido que os críticos e analistas mais rapidamente se aperceberam da verdadeira dimensão do seu talento.

Anaïs Marinho não será  “a voz de uma geração”, a “geração Z”, como se tem escrito pela internet. Ela aliás rejeita o rótulo e chuta-o para canto, como Bob Dylan fizera nos anos 60 quando disse que não era porta-voz de nada nem de ninguém. Mas se antes de se ouvir o disco, ouvindo só a mão cheia de canções já reveladas do álbum, já era difícil ter dúvidas de que esta seria uma estreia marcante, agora que já ouvimos tudo não é mais possível desconfiar.

“A voz de uma geração”, a Geração Z: a origem do mito

Arlo Parks pode não ter vontade nenhuma de arcar com o rótulo de “voz de uma geração” mas de certo modo, em parte inconscientemente e em parte pelo talento para a observação e identificação de experiências geracionais e comuns a muita gente, contribuiu para isso.

Em 2019, Anaïs, que cresceu na área londrina de Hammersmith — filha de pai nigeriano e mãe com origem no Chade mas com um passado em Paris —, lançava uma pequena coleção de canções intitulada Super Sad Genaration. No tema que deu título a este EP de quatro temas, cantava: ”

“When did we get so skinny?
Start doing ketamine on weekends
Getting wasted at the station
And trying to keep our friends from death”

E ainda, mais à frente:

“We’re a super sad generation
Killing time and losing our paychecks”

De repente foi fácil ver em Arlo Parks uma espécie de boneco: a rapariga pós-adolescente tristonha, que se refugia na intelectualidade (os livros, as canções) para evitar as agruras de um presente caótico, disperso e pouco esperançoso, que carpe mágoas a fazer scroll no Twitter ou a tomar medicamentos e drogas que já não são os charros, que se angustia com o culto da imagem que a internet alimenta, que não vê oportunidades para ter um futuro muito melhor do que o dos seus pais, que desafia a heteronormatividade e a heterossexualidade (é bissexual).

Como qualquer boneco, este tem o seu traço caricatural, as suas insuficiências de caracterização. Mas há alguns dados que a própria Anaïs Marinho vai avançando sobre si em entrevistas que nos permitem perceber um pouco melhor a sua música enquanto Arlo Parks. Sabemos, por exemplo, que aos 14 anos Anaïs pegou numa guitarra e mais tarde começou a tentar escrever pedaços de letras para compor músicas — mas já antes era uma leitora ávida, interessando-se por poesia, pelos sentidos das palavras e pela criação de “cenas” (teatrais ou fílmicas) inusitadas com palavras pouco usadas.

Anaïs diz que cresceu, de certo modo, com uma loner, uma solitária, alguém que se sentia meio desfasada do meio em que crescia, pela cor (na sua escola tinha apenas outros dois estudantes negros), pela orientação sexual menos predominante e pela personalidade que foi forjando e interesses que foi alimentando. Numa entrevista, chegou até a descrever esses tempos dizendo que era “uma criança negra que não sabia dançar nem por nada, que ouvia música emo” e que o mais provável era ter “uma paixoneta por uma miúda qualquer da minha aula de espanhol”.

Talvez como efeito ricochete da imagem que se criou de si e da aura meio trágica de “Super Sad Generation”, Arlo Parks tem vindo a procurar com a sua música traçar retratos menos sombrios da sua geração. As suas cantigas, que têm no coração da estética musical a neosoul mas que flirtam com o confessionalismo folk, os breaks do novo R&B e do hip-hop, toadas suavemente jazzísticas e afunkalhadas e guitarras de um indie-rock pachorrento e da dream-pop, continuam povoadas de agruras, de gente atormentada pelas falhas e pelos vícios, de pessoas com conflitos internos e a saúde mental em risco, de temores. Mas já não é só isso.

Cada vez mais a sua música, mantendo-se muito pessoal e à base de histórias de Anaïs e dos seus amigos, vai incorporando raios de esperança, palavras de conforto cantadas para os sofredores (“you’re not alone”, ouvimos insistentemente numa das canções do novo disco). Nas palavras dela, anda interessada em “fazer arco-íris a partir de algo doloroso”.

Uma voz poética — ou quando o cliché acerta na mouche

Nas canções de Arlo Parks, a música não pode ser dissociada nem das palavras nem da voz. Comprovando aliás isso, o disco começa como uma espécie de “intro” onde a cama instrumental é simples, discreta, abrindo espaço a que todo o destaque seja a sua palavra. A voz a exprimir-se em modo spoken word com uma segurança e uma serenidade que não parece de alguém de vinte anos mas antes de alguém bem mais sábio, bem mais vivido, com um olhar mais apurado e observador do que é habitual até em gente bem mais velha. E uma voz a mostrar desde logo ao ouvinte que aqui as palavras têm um peso decisivo, que a escrita não é corriqueira, não recorre a palavras banalizadas e gastas pelo uso.

Tantas vezes se diz que a escrita de algum cantor e compositor de canções é “poética” que a expressão está mais do que gasta, mas não há como contornar, isso é nítido na escrita de Arlo Parks. Leitora compulsiva que diz que descobriu nos livros “um refúgio” desde muito nova, fã de Tolstoi, por exemplo, mas também de Sylvia Plath (que nomeia numa das letras deste novo disco), James Baldwin, Raymond Carver ou Audre Lorde, a londrina explicou o apelo pela poesia — mais do que pela escrita de peças de teatro e pelos romances, para onde chegou também a tender no passado — com um acerto cativante.

A poesia, dizia Arlo Parks recentemente, interessou-a por “estar mais focada na imagética, diria, do que nos enredos”. Leia-se as palavras que declama na intro do disco e rapidamente será percetível que a sua escrita é tudo menos banal e habitual:

“Collapsed in sunbeams
Stretched out open to beauty however brief or violent
I see myself ablazed with joy, sleepy eyed
Feeding your cat or slicing artichoke hearts
I see myself sitting beside you
Elbows touching, hurt and terribly quiet
The turquoise in my ring matches the deep blue cramp of everything
We’re all learning to trust our bodies
Making peace with our own distortions
You shouldn’t be afraid to cry in front of me in moments”

A qualidade da sua escrita é muitíssimo relevante, mas isto ainda é música e um disco ainda é um disco. Acontece que, como já era percetível pelos singles de antecipação, o que ouvimos nas canções de Arlo Parks é um casamento feliz entre palavra e batidas, entre os ritmos percussivos, as guitarras e uma voz que soa tantas vezes a uma brisa quente, um sussurro prolongado, um canto com melancolia e uns sinais de tristezas e dores em si mesmo mas também com uma suavidade e um tom adoçante para corações feridos.

É como se Arlo Parks, pelo modo como usa a voz, tentasse tantas vezes chegar ao ouvido e ao coração do ouvinte ou para o espantar com os retratos íntimos de dores e derrotas, sonhos feitos e desfeitos, ou para o embalar, o confortar, lhe servir de banda sonora amiga para os momentos mais doridos. Mais impressionante do que isso, parece procurar às vezes quase em simultâneo comover com histórias tristes e reconfortar com palavras carinhosas.

Em todas as canções a pop que Arlo Parks procura não é nem eufórica nem histriónica ou cheia de barulhos, ruídos e eletricidade. É pop feita de suavidade até quando levemente dançável, de vulnerabilidade e de temas íntimos, entre a melancolia e a nostalgia, soando às vezes quase a uma espécie de banda sonora de sonhos tidos meio acordados. É fragilidade exposta de quem conhece e ouviu a história da soul e os ritmos groove do jazz e do funk (o pai adorava jazz, a mãe adorava Prince) mas de quem ouviu também o hip-hop confessional de Loyle Carner, a tristeza sonhadora da pop dos The XX, a folk movida a desencantos e lamentos poéticos das trágicas de guitarra acústica em punho, a soul eletrónica dolente e emotiva de Frank Ocean.

A este álbum de estreia, a autora chama-se uma espécie de “cápsula temporal da adolescência”, o seu “diário”, uma “série de vinhetas e retratos íntimos em torno da minha adolescência e das pessoas que a moldaram”. Um conjunto de canções ancoradas em “histórias e nostalgia” que deseja que sejam ao mesmo tempo “hiper-específicas” e “universais”, pessoais e comunitárias — ou se não comunitárias, pelo menos identificáveis, compreensíveis, relacionáveis.

Em “Hurt”, a segunda canção do disco que começa com a história de um Charlie que “bebeu aquilo até ter os olhos a arder / depois esqueceu-se de comer o almoço”, ouvimos as batidas de percussão cheias de groove que poderiam vir dos álbuns editados no ano passado pelo grupo britânico Sault. Ouvimos Arlo Parks a deslizar com a voz no beat do seu produtor Gianluca Buccellati e a perguntar “não seria adorável sentir alguma coisa por uma vez que fosse?”, a deixar aquelas palavras de conforto e esperança que aqui e ali vai tentando introduzir (“won’t hurt so much forever”), a introduzir as suas personagens atormentadas a quem dá a mão:

“Started dreaming of a house with red carnations by the windows
Where he didn’t feel so small so overwhelmed by all his flaws”

Há canções mais luminosas, como “Too Good”, logo a terceira faixa, com um refrão degustável pelos amantes da pop mais orelhuda (“I think you know it / Too cool to show it / Babe, you’re so good / You’re too good to be true”), e a quase ingénua e pueril mas talvez enternecedora por isso “Hope”, onde ouvimos Arlo Parks a pôr-se outra vez ao lado do sofredor, a emprestar-lhe um ombro amigo, a cantar-lhe insistentemente “não estás sozinho como pensas que estás”. Felizmente ouvimo-la também em “Hope” a contrabalançar o mel e a ajuda motivacional com uma espécie de voice memo onde volta a mostrar o seu dote para as palavras, dizendo que sentiu muitas vezes que usava o sofrimento como “roupa de seda” ou como “uma mancha de tinta azul”, à procura da luz e a descobrir um buraco:

“I’ve often felt like I was born under a bad sign
Wearing suffering like a silk garment or a spot of blue ink
Looking for light and finding a hole where there shouldn’t be one”

Apesar de boas novidades como “For Violet”, “Bluish”, “Portra 400”, é nos singles lançados antes mesmo do disco sair que encontramos as principais pérolas. Encontramo-las desde logo em “Caroline”, uma estupenda canção sobre uma separação de um casal vista da perspetiva de uma terceira pessoa que os vê afastarem-se na rua enquanto espera a chegada do autocarro, uma reflexão sobre a dissolução de paixões e de tudo o que chegou a parecer inseparável e permanente.

Em “Black Dog”, canção cujo título remonta ao termo que Winston Churchill popularizou referindo-se à sua depressão, tema com suavidade e acordes serenos como motores rítmicos, ouvimos expressões tão impressivas quanto “lamberia o pesar diretamente dos teus lábios”. É uma canção sobre um(a) amigo(a) de Arlo Parks que se debatia com problemas de saúde mental e com uma depressão mas é também sobre a sensação de impotência, de incapacidade de ajudar, de quem assiste a tudo. A doçura e compaixão que se sentem quando Arlo Parks canta “Sometimes it seems like you won’t survive this / and honestly it’s terryfing” mostra uma fragilidade de partir corações, também notória na forma semi-decidida (mas parecendo pressentir resignação, insucesso no desejo) como canta “Let’s go to the corner store and buy some fruit / I would do anything to get you out your room”.

Ainda se quer mais um trunfo deste álbum de estreia? Ei-lo em “Green Eyes”, canção desempoeirada, de melodia apurada, com Arlo Parks a cantar sobre a vergonha de alguém homossexual assumir uma relação, alguém que “não podia dar-me a mão em público” por sentir “os olhos deles a julgar o nosso amor e a implorar por sangue”, alguém que a protagonista não culpa, deseja apenas “que os teus pais tivessem sido mais bondosos para ti / fizeram-te odiar o que és por força do hábito”. E ainda há “Eugene”, com a voz ao mesmo tempo profunda e suave da cantora a começar por dizer que teve “um sonho em que nos beijávamos”, a contar a história de uma paixoneta por uma melhor amiga heterossexual e a confusão e a complicação que tudo isso criou. Uma amiga a quem diz “lês-lhe Sylvia Plath, pensava que isso era uma coisa nossa”, com alguma amargura mas com toda a pinta.

Nas 12 cantigas de Collapsed In Sunbeams, Arlo Parks deixa claro que já não é mais possível ignorá-la. É verdade que este é o primeiro disco, são também ainda audíveis preocupações em lidar com expectativas (contornando-as e confrontando a imagem de tristeza que lhe foi associada). Mas o detalhe revelado na construção da cada canção, muitas das quais ainda por crescer ao longo dos próximos meses — “Bluish” tem tudo para se tornar uma pérola pop viciante —, aliando uma base musical que assenta na perfeição a uma intimidade que não é choninhas e trágica, fazem deste um disco-rampa que confirmará o lançamento de Arlo Parks rumo à consagração pop.

Percorrendo os estreitos caminhos que separam a pop convencional da canção pop alternativa mais inacessível, Arlo Parks encontrou um registo impregnado de melancolia e sonho, de luminosidade e dificuldades tornadas belas pela arte, de melodias açucaradas mas não inteiramente previsíveis. Está firmada uma grande nova voz no mundo da música.