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Os documentos do 'saco azul' do GES: 20 milhões a mais de 50 altos funcionários

56 mil páginas de documentos mostram que offshore secreta fez pagamentos desde 2006. Entre os beneficiários do saco azul está Martins Pereira, o homem que devia fiscalizar cumprimento da lei pelo BES

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Este artigo faz parte da investigação especial “Os Documentos do Saco Azul”, sobre os pagamentos da offshore secreta do GES, que o Observador está a publicar.

O Banco Espírito Santo (BES) teve um esquema oculto de pagamento de salários e de prémios anuais desde, pelo menos, 2006 e até 2013. Entre administradores, diretores e outros altos funcionários do BES, mais de 50 pessoas foram remuneradas regularmente através da sociedade offshore Espírito Santo (ES) Enterprises, com sede nas Ilhas Virgens Britânicas e desconhecida do Banco de Portugal e de outros reguladores por não fazer parte do organograma oficial do Grupo Espírito Santo (GES). Essa sociedade é também conhecida como o ‘saco azul’ do GES e ficou famosa pelas transferências de cerca de 69 milhões de euros detectados na Operação Marquês para Carlos Santos Silva, alegado testa-de-ferro de José Sócrates, Zeinal Bava e Henrique Granadeiro por alegadas ordens de Ricardo Salgado.

Este grupo restrito de gestores e altos funcionários do BES — que trabalhavam em departamentos-chave da instituição, como a auditoria, risco, compliance e financiamento — recebeu mais de 20 milhões de euros a partir de quatro contas bancárias que a sociedade secreta do GES detinha no Banque Privée Espírito Santo. Um número significativo destes — mas mesmo assim uma minoria — indicou familiares para receberem parte dessas remunerações. Isto quer dizer que Miguel Frasquilho, ex-líder do Departamento de Research do GES e atual chairman da TAP, e de Isabel Almeida, ex-diretora do importante Departamento Financeiro, Mercados e Estudos (DFME), não são casos únicos.

Afinal, Frasquilho recebeu quase o dobro do ‘saco azul’ do GES

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Esta é a realidade revelada por mais 56 mil páginas de documentos da ES Enterprises e de outras sociedades internacionais do GES a que o Observador teve acesso e que está a trabalhar desde o início deste mês de janeiro. A documentação abrange um período que vai de 2006 a 2014 mas indicia que o esquema clandestino de pagamentos iniciou-se muito antes.

Os alegados crimes de fraude fiscal e de branqueamento de capitais associados a estes pagamentos estão a ser investigados pelo Ministério Público nos chamados inquéritos do Universo Espírito Santo. Mas é provável que a maior parte dos alegados ilícitos já tenha prescrito.

A análise da documentação permite confirmar a informação, já revelada pelo Observador, de que passaram mais de 3,5 mil milhões de euros pelas quatro contas que a ES Enterprises tinha no Banque Privée Espírito Santo, o banco suíço do GES. A maior parte desse valor serviu essencialmente para financiar de forma alegadamente irregular as holdings familiares que permitiram aos Espírito Santo controlar o GES e o BES e uma parte importante resultou da emissão de dívida de empresas como a Espírito Santo Internacional (ESI), hoje em processo de insolvência, cujos títulos eram vendidos a clientes institucionais do BES, como a Portugal Telecom, e aos balcões do BES.

Na prática, os pagamentos realizados pelo ‘saco azul’ do GES foram em parte financiados pelos clientes do BES e do Grupo liderado informalmente por Ricardo Salgado.

Manuel Pinho recebeu 315 mil euros do ‘saco azul’ do GES

Morais Pires, o sucessor falhado de Salgado

O cruzamento de parte da documentação já analisada com fontes abertas que contêm os Relatórios e Contas do BES, permitiu identificar um número superior a 50 altos funcionários, entre administradores, diretores e funcionários. Desse número, e até pelo montante total que receberam, destacam-se oito ex-dirigentes do BES.

Amílcar Morais Pires, que o Observador já tinha revelado como sendo um dos beneficiários do ‘saco azul’ do GES, recebeu uma parte substancial: 7.925.167, 50 euros através de contas bancárias abertas na Suíça em seu nome pessoal mas também em nome de uma sociedade offshore (a Allanite, Ltd com sede no Panamá) que tem o ex-chief financial officer do BES e ex-administrador da PT como beneficiário económico.

As transferências para contas abertas em nome individual decorreram entre 2007 e 2009. A ES Enterprises começou por transferir a 5 de julho de 2007 a quantia de 2 milhões de euros para a conta que Morais Pires tinha na Union des Banques Suisse (UBS), em Zurique. Exatamente um ano depois, os representantes do ‘saco azul’ do GES ordenou a transferência de 1,7 milhões de euros. E, finalmente, a 4 de setembro de 2009, a conta na UBS recebeu mais 1,2 milhões de euros.

Em 2011 e 2012, Morais Pires utilizou a sua sociedade offshore, Allanite, com conta noutro importante banco suíço (o Credit Suisse), para receber um total de 3 milhões de euros, em duas tranches anuais iguais de 1,5 milhões de euros cada uma. Enquanto a primeira foi paga a 3 de fevereiro de 2011, a segunda foi transferida na véspera do Natal de 2012.

Curiosamente, quando prestou declarações na Comissão Parlamentar de Inquérito do caso BES, Morais Pires não revelou qualquer conhecimento específico sobre a sociedade que lhe pagou cerca de 7,9 milhões de euros, como chegou a ignorar perguntas bastante específicas do deputado Miguel Tiago (PCP) sobre o ‘saco azul’ do GES: “Por exemplo, o que fazia a ES Enterprise, que pagava despesa sem registo dos seus destinatários? Quem eram os destinatários? Que pagamentos foram feitos através desta ES Enterprise? (…) Essa sociedade estava, ou não, consolidada no universo BES ou GES? (…)”, questionou o deputado comunista.

Perante estas questões concretas, Morais Pires limitou-se a afirmar: “(…) Referiu a Enterprise (…) O Banco de Portugal ou o próprio Grupo Espírito Santo devem ter um organograma de todas as entidades, que vão desde a Espírito Santo Control até ao BES (…)”.

Curiosamente, quando prestou declarações na Comissão Parlamentar de Inquérito do caso BES, Morais Pires não revelou qualquer conhecimento específico sobre a sociedade que lhe pagou cerca de 7,9 milhões de euros e chegou a ignorar perguntas bastante específicas do deputado Miguel Tiago (PCP) sobre o 'saco azul' do GES.

A sociedade offshore Allanite é conhecida desde o processo Monte Branco, quando foram detectadas transferências de cerca de 13,5 milhões de dólares (cerca de 11 milhões de euros ao câmbio desta sexta-feira) a partir do Banco Espírito Santo de Angola (BESA) entre 2009 e 2011 — cujo motivo nunca foi conhecido.

O Observador dirigiu ao ex-CFO do BES, através do seu advogado Raúl Soares da Veiga, um conjunto de perguntas escritas sobre estas transferências mas não obteve qualquer resposta até à hora da publicação deste artigo.

Amílcar Morais Pires não era um homem qualquer no BES. Subiu a pulso na hierarquia do BES a partir do DFME, conquistou o lugar de braço-direito de Ricardo Salgado e era responsável pela importante área internacional do BES — onde as sociedades offshore e a operação do BESA imperavam. A sua grande proximidade a Salgado levou o líder histórico do BES a nomeá-lo como seu sucessor mas a desconfiança do Banco de Portugal liderado por Carlos Costa em relação à sua idoneidade precipitou a sua queda. Hoje é, juntamente com Ricardo Salgado, um dos principais arguidos nos processos Universo Espírito Santo, tendo em conta o seu papel fulcral no financiamento do BES.

Martins Pereira, o homem que devia fazer cumprir as regras

Como tantos anglicismos técnicos que o mundo financeiro importou, compliance é uma palavra que traduz uma prática que não é do conhecimento geral. De acordo com a definição feita pelo Banco de Portugal no Aviso n.º 5/2008, compliance significa, entre outros aspetos, acompanhar e avaliar internamente a “adequação e a eficácia das medidas e procedimentos adoptados para detectar qualquer risco de incumprimento das obrigações legais e deveres a que a instituição se encontra sujeita, bem como das medidas tomadas para corrigir eventuais deficiências no respectivo cumprimento”. Numa palavra: significa escrutinar e fiscalizar as práticas internas de um banco.

João Martins Pereira, ex-diretor do Departamento de Compliance do BES

LUSA

Era este o trabalho de João Martins Pereira, que entrou no BES para criar de raiz um Departamento de Compliance e de Auditoria que veio depois a liderar entre 2006 e 2013. Tal trabalho de escrutínio não o impediu de abrir uma conta no Banque Priveé Espírito Santo, na Suíça, para aí receber uma espécie de segundo salário — além do que recebia no BES — e prémios anuais. Verificaram-se também transferências da ES Enterprises para uma conta no BES em Madrid. Entre 2006 e 2012, Martins Pereira recebeu um total de 1,46 milhões de euros.

Foram pagamentos mensais, sem falhar um mês, que variaram entre os 15 mil euros (em 2006) e os 16.500 euros (em 2012). Além disto, à exceção do ano de 2010, Martins Pereira recebeu um prémio anual de 40 mil euros, sendo que em 2011 e 2012 apenas recebeu uma única tranche de 240 mil euros.

Martins Pereira, que também era administrador da ESFG — Espírito Santo Financial Group (a holding que agregava as participações do GES no sector financeiro nacional e internacional) com efeitos de mera representação junto do Banco de Portugal, garantiu ao Observador que “todas as remunerações” que recebeu “do dito ‘Universo GES’ foram devidamente manifestadas e tributadas nos termos aplicáveis da legislação tributária portuguesa”.

O ex-diretor do compliance do BES e o seu advogado, Paulo Saragoça da Matta, entenderam que o segredo de justiça dos processos do Universo Espírito Santo, onde João Martins Pereira já foi ouvido, impede respostas concretas a boa parte das perguntas enviadas pelo Observador. Mesmo assim, Saragoça da Matta confirmou que “as únicas quantias que o sr. dr. Martins Pereira recebeu foram as referidas” a título de “complementos de salário e bónus anuais”. Estes valores pagos “foram definidos com o sr. dr. Ricardo Salgado” na altura da entrada de Martins Pereira no BES, ” destinando-se apenas a compor o seu pacote salarial”.

"As únicas quantias que o sr. dr. Martins Pereira recebeu foram as referidas” a título de “complementos de salário e bónus anuais”. Estes valores pagos “foram definidos com o sr. dr. Ricardo Salgado aquando da entrada do nosso constituinte no BES, destinando-se apenas a compor o seu pacote salarial”.
Paulo Saragoça da Matta, advogado de João Martins Pereira

Saragoça da Matta diz que o ex-diretor do BES “não tinha qualquer possibilidade de conhecer, nem conhecia, as fontes de financiamento da ES Enterprises a que se alude no vosso e-mail, tendo-a apenas na boa conta de sociedade integrante do Grupo Espírito Santo”. Isto é, João Martins Pereira afirma que desconhecia que a Enterprises se financiava através da emissão de dívida da ESI que era vendida a clientes do BES. “O Sr. Dr. Martins Pereira apenas sabia que os seus complementos salariais e bónus eram provenientes do Grupo Espírito Santo, através de entidades sobre as quais não tinha, nem tinha que ter, qualquer informação, conhecimento ou jurisdição”. Acresce, diz o advogado de Martins Pereira, que “a área de compliance do BES não tinha qualquer jurisdição ou conhecimento sobre a ES Enterprises”.

O advogado enfatiza ainda que os cerca de 1,46 milhões de euros foram recebidas em contas abertas no nome de Martins Pereira, tendo sido manifestadas junto das autoridades fiscais portuguesas, “tendo os tributos sido pagos, tudo antes de sequer ter conhecimento da existência da investigação criminal actualmente em curso”. Saragoça da Matta nega assim que se tenha verificado qualquer rectificação das declarações de IRS depois de Martins Pereira “ter sido ouvido nos chamados inquéritos do Universo Espírito Santo”.

Isabel Almeida, a protegida que sabe demais

A diretora geral do DFME, Isabel Almeida, é uma das pessoas que mais sabe sobre o financiamento do BES — ou não tivesse sido a líder daquele departamento, conhecido como o coração do banco, desde 2004. Na prática, foi responsável pela preparação e execução do planeamento financeiro do Grupo BES desde essa altura. Era muito próxima (e protegida) de Amílcar Morais Pires, que foi o seu antecessor como líder do DFME, e foi igualmente diretora de um conjunto alargado de sociedades internacionais do GES.

Isabel Almeida recebeu um total de 2.376.590,50 euros entre 2006 e 2012. Só em sete transferências realizadas pelo ‘saco azul’ do GES para a sua conta na UBS de Zurique, foram-lhe entregues cerca de 2,2 milhões de euros. O valor pago era sempre anual e variou entre um mínimo de 115 mil euros (em 2006) e um máximo de 600 mil euros no dia 24 de dezembro de 2012 — um valor que corresponderá ao triplo do seu vencimento anual no BES. Também a 3 de agosto de 2010 e a 5 de outubro de 2011, Isabel Almeida recebeu um valor que suplanta em muito o seu rendimento anual em Lisboa: cerca de 437 mil euros em cada ano.

Recorde-se que o Observador já tinha noticiado os valores aproximados que Isabel Almeida tinha recebido em 2009 e 2010.

Como diretora do DFME, Isabel Almeida era responsável pela estratégia e execução do financiamento do BES

De acordo com uma fonte próxima de Isabel Almeida, os valores recebidos referem-se a prémios anuais que lhe foram atribuídos pela hierarquia do BES e assegura que os valores foram declarados fiscalmente.

Tal como o Expresso noticiou, e o Observador confirmou na documentação a que teve acesso, a gestora utilizou também o seu marido, filhas e pais para receber um total de cerca de 108 mil euros entre 2009 e 2011 da ES Enterprises. Para a mãe, Ilda Carvalho de Almeida, foram feitas duas transferências para uma conta na Caixa Geral de Depósitos, em Lisboa — uma em cada ano — ambas no valor de 8.841 euros. O pai, Adelino Paulo de Almeida, recebeu 18 mil euros9 mil euros em 2010 e 2011 — numa conta do BCP. Já o então marido da antiga administradora do BES, Luís Bernardino, recebeu cerca de 36 mil euros em quatro transferências da Espírito Santo Enterprises S.A. para uma conta no Santander: duas em 2010 e outras duas em 2011, todas no valor de 9 mil euros.

Quem também recebeu dinheiro da Espírito Santo Enterprises S.A. foram as filhas de Isabel Almeida: um total de 36.172 euros em quatro transferências. Tanto em 2010 como em 2011, Marta de Almeida Bernardino recebeu numa conta nacional duas tranches de 8.706 euros, enquanto Sofia de Almeida Bernardino recebeu um pouco mais também em duas operações: 9.380 euros.

Fonte próxima de Isabel Almeida refere que a prática de indicar os nomes de familiares para receber os valores dos prémios era “uma prática frequente”. Note-se que todas as transferências de 2010 e 2011 foram feitas no mesmo dia: 3 de agosto de 2010 e 5 de outubro de 2011.

O Observador enviou perguntas por escrito para Francisco Navarro, mas o advogado de Isabel Almeida invocou o segredo de justiça para não fazer qualquer declaração.

Juan Villalonga Navarro, o ex-presidente da Telefónica

Era um dos administradores executivos da Espírito Santo Financial Group (ESFG) com o estatuto de independente — isto é, não tinha uma ligação com nenhum dos acionistas de referência da holding da família Espírito Santo que controlava as participações no BES e noutras instituições financeiras. Amigo do ex-primeiro-ministro José Maria Aznar, Navarro tinha ficado conhecido em Espanha nos anos 90 como presidente executivo da Telefónica, uma das principais empresas de telecomunicações europeias, que era acionista de referência da Portugal Telecom.

Juan Villalonga (à esquerda), ex-presidente executivo da Telefónica e ex-administrador da Espírito Santo Financial Group, em São Petersburgo em junho de 2014 (Getty Images)

Juan Villalonga Navarro esteve na administração da ESFG entre 2001 e 2011. De acordo com a documentação a que o Observador teve acesso, recebeu da ES Enterprises um total de cerca de 600 mil euros entre setembro de 2009 e maio de 2011. Trata-se de um valor total que reflecte o pagamento mensal de 50 mil dólares que, após a conversão em euros, representava um valor variável consoante a cotação mensal do dólar face ao euro. Na documentação referente ao período entre 2006 e 2009, o Observador não detectou nenhuma transferência, o que indicia que os pagamentos da ES Enterprises foram circunscritos aos últimos dois anos em que esteve no GES.

A sua entrada na ESFG verificou-se pouco depois de ter sido obrigado a demitir-se do cargo de presidente executivo da Telefónica, após ter sido envolvido num caso de abuso de informação privilegiada. Mais tarde, a Comissão de Mercado de Valores Mobiliários espanhola absolveu-o. O gestor espanhol vive atualmente em Nova Iorque onde gere, entre outras empresas, um fundo de investe no mercado tecnológico a nível global.

O Observador ainda não conseguiu contactar Juan Villalonga Navarro.

Outros funcionários

António Soares foi o número 2 de Isabel Almeida no DFME e chegou a chief financial officer do BES Vida. Viveu e estudou na África do Sul e entrou no BES em 1990, de acordo com o seu curriculum vitae publicado na rede social LinkedIn. Subiu a pulso no BES e, antes de chegar a CFO da seguradora do Grupo BES, foi o responsável pela sala de mercados no DFME.

Além dos 120 mil euros em 2009 e dos 250 mil euros no ano seguinte, que o Observador já tinha noticiado, António Soares recebeu mais 330 mil euros em 2012. Total: 700 mil euros que foram depositados numa conta aberta na UBS de Zurique. Estes valores foram pagos anualmente e indiciam o pagamento de um prémio anual.

O Observador contactou Rogério Alves, advogado do ex-funcionário do BES, mas não obteve resposta até à hora de publicação deste artigo.

Nuno Escudeiro, subordinado de António Soares no DFME, recebeu um total de 166 mil euros da ES Enterprises mas recorrendo aos seus familiares (mãe e filhos) para receber uma parte do valor. Entre 2006 e 2009, recebeu cerca de 56 mil euros em cheques cruzados (com valores fracionados, na maior parte dos casos, em valores de 5 mil euros) que foram pagos com fundos da ES Enterprises. Nos anos seguintes recorreu aos seus familiares: Luísa, Alexandre e Paula receberam, cada um, 10 mil euros por ano a 30 de julho 2009, a 3 de agosto de 2010 e a 5 de outubro de 2011. Já o próprio Nuno Escudeiro recebeu mais duas transferências de 10 mil euros cada em 2009 e em 2011.

Quando foi confrontado pela equipa do procurador José Ranito com os pagamentos realizados para as contas dos seus familiares, Nuno Escudeiro afirmou que tinha seguido a recomendação feita pelo seu superior hierárquico: António Soares. O que indicia que a estrutura hierárquica do BES aconselhava tal procedimento que também foi seguido por Miguel Frasquilho e por Isabel Almeida.

Cláudia Boal Faria, ex-diretora do Departamento de Gestão de Poupança do BES, recebeu, por seu lado, uma quantia muito mais reduzida entre 2006 e 2011: 59.530 euros. Tal como António Soares, trata-se de um valor anual que, como aconteceu com Miguel Frasquilho e Pedro Pereira Gonçalves, foram pagos, numa primeira fase, em cheques cruzados emitidos pelo BES em Lisboa e pagos com fundos da ES Enterprises. A partir de 2009, passou a ser pago por transferência bancária.

O Observador não conseguiu contactar Nuno Escudeiro nem localizar o seu advogado. Já a advogada de Cláudia Boal Faria não respondeu à tentativa de contacto do nosso jornal.

Arguidos no Universo BES/GES

Deste grupo de altos funcionários que foram pagos pelo ‘saco azul’ do GES, Amílcar Morais Pires, Isabel Almeida, António Soares, Cláudia Boal Faria e o seu ex-marido Pedro Costa foram constituídos arguidos nos inquéritos do Universo Espírito Santo. Apesar das responsabilidades serem diversas (principalmente, entre Morais Pires e Isabel Almeida e os restantes), no centro do escrutínio judicial que está a ser feito pela equipa de procuradores liderada por José Ranito encontram-se os valores que saíram das contas da ES Enterprises na Suíça para as contas de todos aqueles altos funcionários do banco da família Espírito Santo.

Tudo porque aqueles ex-responsáveis do BES terão tido um alegado papel no financiamento alegadamente ilícito das sociedades do GES que em 2012/2013 já se encontravam em sérias dificuldades económicas, em virtude da espiral descontrolada de emissão de dívida em que se envolveram. Como o Observador já noticiou, só nos últimos anos do BES, e até ao final de 2014, o Ministério Público estima que o BES e o GES tenham emitido cerca de 8,9 mil milhões de euros em títulos de dívida.

Muitas dessas emissões de dívida, fulcrais no alegado financiamento fraudulento do GES, foram controladas e implementadas pelo DFME do BES. É precisamente esta razão que faz com que o MP associe essa ação com os pagamentos do ‘saco azul’ do GES e tenha imputado a Ricardo Salgado o crime de corrupção activa no sector privado, burla qualificada, falsificação informática, fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais. Já Amílcar Morais Pires, Isabel Almeida e António Soares são suspeitos dos alegados crimes de burla qualificada, fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais.

Também Cláudia Boal Faria e Pedro Costa, ex-funcionário do DFME e ex-administrador executivo da Espírito Santo Activos Financeiros (ESAF), foram igualmente constituídos arguidos por terem alegadamente colaborado com Ricardo Salgado na implementação de diferentes esquemas de financiamento fraudulento do GES.

O financiamento da ES Enterprises

Tal como o Observador já noticiou e a documentação a que agora teve acesso reconfirma, boa parte dos fundos que financiaram a actividade da ES Enterprises tiveram origem em contas de outra sociedade offshore: a Espírito Santo International, com sede nas Ilhas Virgens Britânicas, que também é conhecida por ESI-BVI.

Esta empresa era financiada de diferentes formas, entre outras:

  • ESI — Uma das cabeças do Grupo Espírito Santo que entrou em insolvência em 2015. A última emissão de dívida terá sido realizada em 2012 e atingiu os 540 milhões de euros;
  • Eurofin — Sociedade suíça gestora de activos acusada pelo Banco de Portugal de ter alegadamente ajudado Ricardo Salgado a manipular a contabilidade do grupo e de ter alegadamente prejudicado o BES em mais de 1,3 mil milhões de euros;
  • Espírito Santo Resources — Empresa da área não financeira com sede no offshore das Bahamas que, por exemplo, detinha a Escom e outros activos em África e na América do Sul.

O financiamento da ES Enterprises era inevitável porque a sociedade, para se manter secreta e opaca, não teve qualquer tipo de actividade. O que significa que não tinha receitas próprias. Logo, como a ESI deixou de receber dividendos a partir de 2007/2008 e passou a depender das sucessivas emissões de dívida que realizava para financiar as suas operações, significa isto que o pagamento de salários e prémios através do ‘saco azul’ do GES foi em parte financiado pelos clientes do banco que compravam os títulos de dívida emitidos pela ESI.

O problema fiscal

No fim, resta a pergunta: afinal, o BES tinha um esquema de pagamentos a altos funcionários que visava a promoção da evasão fiscal?

Sendo certo que um dos crimes que o Ministério Público está a investigar é o de fraude fiscal e que diversos altos funcionários do BES que foram constituídos arguidos nos processos do Universo Espírito Santo também foram indiciados por esse crime, a resposta à pergunta inicial não é fácil. Aliás, para tentar encontrar uma resposta nada como cruzar as explicações de Ricardo Salgado, presidente executivo do BES a quem os operacionais da ES Enterprises reportavam, com as respostas dadas ao Observador pelos altos funcionários envolvidos nestes pagamentos.

Quando foi confrontado com estes pagamentos pelo procurador José Ranito em julho de 2015, aquando da sua constituição como arguido no processo principal do Universo Espírito Santo, Ricardo Salgado confirmou vários factos:

  • Os pagamentos a administradores e funcionários do BES e do GES correspondiam a remunerações complementares sob a forma de salários ou de prémios;
  • Não existia qualquer contrato a regular e a fixar estes pagamentos;
  • As remunerações complementares tinham como beneficiários funcionários das áreas de compliance, auditoria e risco que, numa lógica de serviços partilhados, também prestariam serviços a sociedades internacionais do GES;
  • E, mais importante, que os beneficiários dessas verbas tinham de declarar as mesmas em Portugal ou na Suíça, não tendo o BES tal responsabilidade.

Ricardo Salgado recordou mesmo que, quando saiu de Portugal após o 25 de Abril, “havia muito pouca gente que declarava impostos” mas que, em 2014 , cerca de “75% dos clientes portugueses faziam as suas declarações de impostos”. Salgado dizia acreditar, portanto, que “a grande maioria das pessoas [funcionários do BES] procederam à declaração da liquidação dos impostos”.

Ora, as declarações que têm vindo a ser feitas ao Observador por alguns desses altos funcionários apontam no sentido de que seria o GES — e não os seus funcionários — o primeiro responsável por se certificar de que as declarações feitas ao fisco estavam correctas.

  • Miguel Frasquilho, ex-diretor de Reserach do GES: “Todas as minhas remunerações, entre salários, prémios, benefícios de saúde ou outras, recebidos ao longo destes anos sempre constaram das minhas declarações de rendimento anuais, que me foram entregues, já preenchidas pelas minhas entidades patronais (entre as quais, claro, o BES), e que eu apresentei perante o fisco (Autoridade Tributária e Aduaneira) – à semelhança do que acontece com todos os trabalhadores por conta de outrem”;
  • Pedro Gonçalves Pereira, ex-diretor no BES e noutras sociedades em Portugal: “Efetuei sempre as minhas declarações fiscais com base nas declarações de rendimentos que a minha entidade patronal me enviava anualmente”. Além disso, diz não ter razões “para crer que o pagamento das remunerações e prémios possa estar, de qualquer forma, associada a qualquer irregularidade”.

Ou seja, enquanto Ricardo Salgado diz que a responsabilidade de declarar os valores recebidos da ES Enterprises pertencia aos funcionários, alguns destes afirmam que declararam o que o BES colocou na declaração anual de rendimentos que disponibilizava aos seus funcionários. Uma aparente contradição que será esclarecida pela investigação do Universo Espírito Santo.

Luís Rosa é o autor do livro “A Conspiração dos Poderosos — Os Segredos do Saco Azul do GES” (Esfera dos Livros)

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