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Os hotéis cheios, as esplanadas concorridas e o trânsito ainda mais caótico que o habitual não deixam dúvidas: a Semana da Moda de Paris está de volta. O calendário já vai a meio e no programa feminino constam três nomes portugueses, fruto da união de esforços da ModaLisboa e do Portugal Fashion. Em março passado, Constança Entrudo, Maria Carlos Baptista e Ricardo Andrez gravaram um vídeo coletivo onde mostraram as suas coleções, mas esta sexta-feira o suavizar da pandemia permitiu-lhes apresentar individualmente as suas propostas para a próxima estação primavera-verão numa versão presencial e com direito a público a assistir.
A tarde estava chuvosa e à porta da Galerie Joseph os três nomes portugueses no cartaz davam nas vistas a quem passava na rua. Dentro de portas, uma instalação artística, os focos de luz, a música e a azáfama habitual que antecede quase todos os desfiles faziam parte do cenário.
O público foi ocupando a galeria de arte e a primeira a entrar em ação foi Constança Entrudo, a criadora que promete continuar a agitar o universo da moda com uma pitada de ironia e sentido de humor. Seguiu-se Maria Carlos Baptista, o talento descoberto na plataforma Bloom do Portugal Fashion no ano passado, que mistura a moda e dança no seu percurso. Por fim, Ricardo Andrez mostrou que é possível permanecer fiel e coerente a um estilo e a uma mensagem que tem tanto de atual como de provocatória.
Constança Entrudo, Maria Carlos Baptista e Ricardo Andrez apresentam em Paris
Nos bastidores, já depois dos aplausos e dos nervos à flor da pele, os três criadores contaram ao Observador como a pandemia os obrigou a parar, de como a sustentabilidade pode ser uma preocupação, mas também uma imagem de marca, e de como a pegada internacional pode ser um estímulo para crescer.
Constança Entrudo: “O meu trabalho é muito irónico, o sentido de humor é importante na moda”
Na coleção passada fez homenagem aos bordados da Madeira e seus artesãos, desta vez Constança Entrudo inspirou-se num livro de poemas visuais para criar uma instalação artística cheia de camadas e interpretações. “As letras, as frases e as palavras trouxeram-me esta ideia de labirinto e de ilusão, depois o facto de o livro ser a preto e branco foi interessante, pois deu-me carta branca para explorar materiais e combinações de cor”, explica.
O ponto de partida da coleção foi mesmo a paleta de cores, onde a designer saiu da sua zona de conforto arriscando em tons mais fortes do que é seu habitual. Rosa, azul, verde e laranja compõem coordenados assimétricos e detalhes divertidos como missangas e fios entrançados no cabelo. A tecelagem feita fora do tear continua a ser a sua técnica predileta “desde o tempo da faculdade”, mas Constança descobriu uma nova paixão, o bordado. “Antes da coleção anterior era avessa ao bordado, associava a algo antigo e só para mulheres, para mim era uma coisa muito segmentada. Estar em contacto com as pessoas que fazem bordado fez-me ver a técnica de outra forma, sem aquele peso histórico, e a desmistifica-la. Acho que agora vou continuar a explorar o bordado.”
Da literatura ao cinema, passando pela fotografia e pelas artes plásticas, Constança Entrudo mistura várias artes no seu processo criativo, mas parece não perder o foco nos materiais e na ironia da mensagem que quer passar. “Não me considero uma designer de moda, mas uma designer de materiais. O meu trabalho é muito irónico, o sentido de humor é importante na moda, para mim é talvez o mais importante.” Irónico parece ser também o seu crescimento, comercial e internacional, feito essencialmente em contexto pandémico. “A pandemia ensinou-me muito sobre mim mesma, acho mesmo que não sou a mesma pessoa, estou mais em paz e isso também se reflete no meu trabalho.” Durante o confinamento, obrigou-se a mergulhar no aborrecimento, a experimentar a solidão e a abrandar o ritmo, ingredientes que contribuíram para um fervilhar criativo que a emancipou.
“Fico entediada muito facilmente e estou sempre a procurar novas soluções e estímulos, mas a pandemia veio forçar-me a ficar nesse estado aborrecida e daí saíram coisas super interessantes. Quando temos uma equipa grande, há muitas opiniões e ficar sozinha durante este período permitiu-me pensar no que gosto e no que quero mesmo fazer.” A resposta, tal como a sua intuição, surgiu rapidamente. “O têxtil é a minha base, a minha marca, é nisso que me estou a focar para criar uma identidade.”
Minutos depois daquela que foi a sua primeira apresentação presencial em Paris, a criadora de 27 anos não escondeu o nervosismo que sentiu ao sair, ainda que por uns instantes, do universo online, aquele onde, graças à pandemia, acabou por crescer mais. “Estava muito confortável com o online, adoro o mundo digital e sinto que a marca cresceu bastante nesse formato. Estar exposta e voltar a ver a reação das pessoas deixou-me ansiosa, aliás, foi o mais me stressou nos últimos tempos. No entanto, parece que acordámos ontem e saímos todos de uma máquina, é tudo normal.” Estados Unidos da América, Canadá, Londres e Japão são atualmente os seus principais mercados, na bagagem tem já a presença num showroom em Paris e no mapa de Constança Entrudo a viagem só agora começou.
Maria Carlos Baptista: “Há homens que têm interesse em vestir a minha roupa e isso surpreende-me”
Era bailarina, mas uma lesão nas costas afastou-a dos palcos e obrigou-a a encontrar uma nova forma de colocar toda a sua energia e criatividade em prática. Há precisamente um ano, Maria Carlos Baptista venceu o concurso Bloom do Portugal Fashion e a partir daí nunca mais parou. Em Paris apresentou “Mátria”, uma coleção que é também uma vénia ao poder feminino. “É uma possibilidade de uma nova realidade e uma celebração da mulher e da sua força. Tentei pegar nas nossas fragilidades usá-las como força.” Os coordenados, que têm tanto de futuristas como de românticos, surgiram numa espécie de redomas de vidro, “altares” que segundo a criadora garantem a proteção da mulher.
A ideia para a próxima estação partiu dos tecidos que Maria tinha em casa, sobras de coleções anteriores, provando que o upcycling é mesmo um dos seus carimbos criativos. “Trabalho a partir do que já existe por uma questão de consciência ambiental, mas também porque esse esforço é muito desafiante. Durante o processo aprendo realmente muito sobre mim, sobre a minha capacidade de resolver problemas e de ultrapassar limitações.” Um vestido preto com as costas vermelhas foi a primeira peça que idealizou, logo depois surgiram as golas altas, as rendas, os plissados e as silhuetas longas em tons escuros. “Não gosto de transmitir a mensagem pela cor, mas mais pelas texturas”, justifica.
Apesar dos traços femininos que dá a cada peça, Maria Carlos Baptista compreende porque é que a sua roupa é também procurada pelo público masculino. “Tento passar uma imagem feminina, mas tenho formas exageradas, mais rígidas e austeras, por isso percebo o interesse de um homem em vestir a minha roupa, mas é algo que me surpreende sempre.” Ao Observador, a designer confessa que o seu sonho é um dia fazer alfaiataria. “É arte pura e tem um cunho intemporal que aprecio bastante.” Já apresentar o seu trabalho em Paris não estava nos seus planos, mas acabou por acontecer e de forma presencial, tal como prefere. “É bom sentir o calor das pessoas, precisamos uns dos outros. Sinto que cheguei a mais gente através do online, mas acho que podemos misturar os dois formatos porque ambos têm benefícios. Ainda assim, prefiro o presencial.”
A pandemia não obrigou Maria a parar, antes pelo contrário. “Tive necessidade de me manifestar mais, senti-me presa em algumas coisas, não havia lojas, fornecedores e as coisas demoravam dois meses a chegar, mas deparei-me comigo mesma e consegui encarar algumas coisas de frente. Não foi um período feliz, é verdade, mas sinto que progredi.” Progressão parece ser a palavra de ordem no caminho que se segue. No futuro, a jovem criadora espera deixar de ser uma “one woman show” e ganhar uma estrutura sólida para poder crescer.
“Costuro, desenho, faço tudo e por vezes não consigo dar resposta a tudo. Sinto que estou a crescer, mas não tenho produção, se quiser avançar e continuar, preciso de uma equipa que me ajude a dar o passo certo, a procurar investidores e a escolher fornecedores. É fundamental criar essa rede à minha volta.” Em contrapartida, Maria Carlos Baptista promete continuar a inspirar-se com “as pequenas coisas da vida” e a ter no corpo, no movimento e no espaço as suas principais diretrizes.
Ricardo Andrez: “Um desfile transmite uma emoção que o online não consegue dar”
Fiel ao streetwear e ao estilo mais sporty, Ricardo Andrez desenhou uma coleção cheia de referências digitais, com QR codes em mangas de casacos e em bainhas de calças, padrões gráficos gigantes, que fazem lembrar os videojogos e a realidade tridimensional, explorando a ideia de fantasia, através de materiais com um tratamento térmico especial que quando vestidos mudam de cor. “É uma coleção que se relaciona com o hiper-realismo que vivemos hoje no mundo digital e tecnológico. A pandemia veio reforçar e acelerar tudo isso.”
Durante o último ano, o criador confessa que se sentiu à deriva e retomar o ritmo profissional não foi propriamente uma tarefa fácil. “A pandemia teve muito impacto no meu processo criativo, senti-me perdido em alto mar. Esta coleção foi complicada de fazer porque de um momento para o outro tive de acelerar o ritmo que tinha perdido, acho que ainda não estava preparado para isso, mas ainda bem que está a acontecer.”
Tal como na estação passada, o designer apostou materiais de origem sustentável, usando e abusando de excedentes de fábricas. “Numa marca com a dimensão da minha, de vestuário de autor, não fez sentido dar-me ao luxo de vir a Paris escolher tecidos quando tenho em Portugal tanta matéria prima premium que será queimada ou irá para o lixo. Estou limitado a nível de produção, por isso acho que este processo se enquadra com a minha realidade.”
Em Paris, Ricardo Andrez apresentou essencialmente coordenados femininos, embora a questão do género seja secundária no seu trabalho. Em 2010, quando lançou a sua marca homónima, o criador começou por desenhar roupa masculina, gradualmente foi apresentando também sugestões femininas e é neste híbrido que pretende chegar aos outros. “No momento da criação não penso se o que faço será usado por um homem ou uma mulher, idealizo o artigo e não o meu cliente final. As minhas peças podem e devem ser interpretadas de várias formas.”
Adepto do desfile clássico em passerelle, onde a proximidade e o toque são prioridades, Andrez não duvida que este é o método mais eficaz para chegar ao seu público. “No digital é estranho porque gravamos, alguém edita e depois estou numa nuvem à espera do que vem a seguir. O formato desfile é o registo certo para mim, é mais fiel à mensagem que quero passar, transmite uma emoção diferente que um ecrã não consegue dar.”
O continente asiático continua a ser o seu mercado de eleição, embora pretenda ganhar mais força na Europa. Paris pode ser um bom ponto de partida, há três anos que o criador marca presença comercial em showrooms na cidade e fazer uma apresentação “olhos nos olhos” era o complemento que lhe faltava para conquistar mais espaço num circuito onde a moda de autor é rainha.
O Observador viajou para Paris a convite do Portugal Fashion.