Talvez 36 anos de castigo sejam uma penalização exagerada para quem o único mal que cometeu foi vencer um Campeonato do Mundo em 1986 com um golo com a mão pelo meio. Essa ação, contrária às leis de jogo, passou incólume ao árbitro, mas não à jurisprudência da emoção. A partir daí, os argentinos viveram décadas de culpa, de distanciamento do que lhes dá sentido à bendita loucura – quase como uma consequência do que Maradona fez porque talento nunca lhes faltou e já perderam duas finais (1990 e 2014). Deus deu com uma mão e tirou com a outra, dirão os alvicelestes. Por ironia, no primeiro Mundial depois da morte do responsável pelo último título, a Argentina está perto de poder voltar a ser feliz. Quem são os protagonistas que se tornaram heróis no México e os jogadores de Scaloni que procuram atingir a mesma divindade?
Nery Pumpido — Emiliano Martínez
Pumpido ainda jogou o Mundial de 1986 com os dez dedos da mão. Não é um questão de somenos. No ano seguinte, perdeu um dedo durante um treino no River Plate. O guarda-redes estava a realizar um exercício que consistia em saltar junto à baliza. Num dos saltos, ficou com o dedo anelar preso num gancho utilizado para suster a rede da baliza -e acabou a desmaiar de dor. Pumpido foi operado durante quatro horas e meia para que o dedo voltasse ao devido lugar.
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Emiliano ‘Dibu’ Martínez também é um guarda-redes de mão cheia ou, pelo menos, sem remendos. Ao longo do Mundial 2022 já se destacou na defesa de grande penalidades diante dos Países Baixos. Sobre o sucessor, Pumpido disse que “os guarda-redes estão aí para aparecer nos momentos-chave e o Dibu sempre fez isso“, mostrando-se agradado com as qualidade do guardião da mais recente versão da Argentina.
José Luis Cuciuffo — Nahuel Molina
A atribuição dos números aos jogadores é um sinal da mudança dos tempos. Cuciuffo era lateral-direito e jogava com o número nove. El Cuchu foi o primeiro argentino campeão do mundo, juntando os de 1978 os de 1986, a falecer. Em 2004, quando se dirigia para o local onde ia caçar, conduzia um veículo com uma espingarda entre as pernas. A arma estava desbloqueada e com os solavancos da estrada, acidentalmente, Cuciuffo acabou atingido por um tiro. A bala entrou pelo estômago e acabou por se alojar na artéria aorta. A quantidade de sangue que perdeu fez com que falecesse a caminho para o hospital.
Nahuel Molina, que já tem um golo apontado no Qatar, está a jogar a primeira grande competição de seleções. O jogador de 25 anos tem-se destacado no Atlético de Madrid de Diego Simeone, o que lhe valeu a confiança do selecionador argentino, Lionel Scaloni para ser a principal escolha para a posição, ganhando a corrida pelo lugar a Montiel.
Oscar Ruggeri — Cristián Romero
Quando Oscar Ruggeri trocou o Boca Juniores pelo River Plate, os adeptos do clube que abandonou queimaram-lhe a casa com familiares lá dentro. Um momento infeliz que o central viveu depois de ter sido campeão do mundo com a Argentina e se ter tornado um dos nomes maiores do futebol no país.
Cristián Romero vive numa contradição. Apesar de ser um jogador ríspido na forma como disputa os lances com os avançados, recebeu uma alcunha carinhosa. Por ser um grande amigo de Son, com quem joga no Tottenham, os adeptos da Coreia do Sul começaram a chamar-lhe ‘Cutie’ (‘adorável’ em inglês), uma alcunha que não compadece com o seu estilo de jogo.
José Luis Brown — Nicolás Otamendi
Pode-se dizer que Brown foi um herói improvável, dado que, em condições normais, nem seria opção na equipa. No entanto, a ausência de Daniel Passarella levou-o a ser titular ao longo do Mundial 86. O único golo que conseguiu marcar nas 36 aparições na seleção argentina foi precisamente o do jogo que decidiu o Campeonato do Mundo. Durante essa mesma partida, deslocou o ombro, mas recusou-se a abandonar o campo. Acabou por falecer vítima de doença de Alzheimer.
Nicolás Otamendi herdou a resiliência do antecessor. O jogador do Benfica está a realizar a sétima grande competição de seleções e é um dos líderes da seleção. Vai fazer a centésima internacionalização na final contra a França.
Julio Olarticoechea — Marcos Acuña
O lado esquerdo da defesa foi uma posição muito contestada, quer em 1986, quer em 2022. Julio Olarticoechea dividiu o lugar com Oscar Garré. Já Marcos Acuña tem-se revezado com Nicolás Tagliafico. No entanto, os dois jogadores destacados acabaram por ter mais minutos em ambas as competições.
Olarticoechea ficou marcado pelo lance em que impediu Lineker, nos quartos de final do Campeonato do Mundo do México, contra a Inglaterra, de cabecear para o 2-2 que levaria o jogo para o prolongamento. O defesa realizou um corte com a nuca em cima da linha de golo que se veio a revelar crucial para a conquista. Fazendo o paralelo com “a mão de Deus” de Maradona, os adeptos argentinos rotularam a jogada defensiva de Olarticoechea como “a nuca de Deus”. O antigo lateral passou os últimos tempos dedicado a treinar a seleção nacional feminina da Argentina, cargo que deixou em 2017.
Marcos Acuña personifica o espírito argentino. O ex-Sporting sente-se como peixe na água quando a emoção toma o lugar da razão.
Sergio Batista — Enzo Fernández
Sergio ‘Checho’ Batista era o médio defensivo da geração de 1986. Enzo Fernández é o centrocampista da Argentina atual. Dois jogadores que pisavam os mesmos terrenos, mas com formas de jogar muito diferentes. Enzo Fernández não começou o Mundial como titular, mas afirmou-se ao longo da campanha da alviceleste no Qatar. Pelo contrário, Checho foi titular em todos do México. Em comum têm o facto de terem jogado o primeiro Campeonato do Mundo logo no início da carreira internacional ao serviço da Argentina, pois ambos só tinham disputado jogo amigáveis antes de atuarem na maior competição de seleções.
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Sergio Batista já teve inclusivamente teve, em 2010, a oportunidade de, já como treinador, orientar a Argentina. Da equipa convocado por Scaloni para o Qatar, comandou Messi e Di María. No entanto, os maus resultados na Copa América de 2011 levaram a que estivesse apenas oito meses no cargo.
Ricardo Giusti — Leandro Paredes
Giusti não era propriamente reconhecido pelo protagonismo ofensivo. Com a evolução do futebol, deixaram de existir futebolistas só para atacar ou só para defender. É dentro desse contexto que surge Paredes. O médio da Juventus jogo a partir de uma posição mais recuada, sendo importante nos equilíbrios da equipa, mas com bola é também diferenciado.
Héctor Enrique — Rodrigo de Paul
Das 11 internacionalizações que Héctor Enrique tem na Argentina, cinco são no Mundial de 86. Ficou conhecido por ter sido o último jogador a tocar na bola antes do golo do século em que Maradona fintou uma série de jogadores até marcar um golo monumental contra a Inglaterra.
Já Rodrigo de Paul é um jogador todo o terreno. Defende e ataca com a mesma intensidade e nível, o que é raro num jogador que começou por ser um número 10.
Jorge Burruchaga — Alexis Mac Allister
Jorge Burruchaga podia não ser uma estrela de primeira linha da equipa, tal como não o é Mac Allister. No entanto, desempenhou um papel imprescindível na alviceleste na conquista do Campeonato do Mundo em 1986. Burruchaga era o médio criativo da seleção que, jogando nas costas de Maradona e de Valdano, alimentava os avançados num nível digno de camisola dez que, obviamente, pertencia a Maradona. Na final, contra a Alemanha, que a Argentina venceu por 3-2, foi Burruchaga o autor do golo da vitória, apontado aos 83 minutos.
Mac Allister soa pouco a um apelido argentino. Na verdade, Alexis, além de argentino, tem também nacionalidade escocesa. O pai, Carlos Mac Allister, foi também ele internacional argentino, chegando partilhar o balneário da seleção argentina com Maradona. Alexis ganhou a titularidade de forma talvez surpreendente, mas é um dos nomes a reter da equipa de Scaloni.
Diego Maradona — Lionel Messi
Maradona vai estar algures num código postal do céu a torcer para que Messi repita o que El Pibe conseguiu no México em 1986. Aliás, Messi só nasceu em 1987 pelo que nunca viu a Argentina ser campeã do mundo. Do mesmo modo, a morte de Maradona não lhe vai permitir ver o seu herdeiro ter sucesso, caso se verifique a conquista. Quase como se Messi e Maradona fossem cromos repetidos para uma caderneta que só tem espaço para um.
Jorge Valdano — Julián Alvárez
“Julián Álvarez é o jogador ideal para o jogador ideal para a posição nove neste torneio. É o melhor nove do Mundial. Vê-lo ao vivo é muito diferente de vê-lo na televisão. É incansável todos os esforços que faz”, disse Jorge Valdano. Os homens mais adiantados de ambas as gerações têm em comum o número de golos nas edições do Mundial aqui em comparação. Valdano marcou quatro golos no México 86 e Álvarez, ainda com a final por disputar, marcou quatro golos no Qatar 22.
Em criança, o atual ponta de lança da alviceleste recebeu a alcunha de ‘aranha’. O irmão foi o responsável pela atribuição da denominação, pois Julián nunca perdia a bola, aparentando ter mais do que duas pernas.