O silêncio do café da esquina da Rua do Comércio é interrompido apenas pelo som da televisão e pelas reações dos poucos clientes que por lá almoçam às notícias. “Falam em dois mortos e um salvo. E os desaparecidos?”, questiona um, virando-se para os outros dois, cujos olhos também estão colados aos pequeno ecrã.
Amália Paulino, 65 anos, vai dividindo a atenção entre a máquina do café e as imagens das buscas pelos desaparecidos do naufrágio em Tróia que, este domingo, segundo as informações mais recentes, tirou a vida a uma criança e a um homem de 33 anos — e os desaparecidos, insiste-se por ali? Apesar de nunca ter privado muito com nenhum deles, Amália não consegue esconder a tristeza na voz ao falar da tragédia que caiu sobre a aldeia de Cadoços, no concelho de Grândola.
Troia. Um barco de pesca naufragou, uma criança e um homem morreram e dois estão ainda desaparecidos
“Ainda não fui capaz de ver a mãe do Gabriel. Deve estar de rastos”, conta a funcionária ao Observador, referindo-se ao homem que foi resgatado já sem vida pela Polícia Marítima, poucas horas depois de o barco onde seguia se ter virado, após um golpe de mar. “Também sou mãe, e isto é um bocadinho nosso.”
Gabriel Caeiro, 33 anos: “Estava no início de vida. Tinha acabado de comprar casa e tinha uma menina pequena”
Naquela rua, na aldeia de Cadoços, no concelho de Grândola, o nome de Gabriel Caeiro é o que mais comoção provoca entre os vizinhos. Não apenas pelo alentejano morar a poucos metros, mas pela “vida que tinha pela frente”.
“Estava no início de vida. Tinha acabado de comprar uma casa, feito várias obras, tinha uma menina pequena… Não vai ser fácil”, lamenta uma vizinha, que preferiu manter o anonimato.
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Desde novo, Gabriel habituou-se a ver os pais a trabalhar no campo. E, quando chegou a sua vez, também o homem decidiu enveredar pelo mundo da agricultura. Atualmente, trabalhava na Herdade dos Cadoços, juntamente com o irmão, José, que também seguia na embarcação e que é um dos dois desaparecidos.
Quando regressava do campo, Gabriel dedicava as restantes horas do dia à família — a mulher e a filha, que não terá mais de sete anos. “Quando ele saiu, na manhã de domingo, ela [filha] provavelmente não o viu. E agora nunca mais o vai ver…”, lamenta a vizinha da família, com as lágrimas a fugir por baixo de uns óculos escuros com que procura esconder a tristeza que sente por este momento que abala toda a comunidade alentejana.
Na manhã deste domingo, a pouco mais de três quilómetros de Tróia, um barco de pesca lúdica naufragou, levando todos os seus ocupantes — uma criança de 11 anos, o seu pai, de 45 anos, dois irmãos de 21 e de 33 anos e outro homem de 62 anos (o timoneiro) — fossem “cuspidos” para o mar.
Naufrágio em Troia. Criança e adulto resgatados sem vida, duas pessoas continuam desaparecidas
O acidente aconteceu ainda bem cedo — cerca das 7h da manhã —, mas só três horas depois a Polícia Marítima recebeu o alerta, quando uma outra embarcação resgatou o timoneiro. As buscas começaram de imediato, mas até ao momento só foram encontrados dois corpos: o de Francisco Neves, a criança de 11 anos, e o de Gabriel Caeiro.
Na pequena aldeia do distrito de Setúbal, as referências a Francisco e Gabriel saem no pretérito imperfeito. De José, o irmão Caeiro de 21 anos, e de Ricardo, o pai da criança, os vizinhos continuam a falar no presente, como se teimassem em esperar por notícias melhores, como se quisessem agarrar-se a uma esperança que impeça a tragédia de ser ainda maior.
José Caeiro, 21 anos: “Era bom aluno. É sempre se de lamentar, mas, neste caso, o lamento é maior”
“O José é como o irmão, muito trabalhador. Também se dedica ao campo e à agricultura”, revela um morador – também na condição de anonimato –, contando que conhecia o jovem das idas ao café.
Tal como Gabriel, José também seguiu as pisadas dos pais. E até fez um caminho semelhante ao do irmão, tendo também estudado na Escola Profissional de Desenvolvimento Rural de Grândola. Apesar de ter terminado o curso já há dois anos, ainda é relembrado na instituição como um dos alunos “mais promissores” que por lá passaram.
“O José marcou-me muito porque, quando vim para cá, ele estava a completar o 12.º ano”, recorda ao Observador a diretora da escola, Maria João Alves. “Ele era muito bom aluno, estava bem integrado, tinha amigos, tinha as mocinhas que lhe achavam piada, participava nas nossas atividades… É sempre de se lamentar, mas neste caso, no caso do José, o nosso lamento é maior“, confessa.
Também o porteiro da escola, José Maria Guedes, de 58 anos, recorda um jovem “catita”, destacando uma qualidade também referida pela diretora escolar: dava-se bem na vida do campo.
“Lembro-me de o ver em cima do trator”, diz. “Andava muito bem, com um à vontade de quem efetivamente estava habituado. E com muito gosto também.”
Após terminar o curso, José, segundo apurou o Observador junto de conhecidos do jovem, decidiu imediatamente entrar no mundo do trabalho. Há pouco tempo, tinha oferecido os seus serviços para cuidar dos animais de um vizinho que ficou incapacitado na sequência de uma queda a cavalo. No entanto, Maria João Alves destaca que “não seria de admirar” que o jovem viesse a frequentar um curso do Ensino Superior: “Podia não ser de imediato, mas daqui a algum tempo. Precisamente, porque ele tinha imenso gosto nestas coisas“.
Na madrugada de domingo, entrou para o barco de Manuel Isaías para uma manhã que contavam ser dedicada à pesca do polvo. A maioria das pessoas com quem o Observador falou confessa que não sabia se aquela era uma paixão ou até mesmo um hobby dos dois irmãos. Contudo, garantem que, naquela zona, é muito habitual que os moradores vão pescar para aquela zona da costa alentejana, utilizando até o mesmo método a que os quatro alentejanos recorreram – alugar o barco a um timoneiro e pagar o preço por pessoa. Já Francisco, seria a primeira vez que o fazia.
Ricardo e Francisco Neves, 45 e 11 anos: “Eram muito amigos um do outro. Pai e filho”
No Bairro do Isaías, a pouco mais de dez minutos da aldeia dos Cadoços, a calmaria da Rua Bairro da Linha é mais pesada que o habitual. “A mim espanta-me os cães não terem ladrado quase nada. Quando eles cá estavam, não se calavam. Agora, ainda mal os ouvi”, confessa ao Observador Laura Mendes, a vizinha do lado de Ricardo e do filho, Francisco, uma criança que gostava muito de jogar futebol e que até fazia parte da equipa da região: O Grandolense.
A estranheza prende-se também com o facto de os moradores sentirem que, na verdade, os seus vizinhos nunca saíram de casa. Os carros de Ricardo e da mulher continuam estacionados à porta de casa e a roupa ainda está por apanhar no estendal. A mulher é a exceção por ali: ao recordar o pais de Francisco, que continua desaparecido, os verbos saem num passado conformado. “Era uma pessoa muito trabalhadora. Assim como a mulher, que até tinha dois trabalhos”, revela.
Durante anos, sabe o Observador de fontes próximas da família, Ricardo dedicou-se à carpintaria, tendo deixado a profissão há cerca de três anos. Desde então, fazia alguns serviços de entrega de lenha a moradores da zona e entretinha-se na caça e na pesca.
(ATUALIZAÇÃO)
As #buscas pelas duas pessoas que ainda se encontram desaparecidas na sequência do naufrágio que ocorreu esta manhã ao largo de #Troia, foram interrompidas ao final da tarde sem que as vítimas fossem encontradas.
Saiba mais em https://t.co/8MjfaTxKQu#AMN pic.twitter.com/pFGih9hiJR
— Autoridade Marítima Nacional (@amn_portugal) April 7, 2024
Segundo a vizinha, nunca levou o filho para essas aventuras. Domingo teria sido a primeira vez que o fazia, depois de Francisco ter insistido em acompanhá-lo, porque, no dia anterior, o pai não o tinha levado consigo para o mar. “Eles eram muito amigos um do outro. Pai e filho”, desabafa.
Os cinco alentejanos saíram na madrugada de domingo para um dia de pesca de polvo – algo que é habitual, segundo o capitão do Porto de Setúbal, Serrano Augusto, revelou ao Observador –, mas o naufrágio aconteceu antes de chegarem à zona pretendida, quando um golpe mar os surpreendeu e acabou por virar a embarcação.
De de todos os tripulantes, Francisco seria o único com colete salva-vidas vestido, segundo revelou o timoneiro às autoridades, apesar de ser obrigatório que todos os que seguiam a bordo o usassem, tal como determinava a Direção Geral de Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos num documento de perguntas e respostas sobre a pesca lúdica, citando o artigo 4.º da Portaria n.º 14/2014 de 23 de janeiro: . “Sempre que uma embarcação esteja a exercer a atividade de pesca lúdica, em águas oceânicas, interiores marítimas ou interiores não marítimas sob jurisdição da autoridade marítima, todos os tripulantes estão obrigados a envergar colete de salvação ou auxiliar de flutuação individual”.
Esta segunda-feira, as buscas pelos dois homens que continuam desaparecidos foram suspensas às 20h30, tendo o capitão do Porto de Setúbal comunicado que vão ser retomadas às 7h30 de terça-feira e alargadas a 15 quilómetros.
“Vamos alargar um bocadinho mais as buscas para as oito milhas náuticas, ou seja, cerca de 15 quilómetros, tanto para norte, como para oeste da posição” em que está sinalizado o naufrágio da embarcação, sublinhou, numa conferência de imprensa.
Além disso, Serrano Augusto revelou que há dois inquéritos a decorrer para apurar as circunstâncias em que ocorreu o acidente: um no Ministério Público e outro “nas competências do Capitão do porto”.